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Nada se Cria Nada se Perde

A angústia que se vive nas nossas escolas é tão grande que, no mínimo, tem de ser repartida.
Nada se cria, nada se perde, tudo se transforma. Foi o que nos ensinaram. Se nos ensinaram bem, quer dizer que tudo está em permanente transformação. Não vale portanto a pena abrir a boca de espanto permanente por causa das transformações que permanentemente ocorrem. Talvez valha a pena, sabendo que a mudança é permanente, aprender a viver com ela e a tentar entender o sentido da mudança.
Ao que parece a mudança contém os ingredientes da permanência. Ou podemos dizer que a mudança é sempre a herança histórica de qualquer coisa. E muda-se por força das coisas ou porque queremos que se mude em determinados sentidos. A luta política, num certo sentido, é o resultado da divergência no dar sentido às mudanças que todos julgamos necessárias. Conservadorismo e progresso. Aparentemente o primeiro seria a negação da mudança e o segundo a sua exigência. Mas só aparentemente. Na realidade o conservadorismo não nega a mudança, antes a procura como forma de garantir a conservação de determinados interesses e os defensores do progresso pedem a mudança, porque enojados do que têm, querem a mudança em função de outros modos de viver e de outros interesses.
Estejamos hoje atentos às palavras e aos seus significados. As palavras dizem-nos muito do que nós queremos que digam ou do que somos capazes de entender em função da nossa experiência histórica. Hoje, a multiplicação das fontes de difusão das palavras tornam mais difícil deslindar o seu significado e de certo modo democratizaram-nas. As palavras e as frases vão perdendo a pertença ideológica. Algumas frases e palavras já foram monopólio de pessoas e de ideologias e de grupos de interesses. O mesmo acontece a certas formas de acção, de "luta" e de comportamento público e privado. "A luta continua" já teve registo de autoria. Hoje pode, e é usada, porque foi apropriada, por grupos de pessoas e de interesses contra os quais já foi usada no passado. No tempo que eu vivo não estranho se um dia ouvir gritar na rua "fascista amigo o povo está contigo". Tanto mais que já ouvi gritar "polícia amigo o povo está contigo". Grito e palavra de ordem impensável nos meus tempos de juventude. Não se espantem se o porta bandeira de tal manifestação for um líder de um qualquer partido da extrema direita. Nos meus tempos de juventude, as calças surradas foram apropriadas pelo mercado e comercializadas por bom preço. Não admira a actual "privatização" do que ainda pensamos ser simbolicamente pertença desta ou daquela ideologia.
Nada se cria, nada se perde, tudo se transforma. Transformam-se palavras, métodos, organizações, conceitos. Transformam-se ideologias. As bandeiras mudam de mão. A política é hoje mais exigente. As manifestações, o grito, o protesto, as greves, já não são monopólio de nenhuma facção política. Convém, pois, pensar bem no que fazemos, porque o fazemos e para que o fazemos. Estas velhas exigências ganham agora ainda mais sentido.
Os partidos políticos, porventura uns mais do que outros, deixaram de ser o que o velho Gramsci chamava de intelectuais colectivos. Já não são os colectivos que analisam e processam a realidade e menos ainda os que buscam dar-lhe sentido. O mesmo se pode dizer de muitos sindicatos. Uns e outros converteram-se à sociedade de consumo. São agora organizações que trabalham segundo a lógica de mercado, ou seja, agem em função dos interesses imediatos da sua clientela política e não em função de projectos de sociedade. Em países como Portugal, esta perda de identidade e de coerência ideológica é ainda mais perigosa. Perigosa porque não temos sequer uma opinião pública que funcione como elemento crítico e regulador da acção política. Portugal não tem opinião pública o que tem é apenas opinião publicada. O poder da comunicação social e dos fazedores de opinião é aqui desmesurada. É urgente que os nossos universitários saiam "à rua". Abandonem o comodismo do academismo e nos ajudem a pensar o nosso quotidiano.
Fica aqui um apelo. Não façam os académicos o que fazem as ortodoxias políticas (partidárias ou sindicais). Estas multiplicam-se na produção e na ida a acções onde se diz sempre a mesma coisa. Vão lá para ouvirem o que querem ouvir e para reforçarem a convicção de que afinal têm razão. Aos académicos temos de exigir mais. Incomodem-nos, mostrem-nos outros modos de ver. Apontem outros caminhos. Percam o medo de produzir utopias. Dêem-nos material que valha a pena divulgar. Ajudem-nos a pensar na coisa e deixem-se de coisinhas. O vosso umbigo é lindo, mas não passem a vida a olhar para ele, quer sejam homens quer sejam mulheres. Mandem às malvas as tricas e nicas da faculdade. Juntem-se a nós porque em conjunto talvez possamos dar alguma decência à vida que vivemos.
É verdade que nesta era da globalização faz pouco sentido pensar os sistemas de forma isolada. Mas quer-me parecer que o sistema educativo merece uma atenção particular. Este sistema, tal como está, não é autoregulável. Ando há anos a procurar um sistema que o seja. Gostaria de um sistema que fosse capaz de se ajustar, momento a momento, às necessidades dos que o frequentam e da sociedade em que está mergulhado. Mas ainda não é assim. É por isso que ele está sempre a ser reformado, que é como quem diz a ser desregulado. Sem sucesso e com enorme insucesso. Por estas e outras razões os nossos companheiros e companheiras das Ciências da Educação têm aqui um desafio maior. Não é fácil pensar a educação, neste país e nos dias que correm. Mas é preciso fazê-lo. Não faltam pequenas acções de (de)formação. Temos demais. O que falta é pensarmos juntos. Juntar experiência, dúvida, saber, realidade sentida, medo de ousar fazer, revolta, prazer e desprazer...
Companheiros e companheiras das Ciências da Educação juntem-se a nós. A angústia que se vive nas nossas escolas é tão grande que no mínimo tem de ser repartida.

José Paulo Serralheiro


  
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Edição:

N.º 91
Ano 9, Maio 2000

Autoria:

José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.
José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.

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