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A Educação Cívica nas Escolas Portuguesas - Porquê e Para Quê?

As provas de avaliação aferida e a educação para a cidadania foram os temas escolhidos pela actual equipa ministerial para se fazer anunciar numa conferência de imprensa convocada para o efeito. Soube-se então pela voz da Secretária de Estado, Ana Benavente, que todas as crianças que frequentam o 4º ano de escolaridade, no presente ano lectivo, deverão realizar provas de avaliação aferida, o que só é novidade por estarmos pela primeira vez perante provas de dimensão nacional, já que, a coberto do despacho 98/A de 1992, têm vindo a realizar-se provas dessa natureza, desde então, nalgumas escolas do país. Ficou a saber-se, igualmente, na dita conferência de imprensa que a educação para a cidadania seria objecto de debate e de reflexão, apesar do despacho que formaliza o projecto da gestão flexível dos currículos já prever que compete aos directores de turma, nas escolas que estão a ensaiar essa experiência, a gestão de um tempo semanal obrigatório sob essa mesma designação. Não se tratando de decisões de fundo ou tão pouco de medidas absolutamente inéditas é legítimo que perguntemos se as conferências de imprensa do Ministério da Educação passarão a fazer das suas rotinas habituais e de uma nova estratégia de comunicação entre os responsáveis ministeriais e a opinião pública ou se estamos, apenas, perante uma operação pública de sedução e conquista de credibilidade levada a cabo pela equipa liderada pelo ministro Guilherme de Oliveira Martins.
A confirmar-se a segunda das hipóteses enunciadas, não deixa de ser significativo que tenham sido, exactamente, os exames no fim do 1º Ciclo do Ensino Básico e a educação para a cidadania os temas seleccionados para concretizar a referida operação de charme.
De facto, não há nada mais apelativo, hoje, num discurso para consumo externo, do que falar de provas de avaliação nacional para induzir uma imagem de rigor e de defesa da excelência académica por parte do M.E., embora todos possamos constatar como provas do género, só por si, não garantem nem a qualidade do nosso ensino secundário como podem introduzir factores de perversão pedagógica que condicionam negativamente a condução do projecto de formação dos alunos que frequentam este nível de ensino. Mas para que o país possa dormir descansado quanto à qualidade dos cidadãos que a escola promove, os responsáveis ministeriais não ficaram apenas pelo anúncio das provas de avaliação aferida para as crianças do 4º ano, também asseguraram que a educação para a cidadania passaria a ocupar um lugar no mapa curricular do sistema educativo português e seria objecto, nos tempos mais próximos, de um debate e de uma reflexão alargadas no seio da sociedade portuguesa. Isabel Antunes, directora - adjunta do Departamento de Educação Básica, algum tempo depois, dava um contributo decisivo para esta discussão, e de alguma forma encerrou-a, ao publicitar no "Público" que, a partir de 2001, todos os alunos entre o 5º e o 12º anos veriam integrada nos respectivos planos de estudos a disciplina de "Educação Cívica" como uma disciplina obrigatória. Comparando as intervenções de Ana Benavente e de Isabel Antunes constatamos que a única mudança substancial entre ambas diz respeito à designação da disciplina, na medida em que quer num caso quer no outro esta tem carácter obrigatório, deverá ser assegurada pelos directores de turma e terá direito a um tempo lectivo específico. Passou-se, portanto, da "Educação para a Cidadania" para a "Educação Cívica", o que parecendo clarificar os propósitos e finalidades do novo espaço curricular não justifica, só por si, a sua existência. O que se pretende com tal espaço? O malogro de experiências como aquelas que ocorreram sob a égide da Área-Escola ou da moribunda disciplina de Desenvolvimento Pessoal e Social não parece ter merecido da parte dos responsáveis políticos a necessária e merecida reflexão. Ou então mereceu e a decisão actual pode corresponder, tanto a um exercício de legitimação pública da política educativa do M.E. como à cedência a "lobbies" organizados que visam conquistar um espaço de influência no âmbito das escolas.
Independentemente das experiências significativas e relevantes que ocorreram e ocorrem neste país é importante reconhecer que na verdade não é possível construir um projecto de educação para a cidadania a partir de espaços curriculares restritos. A educação para a cidadania é uma tarefa de natureza mais abrangente e também mais exigente. Se entendemos que nas escolas existem condições e a necessidade de se desenvolver um projecto desta natureza, então falemos claro, isso exige que todas as disciplinas e actividades escolares contribuam a seu modo para este projecto, que a organização administrativo-pedagógica se adeque a tal propósito e que o clima institucional seja compatível com as suas finalidades. Se partirmos do princípio que ser cidadão é algo que se aprende, mais do que o resultado daquilo que se ensina, então encontrámo-nos disponíveis para compreendermos a grandeza e a complexidade de um desafio que, no que concerne à educação escolar, diz respeito ao modo como se está na escola, ao modo como se enfrentam as tarefas escolares, ao modo como nos relacionamos com os outros, ao modo como, enfim, se criam e se animam oportunidades que possibilitam o desenvolvimento pessoal e social dos alunos nas nossas escolas.
Não sabemos se foi a consciência do desafio educativo que um tal projecto pressupõe que esteve na origem da mudança de designação da disciplina, circunscrevendo-a a uma área de acção mais restrita. Se foi esta a razão, apenas nos resta afirmar que tal decisão pode constituir mais um acto falhado se estivermos, apenas, perante o pretexto para se acrescentar mais uma disciplina a um elenco curricular inexpugnável quer do ponto de epistemológico quer, concomitantemente, do ponto de vista pedagógico. O que, afinal, acaba por resultar numa medida perversa e contraproducente. Pense-se, por exemplo, nos alunos do Secundário, avalie-se a pressão a que estão sujeitos, o nível de exigência a que os submetemos, quantas vezes ampliado pelo facto de não encontrarem um sentido visível e significativo para as suas actividades escolares e constate-se se o desenvolvimento das competências necessárias a uma cidadania activa e crítica dependem mais da existência de uma disciplina de Educação Cívica ou da reformulação urgente do Ensino Secundário, cuja crise e dilemas não poderão continuar a ser ignorados sob pena deste nível de ensino continuar a ser um sorvedouro das energias, da criatividade e da vida dos jovens que o frequentam. E em nome de quê? Em nome de quê e de quem?
Pode não ser politicamente lucrativo, mas seria interessante que aqueles que têm responsabilidades como decisores no Ministério da Educação reflectissem maduramente sobre o impacto de uma decisão tão arriscada. Os alunos das nossas escolas, do 1º Ciclo ao Ensino Superior, necessitam indubitavelmente de viver, experimentar e reflectir sobre experiências cívicas relevantes, o que não significa, contudo, que necessitem para isso de uma disciplina de Educação Cívica nos seus programas de estudo.

Ariana Cosme / Rui Trindade
Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação / Porto


  
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Edição:

N.º 87
Ano 8, Janeiro 2000

Autoria:

Ariana Cosme
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. de Porto
Rui Trindade
Faculde de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto
Ariana Cosme
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. de Porto
Rui Trindade
Faculde de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto

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