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Reflexão sobre Omissões do Debate do "Superior"

Cabe no âmbito deste artigo de opinião proceder a uma inventariação dos problemas do Ensino Superior ou a uma análise detalhada do documento sobre o Ensino Superior que o Ministério pôs recentemente à discussão. Neste como noutros domínios da política educativa em Portugal importa mais reflectir sobre as problemáticas que são omitidas do debate ou sobre a construção discursiva de certos dispositivos de gestão do sistema a quem se atribui potencialidades mágicas na determinação da qualidade do sistema, sem que previamente se tivesse debatido as dimensões éticas, cívicas e políticas da qualidade que se diz procurar assegurar.
A propensão generalizada que se instituiu em Portugal para se pensar o Ensino Superior exclusivamente em torno da gestão dos acessos e das saídas profissionais que ele pode proporcionar, ao contribuir para a aceitação acrítica de que os problemas de funcionamento das instituições de formação depende apenas da selecção dos destinatários e da sua conformidade com as chamadas "exigências do mercado de trabalho", não promove um debate sério sobre as lógicas internas às próprias instituições. Apesar de se terem acentuado os fenómenos sociais que sugerem não existir uma congruência entre os diplomas académicos e as saídas profissionais e apesar de não ser evidente a presença de uma relação forte entre os percursos escolares dos alunos e os seus resultados no ensino superior, esta tendência persiste, retirando assim do debate público toda a problemática incidindo sobre a vida no interior das instituições, sobre o sentido do trabalho dos alunos, sobre as suas angústias, sofrimentos e solidões que se tendem a agravar com os ritmos intensos de trabalho que lhe são impostos em nome do progresso científico, da revolução tecnológica ou das exigências do mercado de trabalho.
Incidindo sobre o "mundo da vida" das instituições do ensino superior, incidindo sobre a "qualidade da vida" que elas proporcionam aos seres que as habitam, esta problemática é particularmente pertinente num contexto onde a crescimento da procura e da oferta do ensino superior e a consequente diversificação dos públicos, não foi acompanhada por uma reflexão pedagógica sistematizada.
A relativa importância que actualmente se começa a atribuir à pedagogia universitária ? cuja importância não pode ser negada ? não significa necessariamente que as questões do Ensino Superior tenham começado a ser abordadas também como questões pedagógicas. Na realidade, a entrada da pedagogia no Ensino Superior parece estar excessivamente conectada com uma lógica da "eficácia" de eficácia duvidosa, como uma excrescência associada à questão do estudante elegível (numa retórica onde a elegibilidade já não significa democraticidade, mas possibilidade de financiamente), onde o Ensino Superior tende a não ser encarado como um serviço público mas regulado por uma lógica de mercado onde os resultados se sobrepõem aos processos. Dir-se-ia, que a questão pedagógica se encontra subordinada às questões da eficácia, de uma eficácia onde está ausente qualquer pensamento que pretenda incorporar a problemática dos custos sociais e dos custos pessoais, isto é, de uma problemática onde a economia das competências se subordina à economia das felicidades.
O abandono a que foi votada a problemática dos custos e dos efeitos sociais do Ensino Superior e a ênfase que se tem vindo a atribuir às questões da eficácia é congruente com o processo de naturalização do mercado como regulador simbólico deste nível de ensino. É neste contexto que a problemática da avaliação das instituições do Ensino Superior adquire uma importância acrescida. Esta importância simbólica não pode ser dissociada do processo de demissão política do Estado do processo de regulação à priori do sistema que o relega para o exercício de uma regulação à posteriori onde as principais vítimas acabam por ser os jovens, uma vez que são eles a sofrer os efeitos do funcionamento das instituições. No plano simbólico a avaliação desempenha, portanto, um importante papel na naturalização de um modo de definir os problemas do Ensino Superior onde, em nome da defesa da autonomia, se reforçam os mecanismos de regulação mercantil, no pressuposto que já não é o Estado, mas o mercado que interpreta o interesse público.
O que parece paradoxal é que esta importância simbólica da avaliação contrasta com a falta de importância do papel que ela desempenha como regulador da vida pedagógica das instituições. Quando se interroga a avaliação do ponto de vista pedagógico, fica-se com a sensação que "a montanha pariu um rato". A importância retórica que se atribui à avaliação como dispositivo de regulação da vida das instituições conduz a que se acentue fundamentalmente a sua dimensão de auto-avaliação e as suas potencialidades enquanto dispositivo susceptível de induzir uma reflexão partilhada sobre os sentido do trabalho desenvolvido pelas instituições, contrasta com uma cultura da avaliação onde se acentuam fundamentalmente as deficiências de funcionamento e onde se implementam dispositivos institucionais de avaliação que sugerem que a preocupação dominante não é tanto esta reflexão sobre o sentido, mas o cumprimento de um ritual burocrático-administrativo. Se tivermos, portanto, em conta este contraste entre o papel atribuído à avaliação e a qualidade dos dispositivos implementados para assegurar a avaliação externa, fica-se com a convicção que o mais importante efeito da avaliação é o efeito simbólico de contribuir para a "naturalização" de uma ordem política onde se louva as potencialidades do mercado como regulador e garante da defesa do interesse público no Ensino Superior.

José Alberto Correia
(texto elaborado a partir de uma entrevista)
Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação do Porto


  
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Edição:

N.º 89
Ano 9, Março 2000

Autoria:

José Alberto Correia
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. do Porto
José Alberto Correia
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. do Porto

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