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Para Além da Teorização...

"Algumas pessoas (referindo-se a(o)s professora(e)s) não são as mesmas... E as que são as mesmas ? é o que te digo ? já passaram à fase de teorização".
A afirmação é duma professora duma escola secundária do Porto, com metade da carreira profissional cumprida, e ressaltou do interior de uma conversa com os seus pares, quando tentavam, em grupo, analisar as transformações que se vão operando no seu modo de funcionamento face ao quotidiano da Escola.
A gargalhada, que se lhe seguiu, não retira à afirmação transcrita o poder sibilino que comporta; pelo contrário, pode agudizá-lo, se não nos contentarmos com ver nela o seu sentido imediato, que parece ser o de ridicularizar o papel dos teóricos quando abordam os problemas dos práticos do seu (deles, teóricos) ponto de vista. Neste sentido, "passar à fase da teorização" significará, muito provavelmente, simplificar o trabalho, retirar-se do campo das contradições quotidianas, insensibilizar-se à multiplicidade dos problemas que enxameiam a atenção dos professores, "dar-se à balda", como outro interveniente explicitaria.
Mas pode também significar - e não é líquido que essa não tenha sido também a referência visada pela autora ? que, agora, a prática "vale" mais pelas discussões de que é objecto, do que pelas acções concretas e espontaneamente desenvolvidas na directa relação profissional sobre o "terreno". Nesta interpretação, a importância que o discurso sobre as práticas estaria a ganhar entre os profissionais é, em si mesma, um sintoma que importará analisar. Proporia três hipóteses.
Na primeira, o "passar à fase da teorização" envolveria um sentido de auto-justificação, reconhecido, psicologicamente, como cada vez mais necessário à medida que o trabalho quotidiano se salda por um sentimento de impotência, de confusão, de falta de controlo, não só sobre as condições concretas do trabalho, mas, mais ainda, sobre os referentes de valor e de identidade profissional. Se "as (pessoas) que são as mesmas ... já passaram à fase de teorização" é porque não são as mesmas. Resta-lhes agora teorizar. Encontrar uma justificação. Talvez uma desculpabilização. De qualquer modo, é difícil não ver aí uma manifestação de crise que se traduz por uma paralização na acção, que procura racionalizar-se em "teoria".
A segunda hipótese iria buscá-la a uma intenção de arremedo do modelo que tem sido dominante no campo da formação, o qual ao pautar-se por uma visão laudatória das "boas práticas", que só "laboratorialmente" são possíveis, estigmatiza as práticas reais como abjectas. Com este discurso sobre as "boas práticas", as mesmas pessoas não podem ser as mesmas
Numa terceira hipótese, o "passar à fase da teorização" corresponderia à denúncia duma tendência, que se virá afirmando no interior das instituições escolares, de sujeitar as práticas a enquadramentos hiper-regulados internamente que, não obstante a sua aparente flexibilidade jurídica, requerem, por isso mesmo, intermináveis afinações "teóricas", em detrimento da sua pertinência prática.
Estas hipóteses admitem-se como complementares; todas elas, eventualmente, encontrarão a sua pertinência num sentimento de falta de sentido para acção que busca sustentar-se em ironia, a que não falta alguma auto-crítica, que nenhuma teorização, só por si, pode superar.

Manuel Matos
Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação
da Universidade do Porto


  
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Edição:

N.º 84
Ano 8, Outubro 1999

Autoria:

Manuel Matos
FPCE, Univ. do Porto
Manuel Matos
FPCE, Univ. do Porto

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