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Para onde vai o Ensino Superior?

Sector privado critica anteprojecto de lei

(Parecer da Associação dos Estabelecimentos de Ensino Superior Particular , APESP)

1 Como nota introdutória, não podemos deixar de referir, que o anteprojecto apresentado em pouco ou nada corresponde à ideia com que ficamos sobre a natureza, o âmbito e os objectivos da iniciativa legislativa em causa, a partir do anúncio que nos foi feito da mesma pelos Senhores Ministro da Educação e Secretário de Estado do Ensino Superior.
De facto, o texto do anteprojecto em discussão, poucas novidades introduz na organização e ordenamento do ensino superior, limitando-se, em grande parte do seu articulado, a repetir, segundo critérios discutíveis, preceitos já existentes e conceitos já conhecidos, em relação a muitos dos quais se encontraria aqui uma boa ocasião para os actualizar, como aliás, em documento anteriormente entregue ao Senhor Secretário de Estado do Ensino Superior tivemos oportunidade de sugerir.
A nossa ideia sobre o que deve ser uma Lei de Enquadramento, ou Organização do Ensino Superior, fizemo-la chegar com antecedência ao Senhor Secretário de Estado, que, decerto, verificará que entre o anteprojecto apresentado pelo Governo e o memorando entregue pela APESP, se encontram muito poucas correspondências.
Desde logo, a ideia de rede pública de ensino enunciada, apresenta-se completamente fora do enquadramento legal vigente, procurando, por vias travessas, retomar o velho conceito de supletividade do ensino privado em tempos constante do texto constitucional e deliberadamente eliminado pela revisão da Constituição de 1982.
Todavia, e independentemente do documento previamente enviado pela APESP, não queremos deixar de apresentar as observações críticas que o anteprojecto em apreciação nos suscita.

2 Quanto aos objectivos do diploma, e na ausência de um preâmbulo que os procure esclarecer, teremos de tomar por referência a carta enviada pelo Senhor Secretário de Estado do Ensino Superior a acompanhar o referido anteprojecto para apreciação e comentários da APESP.
Duas notas ressaltam da leitura destes dois textos.
Por um lado, verifica-se uma clara e evidente discrepância entre as intenções de um programa político, amplamente divulgado na comunicação social e comunicado aos parceiros da educação, e a sua consagração em texto normativo.
Por outro lado, parece estar a partir-se do "zero" na organização e ordenamento do ensino superior, como se não estivessem em vigor a Lei de Bases do Sistema Educativo, a Lei da Autonomia Universitária, a Lei da Autonomia das Instituições Politécnicas, a Lei de Bases do Ensino Particular e Cooperativo, a Lei da Liberdade de Ensino, o Estatuto do Ensino Superior Particular e Cooperativo, a Lei do Financiamento do Ensino Superior.

3 Com efeito, se a prioridade do governo, como refere o Senhor Secretário de Estado, é consolidar "uma regulação global do sistema de ensino superior, fixando o seu modelo básico de organização institucional, definindo os princípios a que deve obedecer o ordenamento da rede pública e estabelecendo, no domínio da criação e reconhecimento de novas instituições, regras comuns para todos os subsistemas", parece ignorar-se que vigora toda aquela legislação.
Sucede, porém, que muitos dos preceitos contidos no anteprojecto se limitam a transcrever as fórmulas contidas naqueles diplomas, ora reproduzindo-as integralmente, ora repetindo o seu conteúdo com expressão literária diferente, com a agravante de no anteprojecto se encontrarem desenquadrados e desordenados. ? o que se passa com os preceitos que passamos a enunciar:

Art.º 3º, alínea a) - Corresponde ao art.º 11º da LBSE;

Art.º 4º - nada acrescenta ao nº 8 do art.º 13º da LBSE;

Art.º 5º - nada de novo introduz no sistema, limitando-se a reproduzir num único preceito, tudo aquilo que já se encontrava previsto, quer na LBSE, quer no EESPC;

Art.º 6º nº 1 - corresponde, sem mais, ao n.º 3, art.º 11º da LBSE;

Art.º 6º nº 2 corresponde ao art.º 14º da LBSE;

Art.º 8º, nº 1 corresponde, sem mais, ao n.º 4 do art.º 11º da LBSE;

Art.º 8, nº 2, 3, 4, 5 e 6 nada acrescenta ao art.º 14º da LBSE;

Art. 11º, nº 1 limita-se a repetir o art.º 75º da CRP e o art.º 37º da LBSE, sem, contudo, desenvolver as correspondências necessárias com o art.º 55º da LBSE;

Art.º 12º - corresponde, com defeitos, ao art.º 34º da Lei do Financiamento;

Art.º 13º - Nada acrescenta, quer à LBSE, quer ao EESPC;

Art.º15º - Não constitui qualquer novidade face ao disposto no EESPC, no que respeita ao ensino superior privado, à excepção da alínea a), cuja previsão parece ter levado em linha de conta apenas os pressupostos para a criação de Universidades, não se vendo como compatibilizar tal preceito com a existência de escolas especializadas;

Art.º 18º, nº 1 e 3 - corresponde ao art.º 12º do EESPC; quanto ao nº2 do art.º18º, trata-se de uma redundância, pois é óbvio que as cooperativas só possam criar estabelecimentos de ensino de acordo com as normas legais que lhe sejam aplicáveis;

4 Por sua vez, quando se pretende definir os princípios a que deve obedecer o ordenamento da rede de ensino superior, o certo é, que no texto do anteprojecto não surgem quaisquer princípios definidores desses enquadramento, antes se apresentando uma ideia de organização isolada da rede de ensino superior público, sem qualquer propósito de articulação com o ensino superior particular e cooperativo e ignorando por completo o que sobre esta matéria já se encontra consagrado em termos genéricos, designadamente o n.º 1 do art.º 55º da LBSE, que considera como fazendo parte integrante da rede escolar os estabelecimentos de ensino particular e cooperativo, todos eles, independentemente do nível de ensino ministrado, desde que se enquadrem nos princípios gerais, finalidades, estruturas e objectivos do sistema educativo.
Ora, não podem restar quaisquer dúvidas de que as instituições de ensino superior particular e cooperativo, sujeitas a um complexo e controlado processo de criação e reconhecimento, que obriga ao prévio reconhecimento de interesse público através de Decreto Lei, tal como os cursos que ministram, se enquadram nos princípios gerais, finalidades, estruturas e objectivos do sistema educativo. Daí que não se possa numa lei que se pretende de organização e ordenamento do ensino superior, omitir e incumprir tal determinação da Lei de Bases e não considerar, de forma clara, as instituições particulares e cooperativas legalmente reconhecidas, como elementos relevantes e responsáveis a ter em consideração na "definição" da rede nacional de ensino superior.
Tanto mais que no n.º 2 do art.º 55º se impõe que "no alargamento ou no ajustamento da rede o Estado terá também em consideração as iniciativas e os estabelecimentos particulares e cooperativos, numa perspectiva de racionalização de meios, de aproveitamento dos recursos e de garantia da qualidade".
Com o conceito de rede apresentado, mais não se faz do que desvirtuar completamente os preceitos de uma Lei de Bases, com a agravante de secundarizar o ensino superior particular e cooperativo, reintroduzindo a ideia de supletividade do ensino superior privado, deliberadamente eliminada, por sua vez, do texto da Constituição desde a revisão de 1982 e que este anteprojecto, tal como se apresenta, numa perspectiva inaceitável, parece querer repôr!

5 Numa tentativa de desenvolvimento da ideia de rede, enumeram-se no anteprojecto uma série de intenções que, não só esquecem a realidade, como não têm a devida atenção ao enquadramento legal vigente.
De facto, quando no art.º 11º se começa por dizer que "O estado deve criar uma rede pública de estabelecimentos de ensino superior" apenas se transcreve, sem mais, o estabelecido no art.º 75º da CRP, sem ter na devida conta a necessária articulação deste preceito com os princípios da Liberdade de Aprender e de Ensinar consagrados no art.º 43º da CRP, em sede de Direitos Liberdades e Garantias Fundamentais.
Seguindo a mesma linha de orientação, quando no n.º 2 do art.º 11º do anteprojecto se pretende definir os critérios para o estabelecimento da rede, acaba por se enunciar apenas alguns qualificativos correspondentes não a critérios definidores de uma qualquer rede, mas sim a objectivos que o ensino superior deve prosseguir, que de forma muito mais adequada e abrangente, se encontram já estipulados no art.º 11º, da Lei de Bases do Sistema Educativo.
Ora, tratando-se de uma Lei de Organização e Ordenamento, embora deva enunciar princípios, não se pode perder a noção de que a tais princípios deve corresponder um determinado conteúdo normativo, devidamente organizado, sistematizado e articulado. No entanto, diversamente, muitos dos aspectos versados, pouco mais constituem do que ideias vagas, com pouco ou nenhum conteúdo normativo, como seja, por exemplo, o que se pretende quando, no n.º 3 do art.º 11º, se diz que "a rede deve assegurar o adequado equilíbrio no que se refere às áreas e níveis de formação assegurados".
O que se pretende dizer com "níveis de formação assegurados"?
Do mesmo modo, o que se pretende quando se diz dever atender "à relação entre a oferta criada e os recursos que a suportam e qualificam"?
Bem mais incisiva é a LBSE ao preceituar (nº 4 art.º 12º) que "ao Estado deve criar as condições para que os cursos existentes e a criar correspondam globalmente às necessidades em quadros qualificados, às aspirações individuais e às elevações do nível educativo, cultural e científico do País para que seja garantida a qualidade do ensino ministrado.
Também passa sem qualquer referência a racionalização da organização e ordenamento do ensino superior , não só em termos de "modelo" do sistema, mas até, e relevantemente no domínio do financiamento .
Neste sentido, ao contrário de todas as muitas transcrições feitas de normas legais vigentes, não se invoca, sequer, a regra do "financiamento da educação", definida no art.º 42º da LBSE, onde se estabelece que "as verbas destinadas à educação devem ser distribuídas em função das prioridades estratégicas do desenvolvimento do sistema educativo".

6 Criticas específicas merecem-nos também os preceitos relativos aos contratos-programa. Também neste caso, o pouco que se acrescenta evolui negativamente, pois em vez de se clarificar o que em diversos diplomas se encontra já previsto e que por indisponibilidade e incumprimento do Estado não tem tido a sequência devida, procura limitar-se ao mínimo dos mínimos o apoio do Estado a um dos sectores fundamentais da sociedade portuguesa.
Efectivamente, são por completo ignoradas certas normas da Lei de Bases, designadamente as decorrentes do nº2 do art.º 58º, pela qual se determina que "O Estado apoia financeiramente as iniciativas e os estabelecimentos de ensino particular e cooperativo quando no desempenho efectivo de uma função de interesse público, se integram no plano de desenvolvimento da educação, fiscalizando a aplicação das verbas concedidas".
Foram igualmente esquecidos os preceitos do Estatutos do Ensino Superior Particular e Cooperativo (EESPC aprovado pelo Dec. Lei n.º 16/94, 22 Jan. com as alterações introduzidas pela Lei n.º 37/94, de 11 Nov.) que atribuem ao Estado a incumbência de "apoiar os investimentos e iniciativas realizadas através dos estabelecimentos de ensino de interesse público que promovam a melhoria de qualidade do ensino ministrado" (al. m) do art.º 9 do EESPC), não tendo em conta que, tal como se estabelece no art.º 10º do EESPC, "no âmbito das atribuições que lhe cabem relativamente ao ensino, o Estado poderá conceder: (...) c) incentivos aos investimentos; d) apoios à investigação; e) outros apoios inseridos em regimes contratuais", remetendo o n.º 2 do mesmo artigo para o art.º 58º n.º2 da LBSE o apoio financeiro a ser concedido pelo Estado.
Neste ponto, o mínimo que se pode dizer é que é lamentável o desconhecimento (ou ofensa deliberada?) das citadas normas por parte do autor do anteprojecto, permitindo criar legítimas reservas ou suspeições às intenções que estarão subjacentes à elaboração do texto da proposta de lei, que desrespeitam em absoluto um sector consagrado na própria Constituição.

7 Quanto à previsão feita no art.º 15º do anteprojecto, em que se procura estabelecer os "pressupostos" básicos para a criação de estabelecimentos de ensino superior, convirá ser mais preciso. Com efeito, misturam-se aqui pressupostos, com requisitos, com regras básicas, com princípios gerais, contemplando conceitos de difícil aceitação no âmbito de um sistema de ensino superior que se pretende moderno, ou no mínimo actualizado.
Desde logo, prevendo-se a existência de modalidades distintas de estabelecimentos de ensino, quer no que respeita à modalidade de ensino (universitário e politécnico), quer no tocante à organização dos estabelecimentos ( universidades, escolas e institutos universitários e politécnicos), há que prever, necessariamente, essa diferenciação quanto à definição de requisitos para a sua criação e reconhecimento. Ora, um dos "pressupostos gerais" definidos no art.º 15º em apreço, mais especificamente na alínea a), parece reduzir todo e qualquer projecto à possibilidade única de se constituir em universidade, retomando uma ideia já há muito ultrapassada de organização do ensino universitário, reforçada pelo carácter excepcional atribuído no n.º 2 do art.º 6º às escolas universitárias não integradas, quanto a nós inaceitável pelo retrocesso que poderá representar na organização do ensino superior, com especial prejuízo para o ensino particular e cooperativo.
De facto, toma-se como ponto de partida para a organização do ensino universitário a velha ideia de Universidade, polivalente e diversificada, como "templo" do saber, esquecendo-se, neste ponto, a tendência seguida com sucesso por muitos países europeus e pelos Estados Unidos, onde se encontram em funcionamento algumas das mais prestigiadas instituições universitárias, para a criação de Institutos Universitários especializados, de pequena ou média dimensão.
Parece-nos, pois, ser esta uma boa oportunidade para introduzir na organização do ensino superior português a figura do Instituto Universitário.

8 Uma referência ainda à ideia de remeter para lei especial a criação de estabelecimentos de ensino superior por parte de igrejas e de confissões religiosas. Não se compreende o motivo de regimes especiais para a criação de estabelecimentos de ensino superior por parte de igrejas e de confissões religiosas.
Se efectivamente, os títulos e graus académicos concedidos são equivalentes aos das demais instituições de ensino superior, públicas ou privadas, é inaceitável que a criação de estabelecimentos e cursos por parte daquelas entidades venham a ser objecto de regime especial, devendo antes pautar-se pelos mesmos princípios, pressupostos e exigências, sob pena de se ferir o princípio da igualdade e da sã concorrência que num Estado de Direito tem forçosamente de ser garantido.

9 Por fim, limita-se o anteprojecto em apreço, dos arts.º 16º ao 23º, a identificar alguns aspectos a regular posteriormente por decreto-lei.
Ora, para além da dispersão legislativa que a solução proposta, inevitavelmente, implicará, é por demais sabido, pela experiência acumulada, que a previsão de concretização legislativa, tal como se propõe no art.º 24º, é sempre uma porta aberta para adiar soluções.

10 Em suma, este anteprojecto não passa de um mero exercício de prática legislativa, que não pode ser considerado sendo como um ponto de partida para o debate em torno da criação de uma lei de Enquadramento, Organização e Ordenamento do ensino superior.
Tal como esta proposta de lei se apresenta, em que praticamente metade do seu articulado corresponde a uma mera reprodução de preceitos já existente em legislação em vigor e a outra metade a regras que hão-de vir ainda a ser pensadas (conforme se retira, facilmente, do art.º 24º), a que se somam duas ideias nucleares, ainda muito pouco estruturadas e envolvidas em certos preconceitos, mais não resultará do que uma lei meramente remissiva para um conjunto de novos diplomas de conteúdo e propósitos desconhecidos, a criar pelo governo não se sabe bem quando.
Trata-se, pois, de uma proposta que, salvo alguns aspectos residuais, não serve, quanto a nós, os interesses do ensino superior, carecendo, por isso, de ser inteiramente reformulada.

Lisboa, 18 de Fevereiro de 2000
A Direcção Geral da APESP


  
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Edição:

N.º 89
Ano 9, Março 2000

Autoria:

APESP

APESP

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