Página  >  Edições  >  N.º 92  >  Um Olhar Sobre a Reorganização Curricular do Ensino Básico

Um Olhar Sobre a Reorganização Curricular do Ensino Básico

Solicitou-me este jornal uma opinião sucinta sobre a reorganização curricular do ensino básico actualmente em debate e, para o fazer, vou recuar vinte e poucos anos atrás para recordar o que eram as reivindicações dos "militantes pedagógicos" da altura no desejo de fazer da escola uma instituição mais democrática, onde se desenvolvessem práticas de relação com a vida e fossem criadas condições para uma efectiva igualdade de oportunidades. E faço-o com o saber da experiência e o saber da prática pois era, nesse tempo, professora do 4º grupo do actual 2º ciclo do ensino básico e orientadora de estágios pedagógicos de professores. Nessa altura, questionávamos a adequação da organização dos tempos em "fatias" de 50 minutos, a compartimentação das disciplinas e a dificuldade em desenvolver projectos interdisciplinares que facilitam a aquisição do saber de uma forma integrada. Questionávamos a selecção dos conhecimentos e que nos fazia (e faz) pensar na existência de duas lógicas - uma, a da escola, que apresenta conceitos afastados das experiências da vida e outra, a da vida, que proclama que a formação tem de estar intimamente relacionada com a vida. E, nesta linha, insurgiamo-nos contra a extensão dos programas e a não presença de conteúdos significativos para muitas das crianças e jovens que passaram a estar presentes na escola, o isolamento da escola face à comunidade (ou, olhando de um outro ângulo, o não envolvimento dos vários parceiros na co-responsabilização social pelo acto de educar), o predomínio da instrução face à educação e ao desenvolvimento de competências que permitem aos alunos aprender a ser, a tornar-se e a intervir. Recordo, também, as críticas que fazíamos à organização do trabalho escolar por colocar em situação muito desigual os alunos: por um lado, aqueles que pertencem a famílias ou grupos que legitimam a escola e estimulam os alunos a comportarem-se como o cliente-ideal fornecendo-lhes apoios para além do tempo escolar; por outro, os alunos que pertencem a grupos que não estão familiarizados com os códigos escolares, ou não representam a escola como algo importante, e que não encontram na escola condições para romperem com estas situações.

Mais tarde, numa fase em que a docência na área da Teoria e Desenvolvimento do Currículo me permitiu ampliar a reflexão que até aí tinha feito, questionei: a qualidade de um currículo que é construído à prova dos professores, isto é, que define todos os elementos e pormenores deixando àqueles que o vão pôr em prática o mero papel de funcionarem como correias de transmissão do que é prescrito de forma universal e que se dirige ao aluno médio-tipo, o aluno abstracto que se pensa que existe, mas que não é o aluno real; a possibilidade de uma inovação curricular que não parta das escolas e dos professores ou que, pelo menos, não os tenha como parceiros no reconhecimento do interesse e legitimidade dessas acção; o sentido de uma formação e de um trabalho que é desenvolvido no isolamento da sala de aula e de um grupo apenas constituído por um professor e os seus alunos, esquecendo os outros professores, os recursos locais e o envolvimento de diferentes parceiros educativos; a dificuldade de um sistema centralizado responder positivamente ao desafio de uma "escola para todos". Tive mais consciência de como é inargumentável que uma "escola para todos" defina uniformemente o mesmo tipo de objectivos, conteúdos e experiências, e recorra aos mesmos materiais e organização do tempo, ou seja, que faça o culto do unívoco e que seja indiferente às diferenças, não respeitando a heterogeneidade e a diversidade e não se estruturando num suporte de dinâmica e de interacção. Uma "escola para todos", e julgo que estão de acordo, tem de reconhecer a diversidade e, por isso, organizar-se em torno de uma diferenciação pedagógica onde cada um aprende e cresce, partilhando com os outros as suas experiências e deles recebendo elementos para o seu desenvolvimento.

Por tudo isto, tenho, evidentemente, de estar de acordo com os princípios que norteiam esta reorganização curricular e com algumas das práticas educativas que ela implica, como sejam: a maior articulação entre as disciplinas (de modo a proporcionar uma formação transversal na abordagem de temas ou de situações e que dê novos sentidos às actividades escolares); o recurso a processos que estimulem a interacção da escola com a comunidade e que permitam o desenvolvimento de um projecto interdisciplinar que leve ao desenvolvimento de um currículo significativo e funcional (porque proporciona condições aos alunos para organizarem os saberes decorrentes das suas experiências de vida, mas também para adquirirem saberes relacionados com as experiências dos outros); a criação de um clima que envolva os alunos nos processos de aprendizagem e na co-responsabilização pelo seu projecto de formação (lembremo-nos que o conceito de educação tem de estar associado à ideia de mudança, mudança essa comandada pelo próprio indivíduo).
É evidente que o desenvolvimento de práticas deste tipo implica pensar na organização e gestão do tempo, na organização do trabalho escolar, na organização de processos que permitam, não apenas a aprendizagem da cidadania, mas também, e principalmente, o exercício dessa cidadania (portanto não apenas a abordagem de conteúdos mas, principalmente, a vivência de situações e a existência de um diálogo onde se desenvolvem aprendizagens sociais num confronto de experiências de vida). E implica a construção, pelas equipas de professores, de projectos curriculares (de escola e de turma) que, articulando-se com o projecto educativo, reinterprete os objectivos, conteúdos e competências propostos a nível nacional por forma a inseri-los num plano didáctico e pedagógico significativo para a população escolar a quem ele se destina e que mobilize os recursos locais existentes. E tudo isto implica, também, a existência de condições institucionais.

Carlinda Leite
Professora Associada da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação
da Universidade do Porto


  
Ficha do Artigo
Imprimir Abrir como PDF

Edição:

N.º 92
Ano 9, Junho 2000

Autoria:

Carlinda Leite
Fac. de Psicologia e de Ciências da Educação da Univ. do Porto
Carlinda Leite
Fac. de Psicologia e de Ciências da Educação da Univ. do Porto

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo