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A Política da Política

*

seguido de exemplos para inventar o futuro

No actual momento social, ao mesmo tempo que se fossilizam projectos e instituições, emergem novos movimentos e novos processos de transformação.
Porém, no terreno movediço da história, nem sempre existe a capacidade política de adequação organizativa e pilotagem, no interior da mudança, de novas ideias e novos instrumentos operativos. Assim, por exemplo:
0 antigo paradigma, com a sua rigidez conceptual forma entraves ao novo imaginário do paradigma emergente;
As pesadas estruturas espaciais são mais lentas no processo de mudança do que as relações sociais que mudam mais rapidamente;
As respostas técnico-científicas bloqueiam as novas alternativas ecotécnicas, mais adequadas às novas condições ambientais;
Podemos dizer que inúmeros desfasamentos nas ideologias, nas inovações científicas, nas transformações sociais, produzem dificuldades na ritmação coordenada da mudança societal.
Deste modo, a transformação social faz-se com perturbações de avanços e recuos, faz-se com disfunções reguláveis mas também com rupturas incontroláveis.
Para nos apercebermos destas interacções sistémicas, não basta termos sensibilidade ecológica para com o ambiente exterior, que observamos. É necessário que o próprio pensamento seja ecologizado, isto é, que o nosso próprio pensamento seja capaz, internamente, de reflectir e revelar os próprios ecosistemas em mudança.
0 modo simbiótico da relação sujeito-objecto, da interacção processo-finalidade ou da reciprocidade entre sistema e agente político, exige, em simultâneo, um processo complexo de compreensão do contexto global em que nos movemos, ao mesmo tempo exige também que nos apercebamos do modo como nos estruturamos nesse contexto, através dos projectos e instrumentos de que dispomos.

As questões que se colocam, são as seguintes:

a) Se queremos a reforma do sistema político não teremos também de reformar os nossos próprios projectos e instrumentos políticos?

b) Se queremos superar o antigo paradigma não deveremos criar novas organizações, novos processos de funcionamento e novas alternativas sociais?

c) A nova problemática social não exigirá novas formas de luta?

Pretendo assim chamar a atenção para a lógica intrínseca dos aparelhos partidários clássicos que se inserem nos dispositivos artilhados do sistema e que se destinam à reprodução societal dum modelo de civilização dominante.

A hierarquia interna dos aparelhos políticos tradicionais, os sistemas de delegação de poder, os projectos e o modo de fazer política e o quadro da luta institucional reflectem o próprio sistema político que se pretende pôr em causa. Ora os mecanismos de reprodução, fazem, mais ou menos, a manutenção homeostática do "modelo". Inúmeros dispositivos disciplinam saberes, adestram hábitos e impõem percursos obrigatórios. Assim, muitas das respostas políticas, resultam de perguntas armadilhadas, dentro do quadro ideológico da sua formulação.

Poderei referir alguns exemplos em que as respostas vêm, muitas vezes, formatadas pelo quadro institucional dessas perguntas:

Diz-se, no parlamento, que uma das questões essenciais em Portugal é a saúde e isola-se a saúde do contexto geral da sociedade. 0 modo de colocar o problema origina assim respostas que não põem em causa a problemática de fundo.

Então, as respostas às questões da saúde aparecem dentro dum parâmetro de funcionalidade, na lógica do sistema: mais hospitais, mais médicos, mais fármacos, mais tecnologia, mais ordem. Deste modo, no quadro político institucional, é difícil relacionar outros parâmetros e exigir concepções profiláticas e não apenas paliativos na aparente eliminação de sintomas.

No entanto, é possível perceber facilmente, fora do quadro estritamente hospitalar, que a problemática da saúde tem a ver com as condições materiais da riqueza de uns e da situação de exclusão de outros, tem a ver com o tipo de agricultura que se pratica, com a qualidade dos produtos alimentares, com a qualidade ambiental em que vivemos, com as condições de trabalho e culturais de que usufruímos, etc.

Estes seriam os parâmetros fundamentais a que se liga a problemática da saúde.

A ausência duma abordagem sistémica e de complexidade na interpretação e solução das problemáticas sociais, tem produzido respostas meramente pontuais e reducionistas que, muitas vezes, se traduzem, no futuro, em "soluções" (entre aspas) mais gravosas.

Em matéria de segurança, este tipo de problemática toma-se ainda mais dramático. Pretende-se aumentar o sistema repressivo, de tal modo que acabaríamos todos, agressores e agredidos, envolvidos pelo mesmo arame farpado. Isto é, prisioneiros dos próprios prisioneiros.

E no campo da ecologia, nomeadamente nas propostas governamentais para a solução dos lixos, advogam-se simplesmente mudanças de poluição, agravando-se até a sua toxidade, Através de panaceias tecnológicas sofisticadas, como as incineradoras, pretende-se iludir a poluição não aceitando a redução, a reciclagem, a reutilização, a renovação e sobretudo o repensar do modelo civilizacional.

Para a criação duma sociedade justa, saudável e livre não basta que a polaridade escravo-senhor, mude de campo . É o próprio campo, isto é, a problemática em geral, que terá de mudar para que não haja nem senhor, nem escravo.

A questão não é simples e talvez não exista uma única resposta. Múltiplas formas de luta serão necessárias e desejáveis.

Sabemos o que não queremos. Porém, teremos que inventar o futuro que ainda não conhecemos.

Em Portugal, creio que a tónica dominante das novas organizações de luta deveria ser a criação de associações auto-gestionárias de cidadãos, com direcção rotativa, de idêntica proporcionalidade de homens e mulheres, com projectos políticos de acção directa e pacífica, de forte cariz artístico e criativo revelando, através de acções exemplares, maior justiça social e propostas que visem um desenvolvimento ecologicamente sustentável.

Será necessário retomar, na história dos movimentos sociais, as sementes que proporcionam projectos criativos dessa luta emancipadora em que o caminho expressa já a própria finalidade desejada:

a) A desobediência civil de Thoreau e Crandhi;

b) A democracia directa e a auto-gestão;

c) A investigação-acção através de mobilizações populares com acções exemplares como as de Danilo Dolci, Lanza dei Vasto e Martin Luther King;

d) Os fóruns populares e as universidades livres, de chamamento alternativo e social, acompanhadas por acções e instalações de "plástica social" como propunha Joseph Beuys;

e) A inventividade de lutas, capazes de articular unidade e diversidade cultural e solidariedade entre organizações diferentes, como no processo de luta dos Chiapas

Estes são alguns dos exemplos para inventar o futuro.

Em lugar de querermos apenas substituir um governo por outro, necessitamos de abrir um espaço de confronto político onde cidadãos livres possam participar noutras formas auto-gestionárias de decidir e gerir a própria vida social.

O que nos deve preocupar é a nova relação, livre e autónoma entre as pessoas, através da democracia directa.

E esta nova sociedade que queremos inventar, terá que construir uma nova civilização ecotécnica em que as relações sociais, justas, saudáveis e livres, tenham como base o desenvolvimento ecologicamente sustentável.
Como muita gente, eu tive também um sonho! Tive um sonho em que havia, não sei em que lugar, um bairro de casas numa serra ou um casario grande numa encosta à beira duma cidade. Não sei se era um convento abandonado ou um monte alentejano...
Havia, isso sim, uma horta grande com pomares e jardins floridos.
Era uma espécie de aldeia ecológica funcionando graças a energias renováveis e reciclando os lixos orgânicos, na fertilização das terras verdejantes.
Este centro de iniciativa social, fez-me lembrar um aldeamento que visitei há mais de 30 anos, na Sicília ocidental, onde o Danilo Dolci, no meio dos camponeses, impunha a desobediência civil, face ao governo mafioso de Matarela.
Mas aquele sítio do meu sonho, parecia-se também com a universidade livre que Makovecs criara, na Hungria, e onde se construíam casas de madeira e se experimentava uma pedagogia diferente com professores e alunos ao serviço da comunidade. Visitei esse local, quando fiz uma longa viagem à boleia até Visegraad, na floresta, junto do Danúbio Azul.
Mas afinal o centro de iniciativa com que sonhara era também o projecto dos estudos gerais do nosso Agostinho da Silva, que um dia encontrei em Setúbal, com alguns amigos, à volta duma grande mesa redonda onde se faziam sapatos de couro, se encadernavam livros e ao mesmo tempo se aprendia a filosofar sobre a autonomia.
0 sonho que eu tive e que já muita gente teve, mostrava-me um sem número de escolas de vida onde se murmuravam vozes de poetas já mortos. Poetas que conseguiram organizações não governamentais, ligadas a autarquias e que trabalharam em aldeias abandonadas, poetas que conseguiram protocolos com várias instituições visando o desenvolvimento social e a sustentabilidade do território. Vozes que juntaram sindicatos, cooperativas, fundações, igrejas, escolas, associações e que lançaram o caminho para inventar o futuro.
Agora aqui, diante de vós, eu já não estou a sonhar, mas tenho aqui escrito, neste papel que vos leio, essa utopia que é também a vossa utopia e que nunca deixei de ter presente.
Trago comigo as perguntas de insucessos e esperanças que quero compartilhar convosco:
Poderemos juntos construir ainda essas ilhas de cultura humana, que transportam de uma forma exemplar o novo paradigma emergente que queremos?
Poderemos formar um ou mais centros de iniciativas que sejam experiências exemplares?
Talvez, começando por uma universidade livre do ambiente, nem que seja durante as férias, mas onde se junte reflexão e formação conjunta, onde se partilhe um modo de vida solidário e se inventem os novos instrumentos e projectos que queremos realizar... talvez possa ser um início possível.
Poderemos criar uma pequena revista que fale dos nossos anseios, que dê voz aos nossos projectos e estabeleça uma rede por onde surja a solidariedade das futuras ilhas societais que deveriam despontar verdejantes, pouco a pouco, neste horizonte mortiço e envenenado da política caduca e sem utopia.

A. Jacinto Rodrigues
Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto

* Texto apresentado, em Março, no Colóquio "Reforma do Sistema Político";
Anfiteatro de Botânica da Faculdade de Ciências de Lisboa


  
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Edição:

N.º 90
Ano 9, Março 2000

Autoria:

Jacinto Rodrigues
Fac. de Arquitectura da Univ. do Porto
Jacinto Rodrigues
Fac. de Arquitectura da Univ. do Porto

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