Página  >  Edições  >  N.º 89  >  Jacinto Rodrigues, Professor, Artista e Humanista, em Entrevista à Página

Jacinto Rodrigues, Professor, Artista e Humanista, em Entrevista à Página

"Não é este
o modelo civilizacional
que queremos"

"O desenvolvimento deve ser
ecologicamente sustentado"

Jacinto Rodrigues é o que pode considerar-se um homem culturalmente multifacetado. Esteve exilado em diversos países europeus durante o regime fascista - do qual fugiu doze anos antes da revolução de Abril -, mas a França acabou por ser o principal país de acolhimento. Foi lá que, ao longo desse tempo, leccionou na Universidade da Picardia, em Amiens, e na Escola Superior de Arquitectura, em Rennes, período durante o qual se licenciou em Sociologia e se tornou Mestre em Urbanismo. Quando regressou a Portugal, foi convidado para leccionar na Escola Superior de Belas Artes do Porto e doutorou-se, mais tarde, em História da Arte. Embora a sua formação de base seja a Filosofia, é, actualmente, professor da Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto. Recentemente, publicou o livro "A Conspiração Solar do Padre Himalaya", uma biografia da vida e obra de um dos mais visionários cientistas portugueses.

P - A escola responde convenientemente às necessidades de formação cultural dos alunos?

R - Não. Não responde a escola, como não responde a universidade ou qualquer outro dos sistemas de formação actualmente existentes. São, de resto, sistemas de inculcação e de reprodução de um saber confinado a um modelo que entende a cultura como uma mercadoria, o que é inaceitável. Embora seja necessário um grande esforço, porque de uma forma hegemónica este sistema ideológico tende a prepertar-se e a impôr essa estratégia mercantil, as escolas têm, apesar de tudo, alguma possibilidade de manobra.
Mas para isso é fundamental que o sistema de ensino não se vocacione simplesmente para as respostas, mas que assente numa cultura de perguntas, através da qual o aluno acabe eventualmente por questionar-se e lutar contra uma sociedade de respostas feitas. Por outro lado, considero ser da maior importância o ensino e a prática artística, porque o modelo pedagógico tradicional funciona em termos mecanicistas, assente na memória, no exame, na nota...
Se quisermos contrariar a tendência hegemónica do processo pedagógico da escola, tal como ele existe, teremos que desenvolver três aspectos que, no meu entender, são muito importantes: por um lado, a tentativa de formação de consciência - inclusivamente a tomada de consciência da engrenagem em que a própria escola se situa -, previligiando a pergunta e não a resposta; em segundo lugar a criação bolsas de actividade artística, para que o elemento aleatório, criativo, possa fazer face ao tal determinismo que o ensino pretende reproduzir; por último, o desenvolvimento de uma prática pedagógica de resistência a este modelo, de crítica em relação à sociedade que vivemos. Particularmente numa sociedade em que a cultura é cada vez mais "iscultural", cada vez mais baseada no espectáculo, não passando de um divertimento barato que se impõe e que impede um verdadeiro processo de reflexão.

P - No mesmo sentido, a formação ecológica também deixa a desejar...

R - Nas questões ecológicas existem, sem dúvida, aspectos muito importantes relacionados com o processo educativo. Creio, porém, existirem duas formas distintas de abordar a ecologia: uma forma que está mais ou menos aceite e que é de bom tom fazer parte dos discursos dos partidos políticos, que se pode designar por ambientalismo. É uma forma de gerir o actual modelo sem mudar o modelo de sociedade em questão. Mas esta perspectiva não altera o problema estrutural, que é o modelo consumista em que vivemos e que conduzirá, inevitavelmente, à esgotabilidade dos recursos.
Mas quando discutimos a ecologia não devíamos discuti-la apenas em termos formais. E neste sentido, a escola, do ponto de vista prático, pode desempenhar um importante papel. Em França, por exemplo, há um projecto do ministério da educação que pretende desenvolver o que eles designam por "equipamentos de qualidade ambiental", através do qual as escolas são construídas de forma a tornarem-se exemplos do ponto de vista espacial, material e bioclimático, para que as crianças e os alunos possam, através da própria vivência, descubrir a lógica inerente à ecologia. E esta parece-me uma significativa proposta para a transformação da mentalidade das pessoas.
As escolas de Trás-os-Montes, por exemplo, cuja maioria não possui condições para suportar o frio rigoroso do Inverno, é um óptimo exemplo onde esta bioclimatização poderia ser aplicada. A médio e a longo prazo, estes edifícios "inteligentes" permitem a recuperação do investimento inicial. Os radiadores a gás, por exemplo, normalmente utilizados para fazer face ao problema, não passam de uma solução imediatista. É isto que as pessoas têm de procurar entender.

P - Qual é então a ideia que define a "nova ecologia", se assim lhe podemos chamar?

R - É uma perpsectiva que não terá mais de dez anos e que assenta no conceito de desenvolvimento ecologicamente sustentado. Ou seja, fazer com o que o homem perceba que tudo o que o rodeia está relacionado num grande ecossistema, e que num ecossistema a origem das energias tem uma esgotabilidade, pelo que temos de arranjar maneira de os resíduos constituirem riqueza e não lixo. Os lixos deviam ser produzidos de forma a serem reciclados e entrar na biosfera de um modo regenerativo.

P - As ideias que preconiza atrás eram já de certo modo defendidas há cerca de cem anos por um padre português que revolucionou o meio científico da altura, de nome Himalaya - cuja obra o Jacinto Rodrigues publicou recentemente em livro - que nessa altura preconizava a utilização da energia solar como fonte energética.

R - Sim, de alguma maneira...

P - Como é que se perdeu essa perspectiva ambiental do progresso?

R - Porque a sociedade, no seu processo histórico, vai tentando procurar respostas e soluções para as suas necessidades de acordo com os contextos. No final do século passado, a sociedade da altura também procurou, conflitualmente, saídas para os problemas que se lhe colocavam. Foi uma época de utilização maciça de combustíveis como o carvão, mas foi também uma época em começavam a surgir inovações tecnológicas que tiravam partido de outras energias. A energia solar, que mesmo antes das experiências conduzidas pelo padre Himalaya era já objecto de estudo no século XIX, começava a ser encarada como alternativa energética.
Acontece que quando o Himalaya tenta mostrar as vantagens da utilização de uma energia renovável - sobretudo no sentido de os países mais pobres poderem aceder a uma energia mais barata para a seu desenvolvimento - estava em marcha um processo industrial baseada numa outra tecnologia: o petróleo, e de uma maneira geral os combustíveis fósseis, que os grandes impérios económicos começavam a tentar impôr. A partir daqui houve bloqueamentos sociais, económicos e políticos que impediram o crescimento destas ideias, porque estas experiências não interessavam a esses grandes grupos monopolistas. De resto, é o que se passa hoje com o problema da energia. Há um bloqueamento político e económico por parte das empresas a quem interessa vender tecnologias pesadas, a chamada tecno-ciência.
O padre Himalaya optou por eco-técnicas a que só muito recentemente se começa a dar crédito e, mesmo assim, com algum cepticismo. As pessoas põe em causa que o sol possa ajudar a resolver muitos dos problemas energéticos. Sabemos, inclusivamente, que essa ideia faz parte da estratégia de manipulação cultural dos grandes grupos monopolistas. Eu não vou nisso, porque já vi motores de carro movidos a energia solar, já constatei objectiva e cientificamente que não é verdade o que este bloqueamento cultural nos pretende impôr, afirmando que essas técnicas ainda não são eficazes, que ainda não estão suficientemente desenvolvidas para funcionar como alternativa, etc...
Existe, inclusivamente, um bloqueamento financeiro. E vou dar-lhe um exemplo: aqui há alguns anos, nos Estados Unidos, o investimento para a investigação científica da energia nuclear representava cerca de 80 por cento do orçamento para a investigação daquele país, enquanto que a dotação destinada para a energia solar era de apenas 0,06 por cento. desta maneira, como será possível as pessoas desenvolverem investigação nesta área? E quem fala em energia solar pode falar no hidrogéneo, que hoje começa a ser encarado como alternativa igualmente viável

P - Para além dos aspectos económicos, a chamada "globalização" implica também uma crescente aculturação em áreas tão opostas como a alimentação ou a cultura. Acha que Portugal tem vindo a perder a sua identidade?

R - Eu penso que a humanidade caminha no sentido de as pessoas se entenderem numa perspectiva de universalidade. Mas essa universalidade, ao contrário do que podemos pensar, não é feita de unicidade. É uma universalidade em comunhão com a biodiversidade e com a singularidade, uma dialética. Quando a singularidade é sinónimo de uma identidade chuvinista, fechada, essa identidade é entendida como negativa; se pelo contrário essa identidade é entendida como singularidade em diálogo com as outras singularidades, então somos produtores de universalidade.
A minha ideia é que devemos aprofundar o interrelacionamento dos povos, a universalidade e a compreensão internacional dos povos, mas, ao mesmo tempo, para que isso não se torne uma espécie de pensamento único, para que não caminhe no sentido da homogenização, deve promover-se aquilo que é característico, genuíno.
As palavras têm, muitas vezes, significados e sentidos diversos. Na minha perspectiva, globalização significa a tentativa de hegemonia por parte dos países capitalistas, cuja finalidade interessa somente aos grandes monopólios. Enfim, a globalização é feita pelos grandes monopólios.
Por outro lado, há um outro movimento que tem vindo a tomar terreno: o da planetarização, com uma perspectiva muito diferente desta última. A estratégia da planetarização passa, por exemplo, por um asserção mais clara de ecologia e da necessidade de respeitar o imenso ecossistema em que nos inserimos. As pessoas começam a aperceber-se de que as catástrofes ecológicas não afectam somente alguns habitantes do planeta, mas acabam por afectar todos num só, porque tudo está interligado. E essa compreensão planetária, considero, implica solidariedade entre os povos.

P - A internet, apesar de ser um instrumento dessa globalização, poderá funcionar, de algum modo, como um contrapoder?

R - Acho que ainda é cedo para responder a essa questão, mas todavia penso que deveríamos questionar-nos sobre ela. Como em tudo, existem aspectos positivos e negativos. A internet permite, nomeadamente, uma maior facilidade de contacto interpessoal. Mas existem grupos de interesse que tendem a colocar respostas organizadas que procuramos julgando serem respostas neutras. E quem hegemonizar o processo da informação, no sentido da reprodução informativa, tende a instrumentalizar esse poder. É por isso que devemos estar atentos e ser críticos face àquilo que nos apresentam como verdadeiro.

P - Caminhamos para uma cultura global?

R - Penso que da parte da globalização há uma tentativa de institucionalizar o pensamento único, que está a tentar ser implantado pelos detentores dos meios de produção cultural. Veja-se, a título de exemplo, o lixo cultural que constitui a televisão, o "pão e circo" que ela proporciona, que serve apenas para desviar a atenção das questões realmente importantes. É uma subjugação perigosamente real.
Mas ao mesmo tempo que existe este perigo, existe também a salvação, como referia Novallio, poeta do século XIX, porque diante de uma forma de consciência cada vez mais crítica esses instrumentos podem ser transformados, num certo sentido, ao serviço de uma causa mais justa, na relação com os outros.

P - Que responsabilidades deve a escola assumir perante todas estas questões?

R - A escola tem uma responsabilidade bastante grande, mas não deve passar apenas por ela. Como cidadãos e como educadores temos, primeiro lugar, de construir uma forte consciência de cidadania e transportar essa cidadania para a escola. Mas se a escola se continuar a assumir como instrumento clássico de reprodução da ideologia dominante, então ela é um dos motores mais terríveis para a construção das desiguladades e para esta manipulação de que falava.

P - No contexto da globalização - ou da planetarização, dependendo da perspectiva que quisermos adoptar - há ainda outros aspectos a considerar: o choque entre as diferenças culturais e a própria diversidade individual. Pensa que actualmente a escola tende a reproduzir comportamentos e atitudes, ou pelo contrário, incentiva à afirmação da diferença?

R - Todos nós devíamos pugnar por um ensino que oferecesse uma completa igualdade de oportunidades de acesso a meios educativos e culturais. No que respeita aos conteúdos culturais da escola pública, aquela que, em princípio, deveria ser gerida pela própria sociedade, ela deveria ser completamente livre e vocaccionada para uma cultura de criatividade, de singularidade, e assentar fundamentalmente no valor do indíviduo, do cidadão. Aí a liberdade seria total. Devemos é ter de saber articular a liberdade cultural com a igualdade de oportunidades

P - Isso é um trabalho de gerações...

R - Sim, de gerações e provavelmente não irá passar por uma reconversão gradual, mas antes através de muitas dificuldades e confrontos na sociedade futura. Não é uma perspectiva pessimista, é encarar realidade de acordo com os factos actuais. Por mais que me falem nas vantagens, eu continuo a encarar o chamado crescimento económico nas sociedades capitalistas como origem de exclusão e de crises sociais. Há um fosso cada vez maior não só entre países ricos e países pobres, mas um fosso entre os próprios habitantes dos países desenvolvidos. Por mais que não saibamos exactamente qual o modelo civilizacional que procuramos, sabemos que este não é concerteza.

Entrevista conduzida por Ricardo Jorge Costa


  
Ficha do Artigo
Imprimir Abrir como PDF

Edição:

N.º 89
Ano 9, Março 2000

Autoria:

Jacinto Rodrigues
Fac. de Arquitectura da Univ. do Porto
Jacinto Rodrigues
Fac. de Arquitectura da Univ. do Porto

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo