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Júlio Pires em Entrevista a "a Página" ( segmento 1 de 2 )

Trabalho autónomo
dos alunos
é fundamental

Platão dizia que ser escravo
é executar os trabalhos
concebidos pelos outros

Gestão flexível do currículo
não é curriculo alternativo

Programas paralelos
são formas de exclusão

Professor do 2º ciclo na EB 2,3 de António Sérgio, no Cacém, Júlio Pires encontra-se destacado, desde há doze anos, na Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação de Lisboa, onde tem trabalhado particularmente na formação de professores. Licenciado em Filologia Germânica pela Faculdade de Letras de Lisboa, é mestre em Ciências da Educação pela FPCE/UL. Foi membro da direcção do Movimento Escola Moderna. Aliás, grande parte da sua formação pessoal, reconhece o próprio, é sustentada neste movimento.
Trabalhou também no ramo educacional da Faculdade de Letras de Lisboa, ao longo de nove anos, e na formação de professores na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas na Universidade Nova de Lisboa e na Universidade de Évora. Nos últimos anos tem trabalhado na licenciatura em Ciências da Educação da FPCE/UL, na área das Práticas Educativas, da Avaliação, da Planificação e da Investigação, bem como na Profissionalização em Serviço e em cursos de pós-graduação em Desenvolvimento Curricular. Tem realizado diversas acções de formação contínua de professores, inclusivamente em escolas integradas no projecto da Gestão Flexível do Currículo. Este ano vai sair da Universidade para voltar a centrar o seu trabalho nas escolas, porque entende que quem trabalha na formação de professores não deve andar longe do "contacto directo com os alunos".


P - Que comentário lhe merece a recente proposta de reorganização curricular do Ensino Básico?

R - Entendo que o projecto da chamada "Gestão Flexível dos Currículos" é globalmente positivo.
Estou inteiramente de acordo com os seus objectivos, expressos no despacho que está em vigor, o 9590/99, nomeadamente ao visar a promoção de uma mudança gradual das práticas pedagógicas dos professores de modo a que possam responder cada vez melhor à diversidade dos contextos escolares e à heterogeneidade dos alunos, ao pretender enfrentar a falta de domínio de competências básicas por parte de muitos alunos no fim da escolaridade básica e ao visar que todos os alunos aprendam mais e de um modo mais significativo. Estou de acordo com isto. A cem por cento. Este tem sido o meu sonho, a minha utopia, desde há muitos anos.
Ora este projecto, nas medidas que introduz, dá alguns passos ? ainda que tímidos ? no caminho da construção de uma escola onde todas as crianças possam aprender. É assim que eu entendo a introdução no horário de todos os alunos de tempos destinados ao trabalho autónomo destes (as áreas chamadas de "Estudo Acompanhado" e "Área de Projecto") e de um tempo em que os alunos possam conversar abertamente sobre os assuntos que lhes digam respeito, as suas vivências e os seus sentimentos, os seus problemas, que possam discutir o que está bem e o que está mal, possam resolver conflitos, possam apresentar propostas, debatê-las e tomar decisões, em cooperação, no respeito pelo outro e pelos seus pontos de vista, na busca de consensos. A chamada 3ª hora da Direcção de Turma pode e deve ter esta função. A designação não é a melhor, como a própria Sra. Secretária de Estado já reconheceu, eu preferia que se lhe chamasse "Reunião Semanal da Turma". Mas mais importante ainda do que a sua designação é a sua função. Se essa hora for utilizada como referi, penso que poderá dar um contributo inestimável na Educação para a Cidadania das nossas crianças e dos nossos jovens.
O trabalho autónomo dos alunos na escola e na aula é hoje, a meu ver, essencial. Nesse tempo escolar cada aluno pode trabalhar em função das suas características, ao seu ritmo, tendo em conta as suas necessidades e os seus interesses. Pode, em cooperação com o professor e com os outros alunos ? e em interacção com eles ? ir auto-regulando a sua aprendizagem, ajustando o seu trabalho em cada momento. Pode dedicar-se mais a alguma matéria em que ainda tenha dificuldades , recuperar eventuais atrasos; pode treinar mais este ou aquele aspecto; pode explorar com maior profundidade um ou outro assunto; pode pesquisar esta ou aquela matéria, procurar respostas para esta ou aquela questão; pode identificar problemas e intervir sobre eles. Pode ? e deve ? partilhar com os colegas os resultados dos estudos que realizou (sozinho ou em grupo), confrontar as suas aprendizagens com o seu grupo-turma, assim construindo e consolidando os seus saberes. O trabalho de investigação, de descoberta, as produções diversas e divergentes, promovem, na interacção que se estabelece no seio da turma, novos estádios de aprendizagem, favorecem aprendizagens dificilmente alcançáveis com processos pedagógicos assentes na uniformidade e simultaneidade, na transmissão. Isto é, acrescenta-se a dimensão do pensamento divergente (produtor de novos saberes) em diálogo com o pensamento convergente. Mas há que, regularmente, verificar as aprendizagens realizadas confrontando-as com os programas oficiais.
A desmotivação dos alunos ? de que os professores tanto se queixam ? tem tendência, quando avançamos para estas metodologias, a reduzir-se substancialmente, enquanto que o nível das aprendizagens e dos resultados escolares tem tendência a aumentar.
Não estou é muito seguro de que o Ministério da Educação esteja a tomar as medidas necessárias a que tal se concretize e venha a ser uma realidade na generalidade das nossas escolas.
A proposta de reorganização curricular do Ensino Básico recentemente divulgada traz alguns avanços positivos relativamente à discussão que se vinha travando em volta da gestão flexível do currículo. Um desses aspectos positivos é a forma como se refere a algumas das novas áreas curriculares não disciplinares (ou transversais como agora lhes chama), como é o caso da Educação para a Cidadania. Foi uma área muito polémica, acerca da qual existiam perspectivas completamente antagónicas, e penso que neste aspecto o novo documento conseguiu ser equilibrado e mais consensual, permitindo que as várias posições manifestadas aí encontrassem eco de forma mais ou menos harmoniosa.
Em relação à área de Projecto ? que na minha opinião devia ter a designação "projectos", no plural ?, é infeliz no título, mas o texto está redigido de uma forma muito mais positiva, já que esclarece que os alunos devem participar nas várias etapas dos projectos, inclusivamente na sua concepção. E este aspecto é importante porque, se nos situarmos do ponto de vista da aprendizagem dos alunos, não é muito vantajoso que eles realizem projectos que os professores decidem por eles, como acontecia em muitas das práticas da Área-escola. Já Platão dizia que ser escravo é executar os projectos concebidos pelos outros?
Existe um outro aspecto que, apesar de não me parecer constituir um problema em si, está a levantar alguma polémica: as aulas de noventa minutos. É um falso problema, já que a proposta está redigida de tal forma que permite aos professores e às escolas organizarem os tempos lectivos tanto em blocos de 90 como de 45 minutos.
Considero esta medida um passo em frente, já que, sabe-se hoje, o clássico tempo de aula de 50 minutos dificulta que os alunos tenham um papel activo nas aprendizagens. A única questão que se poderá levantar é se 90 minutos será ou não um tempo apropriado para uma aula expositiva ? para os alunos do ensino básico é, de facto, exagerado.
Mas estes 90 minutos pressupõem uma mudança da prática dos professores. E este é que é o principal problema. No entanto, não tenhamos ilusões: as práticas dos professores não vão mudar apenas porque o decreto diz que elas devem mudar. Aqueles professores que não quiserem, não souberem ou não puderem utilizar metodologias mais activas podem, de qualquer forma, dividir entre duas disciplinas (dois professores) o bloco de 90 minutos, ficando com 45 minutos cada. A proposta do ME contempla esta hipótese.
Há ainda outros problemas que nesta proposta de reorganização curricular não estão resolvidos, nomeadamente no que diz respeito ao elenco de disciplinas. O caso da área da Educação Artística e Educação Tecnológica é o que levanta mais problemas, embora não seja o único. É necessário continuar o debate e a procura de soluções, que se desejam tão consensuais quanto possível.

P - Há quem critique a presente proposta referindo-se a ela como um decalque do Projecto de Gestão Flexível do Currículo. Concorda?

R - Esta proposta materializa a versão mais recente do Projecto de Gestão Flexível do Currículo. E devo dizer que aderi às ideias centrais deste projecto desde o primeiro momento, porque me pareceu que ele criava potencialidades de mudarmos alguma coisa na escola. Não estou a dizer que mudará tudo, nem que todos irão mudar, mas abriram-se perspectivas de intervenção junto dos professores no sentido da mudança e da inovação das suas práticas que, dessa forma, podem contribuir para melhorar os resultados dos alunos.
Mas, ao mesmo tempo que se verificam inovações nesta nova proposta, existem outros aspectos que me preocupam. Um deles diz respeito à avaliação. Isto porque se propõe que os alunos sejam avaliados numa escala de um a cinco nas diversas disciplinas e também na área de Projecto, enquanto que serão avaliados de forma descritiva nas restantes áreas. Esta medida corre o perigo de desvirtuar as potencialidades da área de Projecto, repetindo as experiências negativas da Área-Escola, já que o projecto seria avaliado em igualdade de circunstância com as restantes disciplinas, significando que ele rapidamente passaria a ser entendido como mais uma disciplina. O que, a acontecer, seria profundamente redutor. Espero que os decisores sobre esta matéria ainda corrijam este aspecto, que a meu ver é de grande importância.

P - Pensa que os professores e as escolas estão preparados para responder ao desafio? Que mudanças será necessário introduzir para que a escola não assente na mera transmissão de saberes, mas construa uma cultura de construção de saberes?

R - Este projecto assenta exactamente nesse pressuposto que referiu. Espera-se dos professores uma alteração profunda nas suas práticas profissionais e pedagógicas ? aquilo a que alguns autores se referem como uma revolução "coperniciana" da educação ?, as quais deverão deixar de estar centradas na transmissão dos saberes para se centrarem na aprendizagem e na participação activa dos alunos na construção dos seus saberes.
A maioria dos professores não tem hoje uma prática profissional centrada na promoção das aprendizagens e que atribua aos alunos um papel activo, porque não foram formados nesse sentido ao longo das últimas décadas. E é ainda no modelo de transmissão de saberes que se apoia a formação inicial. Este é o principal problema, e não vi, até agora, qualquer plano credível por parte do Ministério da Educação no sentido de alterar a situação.
Temos de pensar que os professores trabalham hoje num contexto de heterogeneidade e que, nesse sentido, a formação ? quer inicial quer contínua ? deve apostar em práticas e processos centrados nas aprendizagens e nas chamadas pedagogias diferenciadas, assentes na cooperação e na interacção no seio da turma.
Mas a formação contínua levanta uma outra questão. Se se pretende que os professores inovem é necessário ? como a investigação tem vindo a mostrar ? reunir simultaneamente condições de natureza pessoal e de natureza formativa. A formação, só por si, não pode mudar uma pessoa que não queira mudar. Mas também não basta que uma pessoa queira mudar para que consiga mudar. A mudança das práticas dos professores "em serviço" passa sobretudo por uma reflexão "entre pares" , a qual tem que ser contextualizada. É uma reflexão sobre a acção, realizada com os seus próprios colegas. Assente, claro está, na partilha, na troca de experiências, de materiais, de aspectos bem sucedidos, de outros mal sucedidos para os quais se procuram soluções em conjunto, de alegrias, de angústias? no fundo, de tudo aquilo de que é composto o quotidiano do exercício da profissão.
Não pretendo negar o papel que alguém exterior à escola possa ter. Até porque há um aspecto muito importante: ao operar estas mudanças os docentes criam sempre alguma insegurança e destabilização, e tem de haver alguns elementos que lhes dêem alguma segurança. Alguém dentro do grupo de autoformação (ou o próprio grupo) ou alguém exterior, que lhes transmita alguma segurança e alguma confiança.

P - Quem são esses elementos exteriores à escola a que se refere?

R - Podem ser pessoas muito diversas. Mas é necessário que tenham plena aceitação e que possam ajudar a reflectir a partir das práticas quotidianas que se quer mudar, apontando caminhos perante as dificuldades surgidas. De preferência, outros professores, seus pares, que tenham já práticas de inovação. O relato de práticas organizadas, consistentes, que possam servir de referência, encerra potencialidades importantes e tem um papel a desempenhar. Podem ser relatos escritos ou, preferencialmente, testemunhos de viva voz, feitos pelos seus intervenientes, e que possam ser discutidos em grupo de formação cooperada.
Nada impede que possam ser pessoas, ou equipas, que trabalhem no âmbito do Ministério da Educação, das Direcções Regionais de Educação, dos Centros de Área Educativa ou dos Centros de Formação de Professores que apoiem esta mudança. Por vezes podem também ser alguns académicos que ajudem a reflectir as práticas e contribuam com algumas perspectivas teóricas. Entendo que todas estas entidades, e muitas outras, têm um papel a desempenhar. Mas esse papel não é de natureza administrativa, é de natureza pedagógica. Também não é de natureza meramente teórica, embora a teoria possa ter aqui uma função a desempenhar. E, em meu entender, não é qualquer pessoa que poderá desempenhar esse papel. Implica que essas pessoas saibam de que forma se pode trabalhar num modelo de pedagogia diferenciada, centrada na cooperação, que promova as aprendizagens.
Hoje em dia há uma grande confusão à volta das questões da diferenciação. E eu tenho algumas reticências relativamente ao vocabulário que por vezes é utilizado. Por exemplo: fala-se hoje muito em flexibilização curricular. Acho que a designação de gestão flexível do currículo está muito mais correcta do que flexibilização curricular, porque nesta última pode entrar tudo, por vezes concepções diametralmente opostas, e fica uma salganhada.
No nosso país, como provavelmente noutros, o facto de haver um currículo nacional e aprendizagens que todas as crianças devam realizar é, na minha perspectiva, um factor de democracia. Se tivermos currículos diferentes para alunos diferentes, isto pode levar-nos por caminhos muito ínvios. E já existem caminhos muito ínvios no nosso sistema educativo.
Estou a referir-me nomeadamente aos currículos alternativos, que são uma forma de flexibilização. Mas uma flexibilização que se faz ao invés da promoção de aprendizagens comuns a todos os alunos. Os currículos alternativos e o projecto da "gestão flexível do currículo" situam-se em perspectivas de flexibilização substancialmente diferentes, até mesmo opostas. Neste projecto os programas mantêm-se, para todos os alunos. Não há programas paralelos para crianças oriundas de meios sócio-culturais desfavorecidos (os programas paralelos, que tal como na geometria nunca se encontram, são uma forma de exclusão, escolar e social, e não de inclusão, apesar das ilusões de uns quantos professores, alimentadas no interior do sistema nos últimos anos). Na "gestão flexível do currículo" há é uma definição de aprendizagens nucleares... ou seja, há que definir um currículo nacional onde se identifique aquilo que é essencial, contemplando embora dimensões que possam ser mais exploradas por uns ou por outros, em função de contextos e situações diversas, competindo aos actores locais (professores e alunos) a decisão de optarem mais por esta ou aquela matéria. Mas sem prejuízo da realização de determinadas aprendizagens por todos os alunos a nível nacional. A existência de um currículo nacional (que pode, é claro, ser gerido de forma flexível) é, no nosso país, um factor de democracia?

P - Isso está previsto nesta proposta...

R - Está previsto, mas neste momento temos, além das chamadas competências gerais e transversais, apenas as competências essenciais para Português e Matemática, que se encontram ainda em discussão e são bastante discutíveis, sobretudo no caso do Português. Aquilo que foi feito para o Português, na minha opinião, representa um retrocesso no que respeita à concepção do que é a aprendizagem de uma língua. E é difícil de compreender porque é que se começou exactamente por um dos poucos programas que não só já definia o que eram os conteúdos nucleares dessa disciplina como também é aquele que, a meu ver, é mais avançado nas propostas metodológicas que faz, prevendo práticas de diferenciação pedagógica, nomeadamente de trabalho autónomo na sala de aula, estudo individualizado e projectos, antecipando-se àquilo que agora se designa por "estudo acompanhado". Eu diria mesmo que tudo quanto se apresenta como inovador na "Gestão Flexível do Currículo" já está presente nos programas de Língua Portuguesa que estão em vigor.

P - Estamos ainda longe de uma escola para todos, como o demonstra a elevada taxa de insucesso escolar em Portugal. Esta proposta tem condições para contrariar esta tendência?

R - Eu diria que é uma resposta que no plano legislativo procura apontar nesse sentido. Mas uma coisa é o plano legal, outra é o plano da realidade. Tenho conseguido, juntamente com alguns professores, em algumas escolas, que as taxas de insucesso comecem a manifestar tendência para diminuir. São precisamente os professores que apostaram neste processo e que começaram a mudar as suas práticas (isto é, aqueles que deixaram de ter essas práticas exclusivamente transmissivas para centrarem o processo pedagógico mais na aprendizagem activa dos alunos) que agora começam a verificar que os seus alunos têm melhores resultados do que nos anos anteriores. Refiro-me aos professores que quiseram mudar práticas e efectivamente começaram a mudar. Mas numa escola nunca mudam todos ao mesmo tempo. Os processos de mudança das práticas dos professores, de inovação pedagógica, são relativamente lentos e complexos. Às vezes implica até que se mude mesmo por dentro, como pessoa. Mas penso que aqueles que já iniciaram o processo de mudança, embora ainda precisem de ser apoiados, manifestam alguma satisfação e podem já ajudar outros a mudar também.
Este projecto não é a solução para todos os males, de maneira alguma, mas é um passo, um pequeno contributo. Mesmo no plano simbólico, das representações das pessoas, criou uma dinâmica nas escolas que permite agir no sentido de transformar as práticas de uma série de professores.

P - Tendo trabalhado directamente com os professores nas escolas, que dificuldades e constrangimentos sentiu da parte deles?

R - A princípio senti que as pessoas não tinham informação e não viam caminhos para materializar as ideias propostas no projecto de gestão flexível do currículo. O estudo acompanhado, por exemplo. Do meu ponto de vista, deve ir de encontro aos interesses e às necessidades dos alunos ? e numa turma os alunos têm interesses e necessidades diferentes uns dos outros ?, atendendo às características individuais. Por exemplo, pode ser produtivo não estarem todos a fazer a mesma coisa simultaneamente.
Dos contactos que tenho travado, quando os professores iniciam este processo, sem informação sobre a forma como podem adoptar este modelo de diferenciação, e sem os instrumentos necessários, a sua tendência é a de continuar "a dar aulas", isto é, a praticar exclusivamente (ou quase) o modo simultâneo. Continuam a fazer aquilo que sabem fazer. Mesmo que dividam a turma de Estudo Acompanhado em dois grupos, metade para cada professor, já que no Estudo Acompanhado estão dois professores ao mesmo tempo, continuam a praticar o modo simultâneo, isto é, todos os alunos fazem as mesmas coisas ao mesmo tempo, independentemente das necessidades que apresentam. O que, convenhamos, é um desperdício. Quer dos professores quer dos alunos. Estou a referir-me, é claro, aos professores que não estão preparados para a mudança, que não dispõem nem da formação profissional nem dos instrumentos necessários para implementar cabalmente as aquilo que este projecto lhes pede. E não são tão poucos como isso?

P - A que instrumentos de trabalho se refere?

R - Estou a referir-me a diversos tipos de instrumentos, nomeadamente de organização e de planeamento do trabalho, em função das necessidades, dos interesses e das características dos diversos alunos. Para que este possa tomar decisões conscientes sobre o que irá estudar, aprender ou investigar, é preciso que saiba o que é suposto aprender. Ou seja, os programas não podem ser exclusivamente do conhecimento dos professores. Mas muitos alunos dificilmente entenderão a linguagem técnica em que estão redigidos. É preciso, portanto, descodificá-los, traduzi-los numa linguagem acessível aos alunos e que constantemente sirvam de referência quer para o professor quando organiza o processo, quer para a turma no seu conjunto, quer para o aluno individualmente. Essa descodificação do programa é, na minha opinião, de grande importância.
São necessários instrumentos de registo do trabalho realizado por cada aluno e do planeamento que cada um vai fazendo do trabalho que se propõe realizar.
São também necessários instrumentos de regulação das aprendizagens. Por exemplo, listas de verificação através das quais cada aluno possa controlar o que já sabe e o que ainda lhe falta saber, aquilo que já é capaz de fazer ou que ainda não faz bem, de modo a poder tomar decisões (em cooperação com o professor e com os restantes colegas) sobre o que vai fazer a seguir. A avaliação formativa ? ou aquela a que alguns autores chamam "avaliação formadora" ? deve estar nas mãos do aluno. Embora com o auxílio do professor (e dos colegas), ele deve ser capaz de identificar os seus progressos e as suas dificuldades: o que já sabe, o que ainda não sabe bem, o que é suposto saber e ainda não sabe.
Algumas pessoas têm defendido que o Estudo Acompanhado se destine apenas aos alunos com dificuldades de aprendizagem. Não estou de acordo. De forma alguma. É por esta razão que a legislação prevê ? e muito bem ? que o Estudo Acompanhado esteja no horário de toda a turma.
Mas para o professor poder acompanhar o estudo de alguns alunos é necessário existir um tempo de trabalho autónomo na aula, em que os outros alunos estejam também a trabalhar. É neste sentido que o professor não pode dispor apenas do manual, do giz e do seu corpinho... Tem de haver materiais com que os alunos trabalhem autonomamente: ficheiros, livros, acesso à internet, diferentes manuais à sua disposição, etc., etc., etc. Uma grande variedade de fontes de informação, de treino e de pesquisa. Estando o trabalho de toda a turma organizado, havendo materiais diversos de suporte para o trabalho de cada um e sabendo cada um o que vai fazer (a organização participada pelos alunos é crucial), o professor fica liberto para poder apoiar mais em particular este ou aquele alunos ou grupo de alunos. Ora dá apoio aqui, ora dá apoio ali, ora dá apoio a outros ainda. Em função das necessidades de cada um.
Outra das dificuldades que identifiquei nas escolas é o facto de os professores terem dificuldade em pôr os alunos a trabalhar em projecto ? mais uma vez porque não obtiveram formação nesse sentido. Isto manifesta-se sobretudo em projectos que os alunos assumam como seus. Muitos docentes adoptam a perspectiva de que um projecto é para toda a turma, ou até mesmo para várias. O que é muito redutor do que é trabalhar em projectos. Não quero com isto dizer que não haja possibilidade de todos os alunos de uma turma trabalharem num mesmo projecto, mas dado que os alunos têm diferentes interesses é importante que o professor lhes dê condições para eles poderem escolher projectos diferentes dentro da mesma turma: ou a partir de aspectos dos programas, ou de assuntos que lhes despertam a curiosidade e que se proponham a investigar, ou de temas ou problemas que decorrem de situações vividas, sobre os quais eles podem até querer intervir? O que significa que numa turma poderá haver alunos a trabalhar, ao mesmo tempo, em projectos diferentes uns dos outros.
Tudo isto só terá sentido e utilidade para toda a turma se houver uma etapa onde os projectos e os seus resultados sejam comunicados à turma. Uma partilha de saberes que, no meu entender, é muito rica e potenciadora da aprendizagem.
Partindo da minha experiência pessoal e dos contactos que tenho estabelecido com outros professores, nomeadamente no âmbito do Movimento Escola Moderna, tenho verificado que os alunos, quando trabalham autonomamente nos seus projectos e nos seus planos pessoais de trabalho, em interacção e cooperação uns com os outros, não ficam a saber menos. Pelo contrário. Quando os professores conseguem implementar estratégias de diferenciação pedagógica em cooperação e interacção, o desempenho dos alunos é melhor. Não só aprendem a estudar e a recolher informação como desenvolvem competências que hoje as entidades empregadoras procuram: capacidade de adaptação, de pesquisa, de iniciativa, de intervenção, mudança, procura de soluções para os problemas e para lidar com o imprevisto.
A escola ainda está orientada para uma aprendizagem feita em competição, mas existem estudos que mostram que uma aprendizagem feita em cooperação é muito mais produtiva, muito mais rentável do que se for feita em ambiente de competição.

P - O prazo de obrigatoriedade do estabelecimento deste novo modelo de organização curricular deverá ser igual para todas as escolas?

R - Penso que este é um problema sério. Está previsto nesta proposta que este modelo entre em aplicação generalizada a todas as escolas no ano lectivo 2001/2002. Todas as escolas do ensino básico, desde o 1º ciclo ao 7º ano de escolaridade, terão de entrar neste processo já em 2001. Tenho receio de que nem todas as escolas estejam preparadas para darem esse passo.
Este projecto arrancou há dois anos em nove escolas, no ano passado avançou para 33, este ano funciona em 93. Mas destas 93 eu conheço várias onde não estão a ser aplicadas as linhas de orientação presentes na legislação. Não podemos pensar que todas elas atingiram o espírito desejado. Antes de avançar para a obrigatoriedade generalizada, há que, em meu entender, consolidar algumas mudanças nas práticas nas escolas que decidiram entrar voluntariamente neste processo. Muitas escolas ainda não têm sequer uma reflexão consolidada sobre isto, estão ainda muito longe de perspectivarem sequer de que forma poderão materializar as inovações curriculares previstas neste projecto. Tenho verificado isto em diversas escolas aonde me tenho deslocado.
Estou convencido que seria mais aconselhável que o 'timing' da generalização fosse outro. Ao obrigar-se uma escola a avançar não significa que ela esteja preparada para o fazer. As escolas que aderiram fizeram-no voluntariamente, porque sentiram estar preparadas ou que poderiam fazê-lo.
Penso que deveria continuar a fomentar-se a entrada voluntária de cada vez mais escolas, apoiando-as nesse esforço. Isso seria mais frutuoso para a mudança de práticas que se pretende. Aliás, refere-se no próprio diploma que "o projecto de Gestão Flexível do Currículo visa promover uma mudança gradual nas práticas de gestão curricular nas escolas do Ensino Básico, com vista a melhorar a eficácia da resposta educativa aos problemas surgidos da diversidade dos contextos escolares" e "fazer face à falta de domínio de competências elementares por parte de muitos alunos à saída da escolaridade obrigatória". Estou plenamente de acordo. A mudança só poderá ser gradual. E tem que contribuir para a resolução dos problemas detectados. Este projecto tem de servir estes objectivos, já enunciados na legislação. Se não servir para isto, então não serviu para nada. Pela minha parte, é para isto que me empenhei profundamente neste processo, é para isto que eu quero dar o meu contributo, por muito modesto que possa ser.

Entrevista conduzida por Ricardo Jorge Costa


  
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Edição:

N.º 92
Ano 9, Junho 2000

Autoria:

Júlio Pires
Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação de Lisboa
Júlio Pires
Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação de Lisboa

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