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Crónica de uma Professora Angustiada...

Helena era, na gíria dos seus alunos, uma professora altamente. Desenvolta e decidida, enfrentava o que tinha que enfrentar, com mais ou menos sucesso, no seu trabalho quotidiano com as turmas do 10º e do 11º anos que lhe tinham cabido em sorte. Se algumas vezes perdia a pose, parecia que, pelo menos, ia mantendo intacto o prestígio na dura escala de avaliação que aqueles bandos de adolescentes utilizavam para adjectivarem os seus professores.
A maioria dos colegas achava-a, contudo, excessivamente opinativa para alguém tão jovem e inexperiente, chegando alguns a augurar-lhe os mais diversos tipos de dissabores profissionais, sobretudo, se persistisse em acreditar, qual padre Américo em versão feminina, que não há maus rapazes neste mundo. O estatuto de professora rebelde não surgira, no entanto, por acaso. Tinha-o adquirido rapidamente, quando recém-chegada àquela escola, defendeu as pretensões dos alunos de uma das suas turmas do 11º ano relativamente ao projecto que estes defendiam para a Área-Escola, o que, nesse momento, contrariava a vontade manifestada de forma veemente por alguns dos outros professores.
Helena, apesar das aparências, não convivia de forma tão harmoniosa com as suas decisões como os seus alunos e os seus colegas poderiam pensar. Era uma mulher muitas vezes dividida quanto às opções que assumia, vivendo permanentemente a contradição entre a professora que gostaria de ser e a professora que pensava ser. Pertencia ao número de professores que achavam que o Ministério da Educação tinha as costas demasiado largas quando se tratava de justificar apatias profissionais e insucessos vários, apesar de reconhecer que os constrangimentos curriculares a que todos estavam sujeitos como professores do Secundário impediam qualquer processo substancial de renovação pedagógica. Julgava que a escola poderia fazer muito mais pelos alunos do que aquilo que efectivamente fazia, mas não deixava de reconhecer que alguns daqueles miúdos necessitavam de coisas que nenhuma escola deste mundo lhes poderia oferecer. Aos discursos amargos dos colegas contrapunha uma visão mais optimista e empenhada, apesar de não saber o que fazer com a Magda, uma rapariguinha que nunca tinha conseguido obter mais do que um quatro em todos os testes que havia realizado na disciplina de Inglês. Conseguia encontrar mil e uma justificações para as dificuldades da miúda, mas não deixava de se sentir incomodada quer pelo inêxito da aluna quer face à sua impotência como professora perante situações escolares do género. Chegou mesmo a oferecer-se para lhe dar explicações de graça, mas a rapariga não pareceu mostrar-se muito interessada.
Por muito que lhe custasse reconhecer era face a alunos como a Ana ou o Artur que sentia como ser professor poderia ser uma profissão suficientemente gratificante. A Ana, em particular, parecia-se com ela, na mesma idade, há dez anos atrás. Uma leitora quase compulsiva; ávida por qualquer discussão sobre temáticas como a existência de Deus, o sentido da vida humana ou a construção de uma sociedade mais justa; sempre pronta a participar em projectos que abanassem a modorra de um quotidiano demasiadas vezes enfadonho.
Apesar de tudo, apesar das suas dúvidas e contradições, não era mulher para ficar sentada num canto a meditar, hesitando sobre o que deveria ou não fazer, sobre o que era ou não era pedagogicamente correcto. Lidava com o seu quotidiano profissional de uma forma extremamente voluntariosa e intuitiva, não deixando transparecer a angústia que ocasionalmente a assaltava.
As relações com os colegas, oscilando entre o superficialmente amigável e o episodicamente crispado, não permitiam que estas e outras questões pudessem ser objecto de uma discussão suficientemente séria e sensata. Para além disso, e apesar da imagem de maturidade que transmitia, não deixava de se sentir algo insegura face a professores que na sua maioria tinham uma experiência profissional incomparavelmente superior à sua. Embora detestasse quer o modo como normalmente abordavam e interpretavam o comportamento dos alunos, quer a atitude de desconfiança permanente que manifestavam face ao desempenho e aos comportamentos que estes assumiam, quer ainda aquela espécie de guerrilha em que se envolviam com os jovens pelas razões mais comezinhas, não podia deixar de pensar que deveria ser profundamente desgastante estar numa escola como se de uma trincheira se tratasse. E reconhecia que nem sempre a responsabilidade por uma tal atitude poderia ser exclusivamente atribuída aos professores, a quem, hoje, se pede tudo sem cuidar de discernir se as exigência do Ministério, e da sociedade em geral, são, no mínimo, realistas e, em última análise, passíveis de ser assumidas como uma tarefa profissional. Também neste âmbito não conseguia viver sem se encontrar dividida entre a lealdade corporativa e a incompreensão crítica de alguém para quem a escola tinha uma missão social e educativa a cumprir.

Ariana Cosme / Rui Trindade
Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação - Universidade do Porto


  
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Edição:

N.º 91
Ano 9, Maio 2000

Autoria:

Ariana Cosme
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. de Porto
Rui Trindade
Faculde de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto
Ariana Cosme
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. de Porto
Rui Trindade
Faculde de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto

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