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Currículos Flexíveis - A Aposta pela Integração desde o Sistema Educativo (Segmento 1 de 4)

(conclusão da publicação iniciada na edição anterior)

Convencermo-nos ou não da necessidade de propostas curriculares mais integradas passa por poder dar resposta ou não às principais críticas que se podem fazer ao currículo baseado em disciplinas separadas. Entre estas críticas, podemos enumerar as seguintes:

A. Presta-se uma insuficiente atenção aos interesses dos alunos/as, quando deveria ser um dos principais pontos de atenção de um programa educativo. Desta forma, rejeita-se que estabelecê-lo pode motivar esses interesses.

B. Não se tem em conta adequadamente a experiência prévia dos estudantes, os seus níveis de compreensão, os seus modos de percepção individual e os seus ritmos de aprendizagem, o que não contribuirá para a estimulação dos necessários conflitos sociocognitivos, favorecendo, por isso, um trabalho intelectual quase exclusivamente memorístico.

C. A problemática específica do seu meio sociocultural e ambiental é ignorada com muita frequência, especialmente quando o principal recurso educativo que se emprega são os livros de texto. As preocupações económicas e políticas de cada editorial impedem de prestar suficiente atenção às problemáticas mais locais. A maneira principal de incrementar uma grande tiragem de exemplares de um mesmo manual escolar é incluir conteúdos muito gerais que podem ser comuns em lugares muito distintos e diversos; portanto, não pode recorrer-se ao estabelecimentos de assuntos e exemplos locais. A busca de maiores cotas de mercado força a optar por maiores níveis de generalidades e abstracções nas informações que se oferecem.

D. O currículo puzzle dificulta com grande frequência, ou não estimula, as perguntas mais vitais, já que elas não podem ser confinadas dentro dos limites das áreas disciplinares.

E. Existe assim, inibição nas relações pessoais entre alunos e professores/as, motivada pela artificial desmembração da realidade em disciplinas acrescida, além disso, pela tirania do livro de texto. Ao assumir a "irrealidade" e, por isso, as dificuldades de muitos conteúdos que se trabalham, não é necessário pedir muito mais esclarecimentos.

F. Com demasiada frequência, surgem dificuldades de aprendizagem provenientes de uma constante mudança de atenção de uma matéria para outra. Não esqueçamos que nas escolas onde se trabalha à base de disciplinas independentes, os módulos horários costumam dedicar blocos de quarenta e cinco ou cinquenta minutos a cada uma delas. E algo que também é a chave na hora de explicar muitos casos de fracasso escolar: não se podem compreender bem os possíveis nexos entre os conteúdos de tais disciplinas e, por isso, é demasiado o esforço que se precisa para memorizar tanto volume de informação. As outras capacidades intelectuais são apenas estimuladas.

G. O currículo por disciplinas pode ocasionar uma incapacidade para acomodar no currículo os problemas ou questões mais práticas, vitais e interdisciplinares tais como a educação sexual, a educação para a saúde e contra as drogas, a paz e o desarmamento, o desemprego, a contaminação e, em geral, quase todas as questões actuais.

H. Os alunos não captam as conexões que podem existir entre as distintas cadeiras, e tão pouco se proporcionam suportes para poder fazê-lo.

I. O currículo centrado em cadeiras leva ainda a uma inflexibilidade na organização, tanto no tempo como no espaço e nos recursos humanos, pelo que as actividades educativas muito apreciadas como, por exemplo, visitas, excursões, saídas, seminários de maior duração temporal, experiências, etc., não podem realizar-se, ou então colocam-se demasiados entraves.

J. A estrutura de disciplinas desmotiva, não favorece iniciativas dos alunos para o estudo e para a investigação autónoma. Não estimula a actividade crítica nem a curiosidade intelectual.

K. Por outro lado, os professores/as uma vez que se guiam por um livro de texto convertem-se em "organizadores organizados", carentes de autonomia, sem poder de decisão e sem controlo. Figura totalmente oposta à tão defendida, hoje, do "professor investigador", capaz de diagnosticar o que acontece nas aulas, de tomar as necessárias decisões, de oferecer uma grande variedade de recursos didácticos, de avaliar adequadamente tanto o desenho como o desenvolvimento de qualquer currículo.

Em geral, e sem ser exaustivo, podemos dizer que os projectos curriculares, os que trabalham com conteúdos culturais mais interrelacionados ou integrados têm como finalidade responder a questões como as seguintes:

1.Os alunos enfrentam a todo o momento conteúdos culturais relevantes. Não esqueçamos porventura que uma das perguntas que os estudantes fazem sempre é: "Porque é que estudamos isto?". Interrogação que quase sempre obtém respostas deste género: "porque é algo imprescindível para que no próximo ano possam compreender" tal ou tal questão, ou "isto é algo básico que todos os adultos necessitam de conhecer para se considerarem pessoas cultas", etc. Tratar-se-ia, por isso, de um aprazamento da aprendizagem até ao próximo ano. Mas temo, que nesse momento, provavelmente, esse tema objecto de referência suscitará idêntica pergunta por parte dos mesmos alunos, com uma resposta semelhante por parte da professora ou professor. Desta maneira, o sentido dos conteúdos dos currículos escolares seriam parecidos com as novelas policiais. Só no final do livro, nas últimas páginas, se encontra a chave que dá sentido a todas as precedentes. O mal é que no sistema educativo essas últimas páginas estão cada vez mais longe, porventura, nos últimos anos das carreiras universitárias e, por isso, uma grande percentagem de alunos abandona o sistema educativo, sem a chave que organiza e dá sentido a uma grande parte do que teve que estudar, das tarefas que realizou.
A compartimentação do conhecimento tem também, em minha opinião, muito a ver com a solução interrogativa que há anos formulou John DEWEY (1995, págs. 137-138): "Ninguém explicou porque é que as crianças estão tão cheios de perguntas fora da escola (de tal modo que chegam a causar incómodo às pessoas adultas se recebem algum estímulo) e a sua surpreendente ausência de curiosidade sobre as matérias das lições escolares.

2. Os conteúdos que se encontram nas fronteiras das disciplinas, aqueles que são objecto de atenção nas várias áreas de conhecimento e disciplinas podem abordar-se realmente ou não, sendo que alguns, ficam sem abordagem. O trabalho curricular ou interdisciplinar vai facilitar que aquelas perguntas ou questões mais vitais e, com frequência, conflituosas, que normalmente não podem confinar-se dentro dos limites de uma só disciplina, podem formular-se e afrontar-se. Por exemplo, as temáticas relacionadas com a educação sexual, as guerras e a paz, o mercado de trabalho, a ecologia, o racismo e a discriminação, a corrupção, etc.

3. Contribuir para pensar interdisciplinarmente, a criação de hábitos intelectuais que obriguem a ter em consideração as intervenções humanas em todas as suas perspectivas e pontos de vista possíveis, é uma das finalidades dos projectos curriculares integrados. Constata-se com certa facilidade que quando se estuda sobre o fundamento de disciplinas isoladas, sem estabelecer relações explícitas, é mais difícil ter em conta as informações e dados que as outras disciplinas trazem para compreender qualquer fenómeno, situação ou processo. O estudo de maneira disciplinar contribui para criar barreiras mentais, pensar em plano mosaico, disciplinarmente.

4. A integração curricular favorece, por isso mesmo, a visibilidade dos valores, ideologias e interesses que estão presentes em todas as questões sociais e culturais. Recorrendo ao exemplo anterior sobre a maneira de resolver problemas como os da energia, se incorporarmos outras perspectivas disciplinares distintas, as da física, é bastante previsível que no debate acerca das soluções energéticas nas nossas sociedades também se possam tornar visíveis os problemas de contaminação e degradação dos recursos naturais que se estão a produzir na actualidade, assim como os grandes interesses especulativos das grandes companhias de electricidade, das multinacionais petrolíferas, etc.

Trabalhar com esta concepção pedagógica de fundo supõe planificar propostas curriculares integradas e flexíveis (Jurjo TORRES, 1998-b) nas que os estudantes se vêem obrigados a:

A* Incorporar uma perspectiva global. Assumir a análise dos contextos sócioculturais em que se desenvolvem as suas vidas, assim como as questões e situações que submetem a estudo: atender as dimensões culturais, económicas, políticas, religiosas, militares, ecológicas, de género, étnicas, territoriais, etc. (frente a uma educação mais tradicional em que a descontextualização é uma das particularidades da maior parte de tudo o que se aprende).

B* Trazer à luz as questões de poder, implicadas na construção da ciência, e as possibilidades de participar no dito processo.

C* Dar visibilidade aos que constróem a ciência e o conhecimento; não silenciar aqueles que são para demonstrar a história e condicionantes de tal construção. Algo de capital importância nas actuais sociedades de informação.

D* Incorporar a perspectiva histórica, as controvérsias e variações que até ao momento se deram sobre o fenómeno objecto de estudo; a quem se devem, aqueles que beneficiam, etc. Incidir, portanto, no provisório do conhecimento.

5. Trabalhar na base de projectos curriculares integrados favorece a colegialidade nas instituições escolares. O trabalho interdisciplinar contribui para que os professores se sintam participantes de uma equipa com metas comuns enfrentando-as de maneira cooperativa; com responsabilidade perante os demais e nas suas tomadas de decisão. Com esta filosofia a favor da integração, conceitos como "conselho escolar", "equipa docente", hoje com dificuldades para ser reconhecidos, recuperam o seu autêntico significado.

6. A educação baseada na interdisciplinaridade permite, além disso, que as crianças possam adaptar-se a uma inevitável mobilidade nos empregos no dia de amanhã; permite mudar de especialização ou adquirir alguma nova destreza ou conhecimento sem que isso signifique até ao momento uma perda de tempo.

Determinados analistas do mercado de trabalho, afirmam que, por exemplo, na Alemanha, cinquenta por cento do conhecimento necessário para trabalhar nas empresas e suas máquinas, fica obsoleto em cada cinco anos. Em certas profissões o conhecimento duplica-se cada dois anos, etc. Creio, que poderíamos aceitar sem medo de nos equivocarmos que, aproximadamente oitenta por cento do conhecimento que precisam as novas gerações não está descoberto ainda; nem somos capazes de prever de que maneira se vai organizar o mundo do trabalho e da economia no futuro, que tipo de postos de trabalho vão existir.

Com planos de estudo que apostem nos currículos mais integrados, especialmente no Bacharelato, Formação Profissional e Universidade abrem-se maiores possibilidades de planear novas carreiras e especialidades com maior facilidade para fazer frente aos novos problemas que surgem constantemente.

7. Este modo de organização do currículo integrado, na medida em que desperta o interesse e a curiosidade dos alunos, já que o que estudam aparece sempre vinculado a questões reais e práticas, estimula as pessoas a analisar os problemas em que são envolvidas e a buscar alguma solução. Por isso é um tipo de educação que acalenta a formação de pessoas criativas e inovadoras.

No fundo, do que se trata é de educar os cidadãos com um "informado cepticismo", não no sentido de não crerem em nada, de se converterem em indiferentes e "pazotas" da vida, mas esforçar-se por convertê-los em pessoas prudentes que saibam que o seu conhecimento é parcial, incompleto e que, por isso, necessitam de continuar alerta, precisam de seguir investigando, contrastando, como uma das estratégias perante uma sociedade e um mundo em que os fundamentalismos, o pensamento dogmático, tendem a inundar tudo e a colocar-se como o único parâmetro a perpetuar.

As instituições educativas necessitam de preparar as novas gerações para o futuro, para aceitar responsabilidades, para tomar decisões morais e políticas que necessitam de estar fundamentadas em juízos razoáveis, ser fruto de processos de reflexão crítica em que se tome em consideração, o maior número possível de informações e perspectivas.

A urgência de uma nova revisão da cultura com que se trabalha nas aulas

A maioria das concepções sobre a escola e o trabalho escolar vem assumindo a catalogação do docente como de um trabalhador, uma trabalhadora ou profissional com um notável grau de historicidade, descontextualizado. Apenas se preparava para que aprendesse a tomar em consideração o marco social, económico, cultural e político em que se desenvolveria o seu trabalho.

Várias são as explicações para esta situação. Aliás, uma das situações que continua a reforçar este panorama é o incremento das opções políticas conservadoras e neoliberais. Estas políticas (conservadoras e neoliberais) contemplam as questões sociais, as desigualdades, as formas de opressão e os assuntos que têm a ver com a luta contra o racismo, o sexismo, a idade, os fundamentalismos religiosos e políticos, como perigosos e que podem complicar-nos a vida. Por isso, uma saída típica poderá ser o escape. Considera-se então que estas questões são problemas muito importantes, mas demasiado complexas e que, por isso, não temos porque introduzir estes temas conflituosos nas salas de aula e problematizar as crianças que ali se deslocam.

Para a imensa maioria de pessoas que passaram pela escola e continuam a assistir às aulas, os conteúdos escolares costumam ser demasiado abstractos, referidos a situações e espaços, descontextualizados no tempo, imprecisos, indefinidos, abstractos e nada concretos. Parece existir a preocupação mais para memorizar fórmulas, datas e generalidades descontextualizadas do que chamar a atenção para realidades concretas, tanto longínquas como locais.

Esta ideia de preservar os alunos mais jovens de observar as desigualdades e injustiças sociais, de mantê-los numa espécie de limbo, ou paraíso artificial é o que explica o infantilismo e as banalidades da maioria dos livros de texto destinados aos níveis obrigatórios do sistema escolar, em especial, na Educação de Infância e na Educação do Primeiro Ciclo do Ensino Básico. Considero preocupante o avanço de uma espécie de "Walt Disnalização" da vida e da cultura escolar, em que a realidade e informação científica, histórica, cultural e social, apresentada às crianças pela mão de uns seres fantasistas, de personagens irreais e animais antropomórficos, acaba reduzida a um conjunto de descrições risíveis e, frequentemente, açucaradas do mundo em que vivem. Muitos dos livros escolares que se trabalham nas aulas abusam demasiado deste tipo de imagens e informação e, por isso, dificultam que os alunos possam aprender a diferenciar claramente quando se deparam com um livro de aventuras, de contos ou um realista e rigoroso sob o ponto de vista informativo. Pensa-se implicitamente que, como vão dirigidos a crianças, não deveriam reflectir a vida real tal como é; é conveniente manter os alunos mais uns anos num mundo rodeado de fantasia. Daí que as situações da vida quotidiana reflectidas em tais livros de texto apenas se diferenciam, na forma e no tratamento, das que aparecem nos seus livros de contos e de banda desenhada mais "cursis" (porque há também boa literatura infantil onde a realidade tem um tratamento mais correcto sem desfigurações "cursis"). Esta modalidade de materiais curriculares, artificialmente infantilizados, acaba por converter-se num poderoso estímulo para incrementar o consumo da cultura do ócio conservadora, classista, sexista e racista que promovem as multinacionais do tipo Walt Disney, Hanna Barbera ou Mattel e o seu mundo de Barbies.

Existem também alguns textos que optam por reproduzir o modelo publicitário que utiliza a Benetton. Modelo em que se opta por contemplar imagens acerca das "diferenças", injustiças e problemas sociais (SIDA, racismo, etc.), mas despolitizando-as e rendilhando-as dentro de um novo cenário de cores ("Colors" é o nome da revista editada pela Benetton), de harmonia e paz mundiais, mas inexistentes na realidade. Neste sentido, quando se recorre à representação de grandes tragédias faz-se de um modo sensionalista, optando por alternativas que geram "compaixão" e "pena" a título individual, convertendo quem contempla essas imagens em "voyeurs". Não é fácil que a observação de tais fotografias leve a análises mais profundas e reais do significado das situações nelas representadas.

Os livros escolares assim açucarados ou desfigurados não têm outro efeito senão suster uma ameaça implícita que não ousa falar e reflectir sobre a realidade, ou colocar problemas, dificuldades e aspectos negativos dos seres humanos; mostra, assim, a nossa incapacidade para melhorar e resolver os problemas. Alguns querem afastar ou "preservar" as crianças da vida quotidiana, pensando que não se devem destacar fragmentos da realidade com carácter elucidativo que possam originar demasiadas interrogações nos alunos a educar, pois poder-se-á imaginar que em tais casos apenas se realça o negativo ou o frustrante, como se a realidade em que vivemos estivesse sempre dominada por problemas irresolúveis e inúteis. Este profundo pessimismo, por um lado, favorece estratégias que levam a marginar a infância em espaços "protegidos", a mantê-la numa espécie de limbo ou "reserva" para defender a sua "inocência natural", colocando-a unicamente perante temas banais que fazem alusão a paraísos idílicos de contos de fadas; por outro lado, contribuem para alargar desnecessariamente os anos que a nossa sociedade qualifica como etapa infantil, ou seja, prolonga-se a duração da infância.

Convém sublinhar que muitas das produções adultas destinadas à infância, na medida em que estão artificialmente infantilizadas, pressupõem um conhecimento erróneo do que é ser menino ou menina. Os livros informativos ou de texto que abusam das banalidades fazem-no porque os seus autores ou autoras têm em mente a ideia de uma infância ingénua, feliz, alegre, divertida, sem problemas, sem capacidade para assumir conflitos e erros humanos, incapaz de suportar a dor. Os problemas e as dificuldades são questões só das pessoas adultas. As crianças só apresentar problemas ou excesso de mimo; pensa-se que estas não podem assumir responsabilidades, porque por "natureza" são insensatas e irresponsáveis. Esta falsa concepção da vida infantil é responsável que as produções adultas destinadas a crianças incorporem numa exagerada proporção de tão alto grau de desenhos "cursis" e carentes de valores estéticos. Fere a sensibilidade que, muitos dos livros de leitura, têm como finalidade facilitar o conhecimento do meio sóciocultural, incorporem tão poucas fotografias e, ao contrário, estejam impregnadas de desenhos que dão uma informação muito menos verdadeira, menos relevante e significativa. Este conjunto de imagens parece apenas servir para aumentar o número de páginas dessas publicações ou, no melhor dos casos, introduzir mais cores e a estiagem, sem outra pretensão que não seja recrear a vista.
Evitar um real contacto das crianças com o mundo que as rodeia perpetua uma imagem negativa acerca das possibilidades dos seres humanos de intervirem e transformarem da maneira positiva a realidade, o mundo em que vivem. Uma verdadeira socialização da infância obriga as pessoas adultas a oferecer às crianças imagens dos logros humanos, de como as sociedades foram melhorando as suas condições de vida; exige destacar-lhes estratégias através das quais as mulheres e os homens foram superando as condicionantes físicas, bem como de que maneira conseguiram enfrentar com êxito as situações de opressão e de dominação social.

Uma das consequências deste trabalho excessivo para manter as crianças em paraísos artificiais, é que se continue a manter repetidos silêncios acerca da realidade. Os livros que integram esta filosofia de fundo prosseguem, considerando que no mundo só existem homens de raça branca, de idade adulta, que vivem em cidades, trabalham, são cristãos, de classe média, heterossexuais, magros, saudáveis e robustos (ver quadro 2). Dificilmente nos conteúdos de tais livros encontramos informação sobre temas como: a vida quotidiana das mulheres, das crianças e adolescentes, as etnias oprimidas, as culturas das nações sem Estado, as pessoas desempregadas e situações de pobreza, a gente humilde que vive da agricultura e da pesca, as pessoas assalariadas com baixos salários e suportando más condições de trabalho, a vida das pessoas deficientes físicas e/ou psíquicas, a situação das pessoas velhas e doentes, as ideias acerca do ser humano e do mundo das religiões não cristãs ou as explicações das concepções ateias, etc. (Jurjo TORRES 1998-b, Cap. IV). É óbvio que estas realidades não se coadunam bem com as fantasias da Disneylandia, o mundo classista e afectado de Barbies ou os parques recreativos de Astérix e Obelix.

Inclusive, quando na actualidade alguns destes colectivos tradicionalmente silenciados, fruto das suas resistências e lutas sociais aparecem como mais activos, como agentes de transformação da realidade e/ou como criadores de cultura, de obras de arte, é fácil que os rotulem com valorizações que deixam patente alguma forma de inferioridade nas suas produções. Algo que costuma acontecer com a utilização do qualificativo "cultura popular", que sempre aparece em contraposição, de maneira visível ou latente, à cultura oficial. Esta é a que leva aos juízos de valor positivos e oficiais, que leva a converterem-se obrigatoriamente nos conteúdos curriculares escolares e a que aparece com reais possibilidades de abrir portas no mercado do trabalho nesta sociedade neoliberal e conservadora. Por conseguinte, cultura popular é a denominação com que se reforça a marginalização de todas aquelas experiências, formas, artefactos e representações de determinados colectivos "sem poder" e que os grupos sociais hegemónicos, de posições institucionais de poder, a definem como de importância menor ou secundária.

A cultura popular é sempre política, no sentido que lhe dá a esta palavra Hannah ARENDT (1997, págs. 45-46): "a política trata do estar juntos e uns com os outros dos diversos... A política surge no entre e estabelece-se como relação". A cultura popular é produzida e desfrutada em/e desde situações de poder secundárias, pois tem entre os seus objectivos alterar as correlações de poder existentes. Em muitas das criações culturais populares pode detectar-se com facilidade a enorme carga crítica que os seus produtores e produtoras veiculam e dirigem contra os grupos que controlam a sociedade desde as posições de poder. Assim, por exemplo, os rifões, a literatura oral, o humor popular, a música Rock, Reggae, Rap, Bravú, o cómico, os fancines, etc., nas suas criações mais originais e autênticas, sem qualificativos, não têm outro significado senão o de uma reacção contra a cultura dominante "oficial" ou de "prestígio. Parecem ser produções culturais que geram solidariedade entre os integrantes de colectivos humanos cuja identidade está a ser interdita ou ameaçada. Deste modo, os jovens reconhecem-se diferente dos adultos através da música. As pessoas que habitam em determinadas nações sem estado recorrem à música, literatura e outras formas criativas para defenderem os seus idiomas, os seus estilos de vida e o seu direito de decidir o seu futuro como povos perante as ameaças de colonização e destruição da sua memória colectiva.

Todavia, a cultura popular gera também as suas próprias contradições e, por isso, sob certas condições ou pressões históricas e sociais podem ter efeitos políticos e sociais reaccionários. É, principalmente, quando existe um compromisso para análisar as produções culturais e científicas que podemos curtocircuitar as suas consequências mais perversas.

A defesa de um currículo optimista

Uma das razões dos sistemas educativos nas sociedades democráticas é preparar os cidadãos para poderem exercer livremente os seus direitos e deveres sociais de maneira responsável, solidária e, em boa lógica. Daí que já C. Wright MILLS. (1987, pág. 295) escrevera que "a principal tarefa que incumbe à educação pública, tal como chegou a entender-se neste país, é política: fazer todo o cidadão mais consciente, e portanto, mais capaz de pensar e julgar os assuntos públicos". Não obstante, já em meados dos anos cinquenta quando escreveu esta obra, La elite del poder, está perfeitamente consciente dos desvios mais notórios dos sistemas educativos modernos; de como o indivíduo abandona a formação política e negligencia a sua participação nos assuntos da comunidade, para submeter-se às orientações de um capitalismo feroz, que reclama não pessoas educadas, mas "amestradas" para ocupar os melhores postos de trabalho.

As queixas que muitas pessoas adultas lançam sobre a juventude, em especial sobre o seu individualismo, para não dizer o seu egoísmo, o seu alheamento na hora de sanar inclusive os seus problemas individuais, têm, a meu ver, também uma causa no sistema educativo, na medida em que não chegaram a compreender como os problemas individuais e apresentam, em muitíssimas ocasiões, uma explicação mais colectiva: derivam de condições de vida que afectam os grupos humanos aos quais pertencem e que, por conseguinte, a sua resolução. Passa por actuações mais colectivas, em colaboração com o resto das pessoas da sua comunidade. Não esqueçamos que "a cultura dá forma à mente... dá-nos a caixa de ferramentas através da qual construímos não só os nossos mundos, senão as nossas próprias concepções de nós mesmos e os nossos poderes" (Jerome BRUNER, 1997, pág. 12).

O docente é um dos principais intermediários culturais que a sociedade oferece às crianças, com um enorme poder nas suas mãos, pois é ele que se vai encarregar de apresentar a história, o passado da humanidade e, logicamente, a comunidade a que pertence e a instituição escolar em que trabalha. De acordo com a selecção do passado pretendida, tratará de explicar o presente: buscará nesse passado as razões do que acontece na actualidade. Ao mesmo tempo que trabalha com os alunos, esse passado e presente da sociedade, está a fazer uma coisa muito decisiva: apresentando o mundo das possibilidades. Estas explicações de como o presente está condicionado pelo passado, por sua vez, funcionam como estímulos ou freios acerca do que as novas gerações pensam sobre o futuro, sobre as possibilidades ou não de alterar determinadas situações deste momento histórico.

Educar, portanto, supõe "colaborar, num grupo de pessoas, no nascimento das sensibilidades culturais e técnicas que farão delas autênticos membros de um público, (não de uma massa) autenticamente liberal, ou seja, um ensinamento de capacidades e uma educação de valores... Inclui provocar essas capacidades de controvérsia consigo mesmo a que chamamos pensar; e com o outro, a que chamamos debate" (C.Wright MILLS, 1987, pág. 295, el corchete es mío).

Na medida em que, por exemplo, as experiências da vida quotidiana das pessoas da classe trabalhadora não qualificada, da juventude, das pessoas de outras raças e etnias não hegemónicas, daqueles que vivem no mundo rural e piscatório, não são objecto de atenção nas aulas, nessa medida contribuímos para reforçar as produções culturais e a definição da realidade que as elites no poder promovem e divulgam com a ajuda de uma rede muito apertada dos meios de comunicação (rádio, televisão, imprensa, publicidade, cinema,...).

É analisando a vida quotidiana que podemos pôr à prova o valor dos conteúdos mais académicos que os alunos trabalham nas escolas; e ver em que medida é que tais conteúdos podem auxiliar na compreensão das condições de vida dos colectivos silenciados e marginalizados; comprovando se podemos explicar-lhes as suas reacções e a riqueza da forma como fazem frente à sua dura realidade. Os conteúdos culturais que se trabalham nos currículos escolares têm que servir não só para os alunos entenderem e fazerem frente a problemas e injustiças da vida diária, mas também para analisar e combater questões como a destruição da identidade colectiva, a violência e agressões machistas que suportam um importante número de mulheres, os comportamentos e valores racistas que pessoas que convivem connosco têm que aguentar, a precariedade dos contratos de trabalho ou a situação de paralização que sofrem muitas pessoas e que as condenam à pobreza e marginalização. O trabalho nas aulas deve ajudar a desafiar o classismo, sexismo, homofobia, situação etária que impera nas relações sociais e interpessoais e que ao interiorizar-se de maneira irreflexiva condiciona as tomadas de decisões em que nos vemos implicados. Pensemos que dificilmente haveria alguma pessoa que de uma maneira reflexiva aceitaria converter-se em cúmplice destes aspectos negativos.

Um currículo democrático, entre outras características, tem que dar lugar a que os jovens conheçam como os distintos colectivos de trabalhadores/as, de adolescentes, de homens e mulheres resistem, defendem e reivindicam os seus direitos; tem que fazer o possível para que o aluno conheça a história dos lucros, os aspectos positivos que estes colectivos em situações injustas foram capazes de promover e beneficiar.

Se o sistema escolar tem que capacitar o aluno para poder participar nesta sociedade e para assumir responsabilidades, não pode negar-lhe informação de grande valor educativo como são a história dos ganhos sociais, culturais, científicos, tecnológicos e políticos com que alguns suportavam situações de injustiça e violência, organizavam a sua luta e resistência. Se os distintos colectivos sociais e povos foram e são capazes de confrontar-se com uma grande variedade de formas de opressão e dominação, isso indica que podemos ser optimistas sobre o futuro das nossas sociedades e da humanidade, em geral.

É realmente paradoxal como o sistema educativo está a desempenhar um papel importante na hora de educar as novas gerações com optimismo ou com pessimismo perante o futuro da humanidade, e perante as possibilidades que vão ter para reproduzir ou transformar as nossas actuais sociedades. No meu entender, creio que podemos dizer que nestes momentos existe um confronto entre os valores e atitudes perante o mundo que se constrói nas aulas. Assim se gera um grande optimismo, inclusive excessivo, perante as possibilidades do conhecimento científico e tecnológico, e se fomenta um forte pessimismo perante a possibilidade dos seres humanos em transformar as sociedades actuais, os seus modos de vida, as injustiças actuais que são fruto dos modos de organização e distribuição das oportunidades e recursos em que assenta a nossa sociedade. Assim, por exemplo, a imensa maioria dos cidadãos é totalmente optimista perante as probabilidades de viajar até Vénus, de obter vacinas contra os diversos cancros e enfermidades mortais do presente. Estão convencidos que se poderão fabricar máquinas e robots para toda a espécie de trabalhos hoje apenas desempenhados por pessoas muito especializadas, etc. Aprendemos já que tudo é uma questão de orientar os recursos para promover essas linhas de investigação e ser constantes até alcançar esses objectivos. Pelo contrário, para essas mesmas pessoas é fácil que também tenham umas expectativas muito negativas acerca das probabilidades de lutar contra a pobreza, de fazer desaparecer os modos autoritários e fascistas de organização de muitas instituições e sociedades, de repartir de maneira mais equitativa os recursos entre todos os povos do mundo, etc. Parece que as novas gerações se sentem impotentes perante as possibilidades de ajustar no futuro sociedades mais democráticas, solidárias e justas. Um notável niilismo intelectual, acompanhado com grandes doses de cepticismo social e um enorme cinismo político estão por detrás desse negativismo que, no fundo, já está a celebrar o fim da história.

Se seguimos aceitando que o ser humano é racional, está dentro da lógica esperar que possa comprometer-se em políticas e actuações sociais destinadas a transformar tudo aquilo que atente contra a sua humanidade e as suas possibilidades de construir e melhorar continuamente o mundo em que habitamos. Como seres humanos capazes de observar, analisar e teorizar também podemos desenvolver as nossas capacidades de imaginar alternativas de melhorar tudo aquilo que detectamos com deficiência.

A educação das novas gerações obriga, por isso, a transmitir-lhe este optimismo. Têm que saber que os problemas sociais e humanos se resolverão e se resolvem quando aqueles que sofrem se organizarem de maneira adequada e se dedicam a fazer-lhes frente. O aluno necessita de aprender na base de exemplos positivos, que as conquistas sociais não se devem a uma personagem política, uma parlamentarização específica ou a um determinado partido político logrando a aprovação por parte do Parlamento de uma lei que melhora as condições de vida de tal colectivo social. É necessário que chegue a compreender que são as lutas sociais dos diversos colectivos humanos afectados as que conseguem que essas propostas legislativas apareçam no programa eleitoral dos partidos políticos e sindicatos mais sensíveis aos problemas desses colectivos sociais. É desta maneira que conseguem converter-se em assuntos prementes para o Governo. É preciso evitar a conformação de uma visão do mundo em que a transformação das condições injustas de vida aparecem dependendo de personalidades de reconhecido prestígio e de heróis solitários. É urgente fazer frente a toda a cultura do personalismo com que os modelos individualistas dominantes tratam de isolar os seres humanos, para facilitar a sua dominação.

Todos aqueles assuntos sóciohistóricos que não se trabalham nas aulas podem chegar a ser tão educativamente relevantes como os que se seleccionam para ser ensinados, dado que a ignorância não equivale à neutralidade. Aquilo que não é ensinado ou é silenciado vai condicionar em maior ou menor medida as análises de muitas situações e problemas sociais, vai impedir tomar em consideração algumas alternativas, vai restringir possibilidades de intervenção social e, pode inclusive, permitir que não se detectem situações injustas e assuntos prementes.

Uma história que silencie ou explique mal como é que os distintos colectivos humanos foram e vão fazendo frente aos seus problemas é uma história alienante, que promove uma educação sem sentido e frustrante. Os jovens acreditarão que nada mudou desde que o ser humano existe e que no futuro muito menos nem as situações de injustiça que constatam se vão resolver, ou seja, estamos a transmitir-lhes que o nosso mundo se rege por uma espécie de lei da selva, do tipo salve-se quem puder. Uma selectividade semelhante nas informações que se manipulam nas aulas teria uma importante culpa no diagnóstico que sobre o ser humano actual faz o filósofo Cornelius CASTORIADIS (1998, págs. 24-24): "O homem contemporâneo comporta-se como se a vida em sociedade fosse uma odiosa obrigação que só uma desgraçada fatalidade o impede de ... comporta-se como se fosse vítima da sociedade a que, por um lado (inferior à fórmula do Estado, ou dos outros), está sempre disposto a responsabilizar de todos os seus males, pedindo - ao mesmo tempo - assistência ou "solução para os seus problemas". Já não alimenta nenhum projecto relativo à sociedade - nem o da sua transformação, nem sequer o da sua conservação/reprodução".

Quando afirmamos que no sistema educativo se trabalha com uma "tradição selectiva" (Raymond WILLIAMS, 1980) o que também quer dizer é que se, por exemplo, o aluno desconhece a história da classe trabalhadora ou a história das lutas das mulheres em prol da sua libertação, o que estamos a conseguir é incapacitá-lo para fazer frente aos problemas que como homem ou mulher, como cidadão ou cidadã vai ter que enfrentar. No meu entender, quando actualmente ouvimos que a realidade é sempre injusta e sempre foi e será assim, o que estamos a realçar é como as actuais gerações foram submetidas a uma educação que silenciou as chaves que movem e transformam as sociedades.

Também é nas aulas onde o aluno dos grupos sociais desfavorecidos tem em conta que as suas experiências, linguagem, sentimentos, tradições, e a sua família não são interessantes; o que realmente vale a pena e goza de valor superior é a vida de "outras pessoas", daqueles que pertencem a colectivos ou grupos sociais que o professor elege como modelo e os que se vão invejar e, inclusive, tratar de imitá-los e assemelhar-se. Se o professor não os ajuda a reflectir sobre a sua própria realidade, é nas instituições escolares onde surgem as primeiras grandes frustrações, onde aprendem a ver-se como pessoas deficientes ou, o que é pior, fracassadas. É mediante a educação que as pessoas podem capacitar-se para perceber os seus próprios valores e, logicamente, também os seus defeitos e de que maneira poderão enfrentá-los.

As escolas e as aulas têm que ser espaços onde todas as crianças se sintam estimuladas a criticar, a questionar todas as informações com as quais entram em contacto, todas as atitudes e comportamentos que observam e com quem convivem. Nas aulas é necessário recorrer às experiências pessoais para as contrastar e para as rever.

Todavia, é preciso ser suficientemente realista e reconhecer que as instituições académicas não são um paraíso, mas é possível transformá-las em espaços interessantes, onde as pessoas se sintam optimistas quanto às possibilidades de intervir e transformar de maneira positiva a sociedade em que vive, e em que trabalham e em que desfrutam. Esta necessidade de gerar ilusão e optimismo nas novas gerações é também a mensagem que nos envia Bell Hooks quando escreve: "a aula, com todas as suas limitações, continua a ser um lugar de possibilidades. Neste campo de possibilidades temos a oportunidade de trabalhar pela liberdade de desejar de nós mesmos e dos nossos companheiros e companheiras uma abertura da mente e coração que nos permita confrontar-nos com a realidade no mesmo momento em que colectivamente imaginamos formas de superar e ir mais além. Isto é educação como prática de liberdade".

O currículo integrado e o contexto organizativo escolar

Optar por um currículo integrado ajuda a modificar o contexto do trabalho escolar; obriga a transformar a organização dos recursos da escola e da aula (livros, revistas, vídeos, programas informáticos, periódicos, gravações, etc.) colocando-os em estantes e em sítios visíveis, ao alcance das mãos do estudante; criar condições para melhorar a conexão da escola com o mundo exterior; elaborar estratégias para que outras pessoas e profissionais da comunidade tenham acesso e comunicação com o aluno, planificar maior número de saídas a instituições locais, a centros de trabalho, a espaços culturais da localidade para contactar com pessoas que em princípio não têm uma relação directa com a escola e os docentes; trabalhar de maneira mais coordenada e colaborante por parte dos professores, etc. Precisa-se de recorrer a uma variedade de estratégias metodológicas, tanto de recursos, como de modalidade de agrupamentos de estudantes, formas de motivação e maneiras para valorizar tudo o que acontece nas aulas.

Existe o perigo de perder de vista as razões pelas quais nos comprometemos na defesa e concretização dos currículos integrados optimistas. Pode suceder que o facto de rotular ou etiquetar algo de uma determinada maneira equivale a assumir a filosofia que configure essa denominação. O perigo "nominalista" é importante e uma boa prova disso é a última estratégia da direita política e ideológica de recorrer à utilização dos conceitos de maior êxito social das tradições políticas progressistas e de esquerda, mas esvaziando-as de conteúdo ou distorcendo-as. Um dos erros frequentes é o de reduzir tudo a uma questão de "técnicas". Algo que se agrava mais nas instituições escolares onde a urgência do imediato faz estar mais vocacionado para tarefas de carácter prático, onde a sufocação e a falta de tempo se convertem numa armadilha que pode fazer com que esqueçamos de nos interrogar sobre as verdadeiras razões e efeitos da prática. De facto, um erro frequente foi pensar que para poder implementar uma determinada filosofia educativa basta comprometer-se com alguma estratégia e recursos didácticos, e que a divulgação de algumas concretizações práticas era suficiente para alargar e assumir a filosofia e razão de ser desses exemplos práticos. Muitas vezes, ao longo da história, chegou a aceitar-se que as técnicas ou metodologias eram suficientes para fazer os discursos e reflexões mais teóricas que as promoviam.

Mas, afinal, em bastantes casos, essas exemplificações práticas acabavam por converter-se em esquemas rígidos a reproduzir e, o que é pior, desconhecendo a sua razão de ser e por isso com poucas probabilidades de contribuir para enriquecer o modelo pedagógico de fundo desde que o propuseram. Quando acabam por compreender as razões dos defeitos das nossas práticas, no momento em que detectamos quais são as distorções que se produzem e quais são as autênticas finalidades do nosso trabalho, é que é mais fácil que a qualquer um lhe ocorram tarefas de carácter prático para resolver tais erros.

É fácil conhecer que exemplos de tarefas escolares se podem propor aos alunos, por exemplo, que se podem utilizar vídeos, saídas escolares, livros de divulgação científica, visitas a museus, fazer jornais escolares, etc., mas se não são claras as razões das selecções e os porquês, pode acontecer que essas tarefas, que num primeiro momento se supõem uma inovação educativa "tape", os defeitos importantes do sistema educativo, acabam anos mais tarde por reproduzir os mesmos erros contra os que insurgiram. O exemplo das técnicas elaboradas por Celestin Freinet é uma boa demonstração de como determinadas técnicas, mediante as quais o seu autor pretendia veicular uma importante filosofia educativa progressista de esquerda, foram incorporadas por algumas escolas, mas com outras finalidades. Assim, por exemplo, a correspondência escolar, a imprensa e os periódicos escolares, foram utilizados por alguns colégios de um modo distorcido, para tratar questões nada ou pouco relevantes e com atitude dirigistas por parte dos professores e/ou da direcção da escola. Desta maneira se alteravam e distorciam as finalidades de uns recursos didácticos que pretendiam favorecer a comunicação com a realidade e contribuir para submeter a crítica à sociedade em que se vive, os seus valores dominantes, os interesses subjacentes às acções que se propõem, etc.

Todos os professores e professoras sabem enunciar múltiplas tarefas para desenvolver nas aulas. Ninguém melhor que eles conhece experiências práticas de formas de trabalho nas instituições docentes, mas a questão principal é a sua planificação, análise e seguimento sem nunca perder de vista a sua razão de ser. Estar consciente do motor que orienta a selecção das acções práticas que se desenvolvem nas aulas e escolas. Realmente importante é a filosofia que está subjacente a cada modelo de trabalho curricular.

Um currículo integrado não recebe tal nome só por aparecer esboçado nuns papéis em forma de proposta em que os conteúdos aparecem organizados interdisciplinarmente, se propõem metodologias didácticas baseadas na investigação e colaborantes, etc. É necessário que esta coerência também seja perceptível pelo próprio aluno à qual está destinada a proposta.

Favorecer uma maior comunicação nas aulas entre o currículo escolar e a realidade, passa a ser visível para o aluno as conexões entre os conteúdos que as instituições escolares trabalham e a sua concretização e validade para compreender e intervir na sociedade. Pode suceder que os conteúdos que se trabalham sejam considerados como relevantes e necessários para os professores, mas isso não basta; as crianças necessitam de captar desde o primeiro momento a sua validade e finalidade, algo que servirá como motivação (a palavra mágica, tantas vezes desvirtuada).

Colocar em relação explícita diante do aluno umas disciplinas com outras é também uma maneira de descobrir e desejar abrir questões comuns que têm diversas especialidades entre si, de somar esforços para enfrentar os problemas sociais e naturais que têm como finalidade resolver. É uma forma de contribuir a não levantar falsas barreiras entre disciplinas, de evitar fronteiras entre especialidades e, o que é pior, a não comunicação entre saberes, especialistas e a sociedade para a qual trabalham e servem.

Quanto mais visíveis se produzam para os alunos/as os elementos comuns e as relações entre as diversas especialidades do conhecimento, mais fácil resultará compreender informações que de uma maneira isolada requereriam um maior esforço; os processos de memorização ver-se-ão igualmente melhorados e, algo que também é importante, se facilitarem as possibilidades de buscar as aplicações práticas de conceitos, saberes, técnicas e destrezas.

O trabalho em equipa nas propostas curriculares integradas

Esta filosofia e praxis educativa integradora exige também que os professores criem novas disposições. Numa sociedade onde os discursos tecnológicos são hegemónicos, onde primam os desenhos feitos segundo os princípios de predictibilidade, controlo, eficiência, rígida sequêncialização de tarefas, etc., esta nova filosofia promove a recuperação de uma atenção primordial do significado das propostas de trabalho, tanto para os estudantes como para os professores; parte-se de que é próprio do trabalho educativo existirem contradições, ambiguidades e, logicamente tensões, dada a diversidade de experiências e particularidades das pessoas que interactuam em toda a aula e escola (Ph. W. JACKSON, 1994).

Um currículo integrado é uma proposta que se desenvolve ao longo de um período de tempo mais amplo do que os temas e lições dos planos de trabalho disciplinares mais tradicionais, portanto, tem que ser uma proposta aberta e flexível em que seja contemplada a possibilidade do aluno poder realizar eleições, introduzir focos de atenção ou modificações no seu desenvolvimento que, em princípio, não se percebem, mas que surgem durante a realização prática da proposta e resultam coerentes com ela.

Mesmo assim, esta concepção educativa tem implicações nas modalidades organizativas dos centros de ensino. Aliás, uma das questões que obriga a maiores esforços, é o requisito do trabalho em equipa, primeiro entre os professores e, a continuação, entre os alunos, assim como destes com os seus professores/as.

Num sistema educativo que prima tanto pelas individualidades e o papel das pessoas especialistas, a filosofia da integração requer transformar de raiz os hábitos de trabalho dos professores, especialmente naquelas etapas educativas que os professores seleccionam e organizam por disciplinas, por exemplo, na educação secundária e formação profissional. É preciso ajustar as estruturas que permitam que esses peritos e peritas de cada uma das disciplinas e níveis estabeleçam aberturas de comunicação, criar espaços que permitam o trabalho em equipa, que façam o possível por levar a cabo o trabalho interdisciplinar. Os medos pessoais, na hora de colaborar, são obstáculos que é preciso derrubar. Uns e outros foram formados na tradição de trabalho individual e isso gerou pessoas com temor de partilhar.

As professoras e professores necessitam também de aprender a descobrir nexos entre as disciplinas, detectar que estruturas conceptuais, destrezas, procedimentos e valores são mais interdependentes, quais os que se estão a compartilhar, ainda que sem ser consciente disso, e quais e como é possível coordenar, assim como quando é que se pode fazer.

Esta filosofia implícita no currículo integrado vai repercutir-se também positivamente no favorecimento de uma destreza capital para qualquer sociedade democrática, que é a de desenvolver capacidades e hábitos de negociação. Tanto professores como alunos/as, na medida em que vão participando nas propostas curriculares integradoras, irão aprendendo a debater, reflectir em equipa e a negociar democraticamente tarefas e modos de as levar a cabo. Não esqueçamos que a única maneira de formar pessoas democráticas é fazê-las participantes de instituições escolares com modos de funcionamento democrático, que as obriga a exercer modalidades democráticas de trabalho e interacção.

Na medida em que um currículo integrado requer que se façam propostas de trabalho coerentes, com sentido para os alunos e, supostamente, para os professores, nessa medida requer debater, esclarecer e convencer-se mutuamente nos objectivos de qualquer tarefa escolar que se planifique e prolongue, colocar e discutir possibilidades alternativas, etc. É uma maneira de aprender a movimentar-se em estruturas flexíveis, numa sociedade e momento histórico onde também a palavra flexibilidade se converteu numa das palavras mágicas de maior actualidade.

Jurjo Torres Santomé
Universidade da Corunha (Galiza)

Bibliografia:

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  • TORRES SANTOMÉ, Jurjo (1998-b). Globalización e interdisciplinariedad: el curriculum integrado. Madrid. Morata, 3ª edic.
  • WILLIAMS, Raymond (1980). Marxismo y literatura. Barcelona. Península.

Jornal a Página da Educação nº 86 - Dezembro de 1999, pg. 4


  
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Edição:

N.º 86
Ano 8, Dezembro 1999

Autoria:

Jurjo Torres Santomé
Universidade da Corunha, Galiza/Espanha
Jurjo Torres Santomé
Universidade da Corunha, Galiza/Espanha

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