Página  >  Edições  >  N.º 85  >  A Propósito de um Desabafo...

A Propósito de um Desabafo...

Andávamos às compras quando ouvimos um olá meninos inconfundível e alegre. Bastou virar o pescoço e reconhecê-la para que a conversa começasse a jorrar franca e expedita. Era sábado, estávamos num supermercado, e, nestas circunstâncias, não foi tanto a notícia da sua reforma que nos incomodou, mas a razão por ela invocada para justificar uma decisão que, muito provavelmente, poderia ter sido adiada por mais alguns anos. Estou farta de canalha, ouvimo-la dizer num tom que aparentando indiferença não era capaz, contudo, de disfarçar a resignação e o desencanto.
Não era a primeira vez que escutávamos desabafos idênticos àquele, paradoxais, abusivos, redutores, quanto ao modo como se escolhem e se proferem as palavras através das quais todos os desabafos acontecem. Não sendo capaz, nem sequer pretendendo dar conta da natureza do cansaço e da desilusão quotidiana de quem os profere, os desabafos dão-nos, apesar de tudo, o valor da grandeza desse cansaço e das desilusões que os justificam. O que nos espevitou os sentidos e, posteriormente, a conversa não foi, contudo, o desabafo em si, mas o facto dos alunos serem eleitos, por aquela professora , como a causa do seu mais que visível cansaço profissional.
Decerto que o trabalho com crianças é exigente e desgastante. Só quem já viveu as solicitações diárias, ano após ano, de uma sala de aula pode avaliar o grau de exigência e de desgaste a que um professor está sujeito. Alguns estudos têm mesmo vindo a comprovar que o mal-estar docente é comparativamente superior ao de qualquer outra profissão. Será, contudo, rigoroso e justo atribuir esse mal estar apenas às vicissitudes da relação que os professores mantêm com os alunos, conforme o desabafo da nossa amiga sugeria ?
Poderá qualquer um de nós resumir a sua vida profissional apenas aos momentos em que se sentiu incapaz de lidar com os problemas de aprendizagem, os problemas comportamentais e os problemas pessoais dos seus alunos ?
Não cremos. Há nas nossas vidas algumas Anas, alguns Tiagos e Manuéis, algumas Sofias que um dia nos fizeram sentir felizes e úteis. Houve, com certeza, dias profissionais magníficos que iluminaram, algures, a nossa existência. Numa certa tarde, alguém se nos dirigiu, cumprimentou e falou do prazer que era rever-nos ao fim de tantos anos, possibilitando que descobríssemos, se calhar, só nesse momento como o nosso inesperado interlocutor reconhecia publicamente a importância que tínhamos assumido na sua vida, enquanto seus ex-professores.
Não existirão outras razões que contribuem para explicar esse mal-estar que, embora não mate, nos mói, por vezes, até ao tutano da alma ?
Certamente que existem. As agruras da nossa vida pessoal, as precárias condições de trabalho com que alguns de nós se debatem, o não-reconhecimento público e social da actividade que desempenhamos, as expectativas desmesuradas que se abatem sobre a educação escolar em geral, e sobre os professores em particular, resultante do equívoco que constitui a pedagogização de problemas de natureza social podem ter sobre todos nós um efeito devastador. É então, face à sensação de impotência que nos paralisa, que não somos capazes de vislumbrar como a falta de solidariedade profissional, alimentada pela pobreza das relações de trabalho que mantemos com os colegas, não permite que nos libertemos da solidão triste em que nos encerramos, tornando-nos mais vulneráveis aos problemas com que nos defrontamos.
Afinal estamos fartos de quem e de quê ?
Não tenhamos ilusões. É importante que continuemos a confrontar os Ministérios da Educação com as suas responsabilidades políticas no âmbito da gestão de um sistema educativo cada vez mais complexo e sujeito a finalidades com um maior grau de exigência. É importante que se reivindique, também, uma maior qualidade e pertinência dos projectos de formação inicial e contínua de professores e educadores, do mesmo que é prioritário exigir melhores condições de trabalho, capazes de contribuir para a construção de respostas educacionais pertinentes e adequadas às necessidades e exigências da vida contemporânea em sociedades que se designam como democráticas. É importante, ainda, o desenvolvimento de acções tendentes a dignificar o estatuto da carreira docente. Apesar disso, não tenhamos ilusões, os problemas continuarão a existir, embora nós estejamos, certamente, mais capazes e mais disponíveis para os resolver, ou pelo menos para os enfrentar. Contudo, nunca resolveremos esses problemas, nem sequer os enfrentaremos, se não formos capazes de encontrar outros sentidos para a vida colectiva no seio das escolas; se não formos capazes de encontrar outros significados para a partilha e a reflexão entre professores; se não formos capazes de encontrar outras formas de organização e de liderança que permitam sustentar e legitimar a construção de colectivos docentes preocupados e interessados em pensar os problemas, os desejos, os recursos, as respostas e os projectos a desenvolver em cada uma das escolas deste país; se, em suma, não formos capazes de construir uma outra cultura profissional que nos reabilite perante nós próprios e permita que nos afirmemos perante os outros.

Ariana Cosme/Rui Trindade
Faculdade Psicologia Ciências da Educação/Univ. Porto


  
Ficha do Artigo
Imprimir Abrir como PDF

Edição:

N.º 85
Ano 8, Novembro 1999

Autoria:

Ariana Cosme
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. de Porto
Rui Trindade
Faculde de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto
Ariana Cosme
Fac. de Psicologia e Ciências da Educação, Univ. de Porto
Rui Trindade
Faculde de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo