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Crónica Escolar de uma Menina Bem Comportada...

A Ana não morre de amores pela escola. Reconhece pragmaticamente a sua importância, mas encontra-lhe pouca utilidade. Estabeleceu uma relação entre o estratégico e o condescendente com a maioria dos seus professores e espera dos colegas, pelo menos dos que lhe são mais chegados, toda a lealdade do mundo.
É, em resumo, uma rapariga saudável que, segundo as palavras da professora de Português, não deixa de ser um bocado rebelde. Fama que pelos vistos lhe adveio de uma manifestação pública de fascínio por um poema de Sophia de Mello Breyner a que recorreu para menorizar um texto de Jerónimo Baía que o livro de Português B evocava.
O professor de Ciências da Terra e da Vida, sem deixar de concordar com a colega, avalia-a como uma rapariga inteligente, talvez porque o seu interesse pelas temáticas da disciplina, os resultados dos testes e a sua activíssima participação nas aulas confirmem as expectativas positivas que desde o 10º ano foi criando acerca da miúda. O mesmo se poderia dizer da professora de T.L.B., encantada certamente com os excelentes relatórios que a Ana lhe apresenta, repletos de imagens recolhidas na Internet e de informação fidedigna e rigorosa que ela encontra noutras obras a que tem acesso na biblioteca dos pais.
A professora de Filosofia reconhece-lhe qualidades, mas lida com alguma dificuldade com o que ela designa por presunção típica de uma adolescente de classe média que, na sua opinião, julga saber mais do que aquilo que efectivamente sabe. Não deixando de apreciar o empenho que a Ana coloca nas discussões que trava nas aulas, desagrada-lhe, contudo, alguma falta de rigor nos argumentos que utiliza. Já chegou mesmo a defender perante outros colegas que aquilo que muitos nela admiram, a impedem, afinal, de ser uma melhor aluna. Tendo a Ana uma auto-estima tão elevada, sendo bastante esperta e possuindo dotes oratórios apreciáveis, acaba por não estudar tanto quanto seria necessário. É muito interessante gostar, e ser capaz, de reflectir, é importante saber lidar com as palavras, mas é fundamental, sobretudo, que domine os conceitos ensinados na sala ou difundidos no livro. Ninguém pensa sobre o vazio e, particularmente, em Filosofia importa que os alunos aprendam a ser mentalmente disciplinados e a construírem um discurso que transcenda as opiniões pessoais e as representações comuns.
A professora de Físico-Química acha-lhe piada, ao contrário do professor de T.L.Q. que embirra constantemente com ela, quer seja por causa do modo como se veste quer seja por causa da trancinha que, desde há uns meses a esta parte, lhe enfeita o penteado. As notas de ambas as disciplinas, apesar das afinidades que mantêm entre si, reflectem as relações que ela estabelece com ambos os professores.
O professor de Matemática vive com a pequena uma espécie de jogo do gato e do rato. É com ele que mantém as relações mais tensas e defensivas. O estatuto da Matemática ajuda a explicar, em parte, o conflito que no caso da Ana é mais latente que manifesto. Mas existem outras razões que permitem explicar esse mal estar. As dificuldades em acompanhar o ritmo de ensino imposto pelo professor, o que talvez só a Teresa consiga, é uma dessas razões. A obsessão deste em querer que as suas turmas vão mais adiantadas que as outras, em termos das matérias a leccionar, é outra situação para a qual não encontra explicação. O investimento que o estudo da Matemática lhe exige, obrigando-a a ter explicações que sendo decisivas para ter notas positivas, nunca lhe permitirão superar o estado de incompreensão permanente que sente face aos problemas que a Matemática lhe coloca - mesmo aqueles que resolve com sucesso ? não a impedem de se sentir completamente burra. Enfim, não consegue entender como é possível que numa disciplina com os objectivos da Matemática, a vida de um aluno numa aula se assemelhe um pouco à atitude daqueles crentes que nas cerimónias religiosas a que assistem, tentam recitar o mais fielmente possível as fórmulas e os cânticos regimentais, sem terem uma clara consciência do que estão a fazer ou a dizer. Basta-lhes conhecer o guião e acreditar que isso é importante para as suas vidas. Estranho.
A professora de Inglês pertence ao seu clube de fãs. Talvez porque se recorde de si própria, ainda há relativamente poucos anos em situação idêntica, com a mesma energia e os mesmos interesses da Ana. Criou-se entre elas, desde muito cedo, uma relação de empatia que se manifestou abertamente quando na reunião sobre o projecto da Área-Escola apoiou os argumentos da miúda a favor da realização de actividades de intercâmbio com turmas de outras escolas, contrariando assim a opinião de alguns dos seus colegas que, em nome do que diziam ser os imperativos da interdisciplinaridade, preferiam projectos que tivessem a ver com problemáticas comuns às diversas disciplinas do 11º ano.
O professor de Educação Física, por sua vez, retribui-lhe com gentileza a indiferença. Agem como se nunca se tivessem conhecido, o que parece não incomodar nem um nem outro.
Será que algum sociólogo da educação hesitaria em classificá-la como uma representante do que se convencionou designar por uma aluna-cliente ? Então porque é que apesar da sua média de 16,4 valores se sente tão insegura face às tarefas escolares ? Como é que se explica que se sinta tantas vezes uma pessoa incapaz e incompetente, não obstante os colegas passarem o tempo a assediá-la para lhes tirar dúvidas ou para obterem explicações sobre as mais diversas temáticas académicas ? Porque é que tem tanto medo do futuro se sabe que muito dificilmente terá de se empregar como caixa de um hipermercado para poder pagar os estudos numa universidade privada ? O que é hoje, afinal, uma aluna bem comportada ?

Ariana Cosme/Rui Trindade
Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação / Porto


  
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Edição:

N.º 88
Ano 8, Fevereiro 2000

Autoria:

Ariana Cosme
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. de Porto
Rui Trindade
Faculde de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto
Ariana Cosme
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. de Porto
Rui Trindade
Faculde de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto

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