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Universidade - Espécie Rara, Sempre em Risco (Conclusão)
1. Significado da fundação da nova universidade de Berlim

16 de Agosto de 1809. Em Berlim, então capital da Prússia, é criado um novo "Estudo Geral", com o nome de "Universidade Friederich Wilhelm" (U.F.W), antecessora da universidade alemã hoje denominada "Wilhelm von Humboldt"? um nome a reter, pela importância que tem em tudo quanto aqui será dito.
Convém deixar claro, logo de entrada, o (duplo) significado que aqui se atribui a este acontecimento, tanto mais que o seu teor se inscreve ao arrepio da opinião dominante, que lhe atribui uma baixa classificação, se é que lhe atribui alguma. Não falamos aqui de uma efeméride de âmbito estritamente local, de um facto histórico meramente alemão-nacional (a Alemanha, aliás, ainda não existia nesta época). A fundação da nova Universidade de Berlim é, antes de mais, um acontecimento ímpar na história europeia e mundial das instituições escolares, já que assinala o advento de um tipo de universidade muito diferente daqueles que detectámos, em artigos anteriores, na matriz institucional das suas antecessoras: a "universidade-primeva" (ou medieval) e a "universidade-bis" (ou pós-medieval). Utilizando a mesma terminologia: a "U.F.W" é a primeira versão da "universidade-tris"? ou seja, a primeira vez que se procura instituir uma "interface" viável entre a comunidade internacional dos filósofos experimentais (em particular a sua componente científica moderna) e a escola (em particular a escola pública).
Mas é mais do que isso, mais do que uma nova e inédita forma de conceber e realizar o "Estudo Geral" originalmente construído pela corporação dos mestres da "universidade-primeva" em Bolonha, Paris e Oxford. Com o benefício que um olhar retrospectivo nos permite alcançar, torna-se hoje mais fácil entender que a criação da nova universidade de Berlim foi também, concomitantemente (adiante se verá porquê), um dos momentos mais distintivos na institucionalização moderna do que tem sido chamado, à falta de melhor termo, o "Estado de direito democrático".

2. O problema de Humboldt

Esta dupla qualificação justifica-se se reconhecermos que a fundação da "U.F.W" representa, como veremos detidamente mais adiante, a primeira tentativa bem sucedida e plenamente consciente de resolução PRÁTICA, institucional, de um problema POLÍTICO (ou ÉTICO, se considerarmos, contra Aristóteles, a política como estando subordinada à ética) muito sério e difícil. Podemos formular esse problema do seguinte modo :
?(pH): Como evitar, com eficácia, quer a perseguição-humilhação-diabolização quer a governamentalização-mercenarização-beatificação dos membros da moderna comunidade filosófica-científica ? Mais concretamente: que freios e contra-pesos institucionais podem e DEVEM ser utilizados se quisermos limitar ? tanto quanto possível ? os efeitos destas duas tendências díspares mas igualmente destrutivas da integridade da comunidade filosófica-científica?
A este problema podemos chamar, para fixar ideias, o "problema de Humboldt" (pH). O nome tem sobretudo intuitos mnemónicos, mas não é arbitrário. Pela minha parte, representa o modesto preito de homenagem que julgo devido (e está ao meu alcance prestar) a Wilhelm von Humboldt, neste particular. Foi este o primeiro indivíduo (entre o comum dos mortais) a procurar resolver o problema que acabei de formular. Foi ele também o primeiro a conseguir fazê-lo de um modo original e fecundo, actuando do princípio ao fim, como veremos, com inexcedível discernimento, grande mestria e admirável isenção, apesar dos limites muito estreitos que a sua acção individual e as circunstâncias da sua época lhe facultavam. Mas, seja com este ou outro nome (ou sem nome nenhum), o que importa é reconhecermos o âmbito e a pertinência do problema.

3. Âmbito do problema

Como se deduz do seu enunciado (pH), o "problema de Humboldt" diz respeito à comunidade filosófica-científica actual, nas suas relações com as instituições do Estado e da sociedade civil envolvente. Por "comunidade científica-filosófica" actual entendo fazer referência ao "colégio invisível", multinacional e multiétnico, dos investigadores empenhados em entender e explicar teoricamente a urdidura ou estrutura real do nosso universo. Naturalmente, uma das questões que se põem imediatamente é a de saber o que devemos entender por "nosso universo".
Actualmente, três grupos destacados da comunidade científica-filosófica? astrónomos, físicos de partículas e astrofísicos ? concordam em postular que o nosso universo emergiu há cerca de doze ou quinze mil milhões de anos e que esse acontecimento teve lugar no decurso de uma explosão brutal que projectou em todas as direcções milhares de milhões de galáxias, algumas das quais continuam ainda afastar-se a velocidades próximas da luz. Os físicos norte-americanos, fazendo juz ao seu espírito brincalhão e à sua proverbial veia chocarreira, baptizaram esse acontecimento singular de "big bang" ("o grande catrapum", diríamos nós, portugueses, talvez, se fossemos semelhantemente propensos a tais jogos de linguagem). Apesar do nome jocoso, trata-se de uma hipótese teórica tão audaciosa quanto séria, uma vez que não só ultrapassa em muito as especulações mais imaginosas do senso comum, mas dispõe também de provas muito robustas a favor a sua veracidade.
Se adoptarmos essa hipótese a título provisório (como convém a todas as teorias científicas), é razoável especular que as questões que suscitam a curiosidade filosófica-científica formam uma lista imensa e quase tão avassaladora como a própria imensidão do universo. Entre essas questões incluem-se problemas de âmbito "doméstico", mas nem por isso menos grandiosos. É o caso, para citar apenas três, dos problemas de explicação teórica que se prendem com a origem e evolução da Terra, com a origem e evolução dos continentes e com a origem e evolução da vida na Terra. As diferentes escalas de tempo que eles envolvem são, por si só, um indício eloquente da vastidão do horizonte da ciência.
Por exemplo, o problema da origem e da evolução da vida no nosso planeta é, entre os três supracitados, o que envolve as escalas de tempo mais curtas. Mesmo assim, o seu alcance temporal estende-se desde o aparecimento dos primeiros organismos unicelulares no Arqueozóico, presumivelmente bactérias, há uns 4 mil milhões de anos, até às algas azuis e verdes que oxigenaram a atmosfera no Proterozóico, incluindo, daí para a frente, todas as demais formas de vida que se desenvolveram no planeta (muitas das quais se extinguiram, entretanto) até ao aparecimento recente do género "Homo", presumivelmente há menos de 4 ou 3 milhões de anos.
Descendo o curso do tempo que conduz até ao fim da lista dos problemas científicos em aberto na história natural do nosso planeta, deparam-se-nos os problemas ainda mais paroquiais (mas não menos complexos e fascinantes) que se prendem com a compreensão da origem, evolução, capacidades e feitos da nossa própria espécie, "Homo sapiens". Aí se inscrevem os muitos enigmas relativos a tudo o que é ou se nos afigura ser (até prova em contrário) unicamente e distintivamente humano? metacognição, idiomas, mitos, arte, artesanato, religião, tecnologias, etc.? incluindo o problema das condições de emergência, existência e desenvolvimento da própria ciência, como atributo, ele também exclusivo, da nossa espécie.
Assim sendo, a expressão corrente "comunidade científica" deve ser entendida de forma maximamente inclusiva, de modo a abranger todos os filósofos praticantes do "método da veracidade a posteriori" (cf. "A Página" de 1999), seja qual o domínio do universo e as vias particulares que possam ter eleito para o desenvolvimento das suas investigações.

4. Filósofos e cientistas

Convém recordar que "filosofia" (philéa+sophia) significa etimologicamente "ânsia de saber" ou "amor ao conhecimento". Neste sentido, todos somos ou fomos filósofos "naturais" nalgum período das nossas vidas, sobretudo na mais tenra infância. Nem todos, porém, chegados à idade adulta, conservamos ou desenvolvemos as grandes e perduráveis curiosidades que fazem da ciência um ramo especial da filosofia e dos filósofos-cientistas uma "tribo" especial a que se pertence mais por direito de escolha e esforço próprio do que por direito de nascimento ou acidente.
Assim, aquilo a que vulgarmente se costuma chamar de "ciência" (por oposição ilegítima a filosofia) foi mais justamente caracterizado por Isaac Newton (1642-1727) como "filosofia experimental" (por oposição legítima a teologia). De resto, os melhores "filósofos experimentais" ? chamemos-lhes "cientistas" se quisermos ? sempre conviveram bem com outros filósofos, em particular com aqueles que dão pelo nome de "logicistas" (ou "lógicos", se preferirem) e "matemáticos". Devo acrescentar, para finalizar este ponto, que alguns grandes cientistas foram também grandes matemáticos (e.g.Newton, Feynman) ou, caso mais raro, grandes logicistas e matemáticos (e.g. Charles S. Peirce), tudo na mesma pessoa !
Convém, pois, reiterar que a ciência é uma forma "sui generis" de filosofia, pelo que todos os cientistas são filósofos, ainda que alguns tenham relutância em reconhecê-lo, quase sempre por más razões. O filósofo Bertrand Russell (1872-1970), cujas contribuições para a lógica e para a matemática fizeram data, escreveu num dos seus livros ("O Nosso Conhecimento do Mundo Exterior"): "A compreensão teórica do mundo é o objectivo da filosofia". A frase resume bem tudo o que foi dito nesta secção acerca do carácter filosófico da ciência.
Daí a minha insistência em dizer, aqui, "comunidade filosófica-científica ", para evitar a redução armadilhada que normalmente encerra o uso do designativo "comunidade científica", na sua acepção mais corrente. O primeiro designativo é mais longo e algo redundante, mas tem a vantagem de ser mais claro e rigoroso.

5. Pertinência do problema

Como tivemos ocasião de recordar em artigo anterior, a forma actual da comunidade filosófica-científica emerge na Europa no século 17. Desde então, a sua importância cresceu muito, tanto numérica como geograficamente, ainda que de maneira muito desigual de continente para continente e até, num mesmo continente, de país para país.
Ainda assim, não se me afigura exagerado afirmar? sobretudo desde a enorme expansão, ao longo desta década, da rede de comunicação electrónica conhecida por "Internet" ? que a comunidade científica-filosófica abrange hoje todos os continentes, formando, pela primeira vez na história, um "colégio invisível" de âmbito verdadeiramente mundial. O termo, muito feliz, de "colégio invisível" (entenda-se: sem edifício nem paredes) é de Robert Boyle (1627-1691). Alguns leitores da minha geração, mesmo que tenham seguido "Letras", associarão, muito justamente, este nome à Lei de Boyle (ou de Boyle-Mariotte, para sermos equitativos) relativa ao volume de um gás em certas condições de pressão e temperatura? se acaso não esqueceram o que aprenderam no liceu.
Significa isto que a pertinência do problema de Humboldt diminui à medida que nos afastamos do século 17, rumo ao passado, ao encontro das comunidades (muito mais pequenas, embrionárias e segmentárias) de filósofos-cientistas que precederam a emergência do Estado moderno e da sociedade industrial moderna. Do mesmo modo, mas agora em sentido inverso, a pertinência do problema de Humboldt aumenta à medida que nos afastamos do século 17, rumo ao presente, ao encontro da comunidade filosófica-científica contemporânea.
Assim, pode dizer-se, em termos gerais, que o problema de Humboldt é hoje mais premente do que era ao tempo de Humboldt. Os seus contornos são agora mais nítidos, o seu âmbito geográfico mais vasto, os seus efeitos políticos mais fortes, as suas determinantes económicas, sociais e culturais mais estreitamente imbricadas do que eram no início do século 19. Isto vale, de resto, para qualquer das suas duas vertentes, tanto a que se prende com a tendência para a perseguição-humilhação-diabolização dos membros da comunidade científica-filosófica como a que se prende com a tendência simétrica para a sua governamentalização-mercenarização-beatificação.

6. Primeira vertente do problema

A tendência para a perseguição-humilhação-diabolização da comunidade científica-filosófica pode ser cabalmente exemplificada pelo célebre julgamento de Galileu pela Inquisição e pelas suas repercussões.
Galileu Galilei (1564-1642) é justamente considerado o fundador da física moderna, entendida como ramo específico da ciência ou filosofia experimental. Fez muitas descobertas não apenas em física mas também na metodologia da ciência em geral. Por exemplo, ressuscitou a antiga ideia de expressar teorias gerais em forma matemática e desenvolveu-a. Nas suas mãos, essa ideia tornou-se rapidamente num método de validação sistemática de hipóteses teóricas por meio de observações e experiências planeadas, às quais chamou, com muita propriedade, "cimenti" ou seja, ordálios (experiências duras, rudes provações). Foi também o primeiro a fazer uso de telescópios para estudar o firmamento. Isso permitiu-lhe efectuar e coligir muitas observações astronómicas que se revelariam importantes para o desenvolvimento da teoria heliocêntrica, a teoria segundo a qual a Terra se move numa órbita em torno do Sol, ao mesmo tempo que gira em torno do seu próprio eixo. Por causa desta teoria acabaria por entrar em rota de colisão com a Igreja Católica.

7. Galileu: ascensão

Não era a primeira vez que um filósofo experimental se colocava em tais apuros. Quatro séculos antes, um ilustre predecessor de Galileu, o monje franciscano Roger Bacon (ca. 1220-1292), o mais espantoso cientista da Idade Média, foi acusado de magia negra por procurar "decifrar as naturezas e as propriedades das coisas" ? o que incluía estudar a luz e o arco-íris, a pedra-íman (magnetite) e o processo de fazer pólvora, entre outros assuntos a que se devotou.
Mas Roger Bacon era um filósofo experimental praticamente isolado na sua época, um cientista sem pares, um homem sem parceiros com quem conversar e discutir acerca do que lhe interessava? seguramente um dos piores tormentos que um cientista (ou outra pessoa qualquer) pode enfrentar. Acresce que era também um homem de uma coragem a roçar a temeridade. Mesmo depois de ter sido proibido, em 1257, de publicar as suas obras pelo Geral da ordem do Franciscanos, ei-lo que volta à carga. Denuncia a incompetência dos tradutores do Grego e do Árabe e ousa mesmo atacar a ignorância clérical em muitos assuntos num livro publicado em 1271. Em 1278 os seus livros foram condenados pelo Geral da sua ordem e Roger Bacon condenado a um pena de prisão de 14 anos. Foi libertado em 1292 e morreu quase imediatamente.
Galileu tinha uma personalidade diferente, como veremos. Mais importante ainda, a sua época era, apesar de tudo, bem mais benigna para homens com a sua espécie de interesses filosóficos. O seu opúsculo de Março de 1610, "Siderius nuncius" ("O mensageiro sideral") assombrou e entusiasmou o mundo erudito. Galileu é convidado a ir a Roma onde o papa Paulo V o recebe em audiência, demonstrando-lhe rara deferência ao recusar que permanecesse ajoelhado à sua frente. Os padres jesuítas convidam-no a discursar numa reunião especial do seu Colégio Romano, onde terá ocasião de os convidar a olhar pelo seu telescópio. O que Galileu lhes disse não os convenceu, mas o que lhes mostrou parece tê-los encantado sobremaneira. Uma semana depois foi-lhe oferecido um banquete em sua honra pela "Academia dos Linces", a sociedade científica pioneira que desempenhou na península itálica um papel análogo ao da Royal Society de Londres e também mais precoce.
O caso não era menos. Nas 24 páginas do seu "Mensageiro sideral" Galileu anunciava, entre outras coisas, um cálculo do diâmetro e da massa da Lua, a descoberta de quatro planetas desconhecidos (os satélites de Jupíter) e a corroboração que as suas observações ofereciam à hipótese heliocêntrica de Copérnico. A estas descobertas seguir-se-iam, pouco depois, outras, como a descrição do aspecto oval de Saturno e, sobretudo, das fases de Vénus que abonavam em favor da hipótese de Vénus girava em torno do Sol e forneciam novas provas indirectas à hipótese copernicana.
Estas impressionantes descobertas promoveram rapidamente a reputação de Galileu como grande matemático (a astronomia era ainda, nessa época, considerada um ramo da matemática). Mas não tiveram, como Galileu desejava, efeitos imediatos na sua carreira de professor de Matemática na Universidade de Pádua, onde ensinava há mais de 15 anos por nomeação do senado de Veneza.
Porém, ao contrário do indomável e temerário Roger Bacon, sempre com o coração ao pé da boca, Galileu era um hábil diplomata. Verificando que a inveja dos seus colegas de Pádua e Veneza parecia ter movido influências suficientemente poderosas para impedirem que se dedicasse exclusivamente ao seu novo interesse pela astronomia, ei-lo que toma as suas contra-medidas com uma agilidade cortesã e um despudor dignos de um discípulo de Maquiavel. Com esse objectivo em mente, enviou um telescópio requintado ao grão-duque Cosme II de Médicis, de Florença, informando-o ter baptizado as quatro luas de Júpiter que descobrira de "planetas medicianos", em homenagem à família Médicis. O Duque, sensível a estas manifestações de adulação reverencial, retribuiu-as com magnanimidade, como era apanágio dos princípes italianos desta época. Primeiro, Galileu recebe uma corrente e medalha de ouro; depois, em Junho de 1610, uma carta que o nomeava "Principal Matemático da Universidade de Pisa e Filósofo do Grão-Duque, sem obrigação de ensinar e residir na Universidade ou na cidade de Pisa, com um salário de mil escudos florentinos por ano". Florença seria, de facto, a sua morada até ao fim dos seus dias.

8. Galileu: queda

Até ao telescópio, os defensores da ortodoxia católica, ao contrário dos profetas do protestantismo como Lutero e os seus discípulos, não tinham sentido necessidade de banir a teoria heliocêntrica de Nicolau Copérnico (1473-143) e Johannes Kepler (1571-1630). Para alguns eruditos católicos era uma teoria interessante, mas não convincente. Para a grande maioria, porém, não passava de uma teoria completamente disparatada, com a qual não valia a pena perder tempo.
Mas o telescópio mudou tudo. Nas mãos de Galileu este novo instrumento falava directamente aos sentidos, não na linguagem do senso comum, a linguagem antiga de Aristóteles e Ptolemeu, mas na linguagem da filosofia experimental ? a nova linguagem que Galileu tinha começado a aprender por si próprio, deixando-se instruir pela suas observações astronómicas.
O próprio Galileu, até aos 45 anos, acreditara piamente na teoria geocêntrica. Mas o que observou através do seu telescópio abalou a sua crença e fê-lo mudar de ideias. De todas as suas observações, a descoberta das luas de Júpiter pareceu-lhe ser a sua mais promissora descoberta, por duas razões. Em primeiro lugar porque sugeria que a Terra podia não ser única no universo. Outros planetas poderiam ter satélites próprios. (Galileu estava certo neste ponto, embora o não soubesse, uma vez que não tinha os meios de saber que Júpiter era um planeta e não, como ele supunha, uma estrela). Em segundo lugar porque sugeria que um corpo como a Terra, com um corpo a girar em seu redor, podia por sua vez girar em redor de outro corpo ainda. Estava também certo neste ponto, como sabemos.
Durante a sua segunda visita ao Vaticano, em 1616, Galileu não conseguiu persuadir as autoridades eclesiáticas de que deviam permitir o seu ensino de que a Terra se movia. Essa teoria foi expressamente proibida por ser alegadamente ofensiva das Sagrada Escrituras, mas Galileu não foi pessoalmente incomodado, nem os seus livros proibidos. Em 1624, Galileu volta ao Vaticano com vista a apresentar cumprimentos ao novo papa, Urbano VIII. Apesar da proibição de 1616, aproveita a ocasião para pedir a permissão papal para escrever um livro onde fossem comparadas, em termos estritamente científicos, as teorias ptolemaica e copernicana. Mas o pedido é-lhe recusado. Regressado a Florença, dedica os 6 anos seguintes a escrever o seu livro "Diálogo sobre os dois principais sistemas do mundo"? leia-se: sobre a teoria geocêntrica e a teoria heliocêntrica.
Poderá parecer estranho que um homem tão prudente e comedido desafiasse, de repente, a proibição papal. Mas não se tratava disso. Galileu era, tanto quanto sabemos, um católico convicto e obediente. Não tencionava desafiar as autoridades eclesiásticas, mas persuadi-las de que o nosso universo próximo é heliocêntrico e que tal facto não bulia com a Bíblia, apesar das aparências.
Acreditava que só existia uma verdade acerca da estrutura do nosso universo, mas que é comunicada aos homens de duas formas: na linguagem da Bíblia e na linguagem da Natureza. A primeira, explicou, utiliza os vernáculos particulares das várias nações para melhor se fazer entender por todos. A segunda utiliza as leis universais da matemática, mais recônditas, mas mesmo assim entendíveis através de um esforço adequado. "Tanto as Sagradas Escrituras como a Natureza procedem do Verbo Divino"? escreveu ? "as primeiras como a fala do Espírito Santo e a segunda como a executora mais vigilante das ordens de Deus".
A publicação do seu "Diálogo", em 1632 revelou-se, porém, fatal para as suas piedosas intenções. No mês de Fevereiro de 1633, Galileu comparece perante o tribunal da Inquisição para ser julgado. É acusado de heresia e ameaçado com a tortura, caso se recuse a reconhecer publicamente ter deliberadamente infringido a desaprovação papal da teoria copernicana com a publicação do seu livro. Em 16 de Junho o tribunal pronuncia o seu veredicto. Galileu é condenado à abjuração pública dos "seus erros e heresias" seguida de detenção domiciliária por período indefinido e o seu livro proibido. Em 22 de Junho, Galileu, então um ancião de 70 anos, quase cego e de saúde muito debilitada, ajoelha diante dos Cardeais Inquisidores-Gerais e declara (depois de um longo intróito onde dá por provadas as alegações da acusação):
(...) Portanto, desejando tirar do espírito de Vossas Eminências, e do de todos os fiéis cristãos, essa veemente suspeita ["de ter aceitado e acreditado que o sol é o centro do Mundo e imóvel e que a Terra não é o centro e se move"] justamente concebida contra mim, com coração sincero e fé singela abjuro, maldigo e abomino os supraditos erros e heresias e também todos os outros erros e seitas sejam quais forem, contrários à Santa Igreja, e juro que, de futuro, nunca mais voltarei a dizer ou a afirmar oralmente ou por escrito alguma coisa capaz de causar semelhante suspeita contra mim; mais, conheça eu algum herético ou pessoa suspeita de heresia, e denunciá-lo-ei a este Santo Ofício ou ao inquisidor ou [vigário] ordinário do lugar onde me encontrar. (...)
Reza a lenda ? talvez para nos consolar desta degradante humilhação de um espírito livre e poderosamente criativo ? que, ao levantar-se, Galileu terá murmurado "eppur si muove..." ("e no entanto [a Terra] move-se"...). Seja como for, a lenda faz juz aos factos. Oito anos depois, o "velho pisano" morria, cego e praticamente sozinho. Não sem antes ter escrito e publicado em segredo um novo livro "sobre duas ciências novas", na base qual Huygens e Newton edificariam, mais tarde, a óptica e a dinâmica.

9. O monopólio da explicação

Como pôde uma controvérsia sobre a estrutura do sistema solar tomar tais proporções ? Que terrível crime terá cometido Galileu para merecer este castigo cruel ? Que teria feito para despertar a ira fria e velhaca dos ministros de uma religião que prega o amor ao próximo como primeiro mandamento de conduta humana? Como veremos, a resposta a estas questões é decisiva para se entender uma das dimensões do problema de Humboldt.
Um erro, grave, a evitar seria o de julgar que se trataria de uma disputa puramente teórica acerca da estrutura do sistema solar, em que se defrontariam um dogma religioso, de um lado, e uma hipótese científica, do outro. Os argumentos da igreja a favor da teoria geocêntrica, considerados pelo seu valor facial, nada tinham de religioso. Muito antes da Bíblia, em várias passagens, sugerir a ideia de um universo geocêntrico ? por exemplo, no livro de Josué ? já Aristóteles, quatro séculos antes de Cristo, propusera uma ideia semelhante no seu tratado "A respeito dos céus".

O "dogma" da Terra imóvel, se quisermos falar em dogma, não era bíblico mas aristotélico e estava, para mais, em perfeita conformidade com o senso comum. Descrevia o firmamento como ele parecia ser a olho nu e ajustava-se bem às observações e aos cálculos feitos à vista desarmada. Na verdade, como salientaram vários filósofos-cientistas deste século ? por exemplo, os físicos Pierre Duhem (1861-1916) e David Deutch, o epistemólogo Karl Popper (1902-1994) e o historiador Daniel Boorstin ? a teoria geocêntrica, enriquecida, entre outros, pelos contributos de Erátostenes, Hiparco e Ptolomeu, preenchia alguns dos requisitos de uma teoria científica, pois ajustava-se aos factos disponíveis, era um instrumento de previsão razoavelmente satisfatório e prestou bons serviços ao agricultor, ao marinheiro e ao navegador aventureiro durante séculos a fio.
Acresce que, no capítulo das previsões, era difícil avaliar os méritos respectivos das duas teorias rivais. No seu livro, "De revolutionibus orbium caelestium" (1543), Copérnico permanece fiel à doutrina aristotélica e ptolemaica das "orbes" (esferas) celestes e evita a debatida questão de saber se as orbes eram um mero instrumento geométrico, conveniente para descrever como se movem os planetas, ou esferas reais encapsulando os planetas. Galileu, pelo seu lado, acreditava que os planetas se moviam realmente e que o faziam em círculos. (Estava, neste ponto, errado, porque as órbitas planetárias são quase elípticas como Kepler sugerira).
Perante estas aparentes contradições, a Igreja Católica podia limitar-se a recordar que o significado literal da Bíblia deveria ser sempre considerado correcto, a menos que, como arguira Santo Agostinho, o contrário fosse "rigorosamente demonstrado". Ora, dado que a rotação da terra e as suas revoluções em redor do Sol não podiam ser rigorosamente demonstradas ? como se provava facilmente pelas diferenças de opinião entre Copérnico, Kepler e Galileu, todos eles grandes matemáticos e defensores da teoria heliocêntrica? fácil se tornava concluir que a interpretação literal das Escrituras deveria prevalecer, tanto mais que tinha seu favor a experiência quotidiana dos homens.
Esta linha de argumentação, à qual é forçoso reconhecer argúcia e subtileza, foi efectivamente a que a Igreja utilizou na polémica que o cardeal Bellarmino e o papa Paulo V tiveram com Galileu, quando este se deslocou a Roma, em 1616. Numa famosa carta Bellarmino escreveu a este propósito:
Afirmar que na suposição do movimento da Terra e imobilidade do Sol se encontra uma explicação para todos os fenómenos celestes melhor do que através da teoria [ptolemaica] dos excêntricos e das epiciclos, só demonstra um excelente bom senso, evitando correr qualquer risco. Tal maneira de falar será própria de um matemático. Mas pretender afirmar que o sol , em abono da verdade, se encontra no centro do universo e se limita a girar em torno do seu eixo sem ir de Este para Oeste, é uma atitude muito perigosa e que se julga agitar não só todos os filósofos e teólogos escolásticos, mas ofender também a nossa fé sagrada, contrariando as Escrituras.
Por outras palavras, os cientistas não correm perigo algum quando afirmam que uma teoria tem vantagens, como instrumento de PREVISÃO, sobre outra(s). Mas ver-se-ão em apuros se pretenderem que se trata de uma EXPLICAÇÃO melhor do que outra(s) da própria estrutura da realidade, pois só as autoridades da Igreja Católica têm o direito de produzir ou autorizar tais explicações.
Podemos agora responder às perguntas com que iniciámos esta secção. Galileu foi condenado pela Inquisição por se ter arrogado o direito de querer compreender e explicar o nosso universo pelo método da filosofia experimental, pela prática científica. E pagou por esse crime de lesa-majestade. Mais ainda, é legítimo concluir que o julgamento, a condenação e a humilhação de Galileu tiveram repercussões (para não dizer objectivos) que se estendem muito para além da pessoa e da época de Galileu. Como Jacob Bronowsky observa: " o resultado foi, dali em diante, o silêncio entre os cientistas Católicos em toda a parte ...O efeito do julgamento e da condenação foi o estancar completamente a tradição científica no Mediterrâneo ("The Ascent of Man", p.218). Ainda hoje essas repercussões se fazem sentir.

10. Humboldt

Detive-me demoradamente sobre o caso Galileu para que o leitor dispusesse de todas as informações necessárias e suficientes que lhe permitam avaliar por si próprio a tese que lhe vou agora propor. A fundação da nova universidade de Berlim representa a primeira tentativa consciente de evitar que outros filósofos-cientistas conheçam um destino semelhante ao de Galileu, livrando-os quer da humilhação de terem de recorrer à lisonja e à protecção de poderosos mecenas para poderem prosseguir as suas investigações, quer da necessidade, não menos humilhante, de terem de recorrer à manha, à dissimulação e ao perjúrio para escaparem à censura e perseguição de uma qualquer polícia do pensamento, se não mesmo à tortura e à morte certa por quererem pensar pela própria cabeça.
O modo como foi criada, a personalidade do seu fundador e as características que este conferiu à nova instituição universitária abonam a favor desta tese. Passemos então em revista , muito rapidamente, cada um destes factores.

11. O homem certo no lugar certo

Em 1809, o embaixador Wilhem von Humboldt (não confundir com Alexandre von Humboldt, seu irmão) é eleito membro da Academia das Ciências da Prússia. Deve essa eleição ao facto de ser um cientista pioneiro e inovador nas áreas da linguística e da filologia. Poucos dias depois aceita o convite que lhe é feito para integrar o Conselho de Estado da Prússia, na qualidade de Director Geral da Secção de Cultura e Ensino do Ministério do Interior ? um cargo equivalente ao de Ministro da Educação nos nossos dias. O rei encarrega-o da fundação de uma nova universidade em Berlim. Esta é, pelo menos, a versão historiográfica corrente. (Inclino-me a pensar que foi Humboldt que o persuadiu a tal, mas este é um ponto que, de momento, não estou em condições de estabelecer em bases empíricas). Humboldt consegue contratar para a nova universidade alguns dos mais reputados filósofos-cientistas da época: Fichte, Schleiermacher, Savigny, Böckh; mais tarde, Hegel, Bopp e outros ainda.
Tudo se passa com uma rapidez fulgurante. Em 16 de Agosto, como referimos no início deste artigo, é assinada a acta de criação da "Universidade FW". A rapidez e eficiência demonstradas atestam que Humboldt sabe bem o que quer e como alcançá-lo. Mas não quer nada para si. Realizado este projecto, longamente amadurecido muitos anos antes de surgir a oportunidade de o concretizar, Humboldt retoma as suas funções de embaixador. Este homem, que escreveu um tratado teórico sobre "Os Limites da Acção Estatal", sabe quais são os seus limites.

12. Originalidade da universidade-tris

Primeiro postulado humboldtiano: a nova universidade deve ser um lugar que proporcione as melhores de condições de tempo e tranquilidade para a prática da investigação irrestrita de todo e qualquer aspecto da estrutura do universo.
Segundo postulado: a nova universidade deve ser um lugar onde o ensino e o estudo tenham por foco principal o desenvolvimento das faculdades de imaginação, análise e raciocínio de que a investigação filosófica-científica é subsidiária. Por outras palavras, o ensino e o estudo na universidade humboltiana visam primordialmente o aperfeiçoamento daquelas mesmas faculdades cognitivas que proporcionam uma via de acesso privilegiado aos princípios gerais subjacentes a todos os métodos (de observação, experimentação, argumentação racional e discussão crítica) de que se entretece a actividade de investigação.
Para assegurar essa unidade de propósitos, o corpo docente da nova universidade deve ser constituído exclusivamente por investigadores-docentes. Destes professores de um tipo novo se espera que sejam capazes de combinar a investigação com o ensino e o ensino (ou a apresentação das novas perspectivas resultantes da investigação) com dispositivos didácticos protectores. Um professor da universidade humboldtiana não se limitará a explicar aos seus alunos, o melhor que souber, uma forma de resolver uma série de problemas relativos a uma esfera dada da realidade ou a iniciá-los no seu próprio campo de investigação pessoal. Terá o cuidado de lhes fornecer também os meios para que possam vê-la em perspectiva, e talvez até refutá-la. Não fará a catequese das suas ideias, porque acrescentará à sua apresentação e discussão um ingrediente que as torne menos inebriantes, menos intoxicantes, protegendo-se a si próprio e protegendo os seus alunos da soberba intelectual.
Daqui decorrem dois corolários organizacionais:
1) os investigadores-docentes da nova Universidade e, por extensão, os seus alunos, gozarão de plena liberdade de ensino, de estudo e de investigação;
2) a instituição escolar que os acolhe gozará de plena autonomia perante todos os poderes constituídos e dotar-se-á dos seus próprios órgãos de governo.
Pela primeira vez na história europeia e mundial, a comunidade científica moderna, a comunidade dos "filósofos-cientistas de todas as áreas, encontrava um nicho institucional, uma enseada amena onde a sua actividade não era vista com cavilosa suspeição nem sujeita à chantagem permanente da "produtividade" e da "relevância para a economia". O problema que enunciámos na secção 2, encontrava, assim, uma primeira solução coerente: o cruzamento da escola com a comunidade científica moderna.

13. Epílogo provisório

Seria ilusório pensar que o "problema de Humboldt" foi resolvido de vez e que a solução institucional que lhe trouxe Humboldt, na sua época, resistiu incólume a todas as vicissitudes. Longe disso. Como indiquei, o problema de Humboldt comporta duas vertentes. O modelo humboltiano de universidade revelou-se apto a lidar com a primeira vertente, erguendo uma barreira protectora eficaz à tendência recorrente para reduzir os filósofos-cientistas a folhas de couve, criaturas esquizofrénicas condenadas a viver uma vida de "duplos", dizendo e calando em público aquilo que desdizem e afirmam em privado. Mas há a outra vertente do problema, a tendência para reduzir os filósofos-cientistas ao estado catatónico de "peritos", conselheiros governamentais, gestores, tecnocratas de todos os tamanhos e feitios. Ao tempo de Humboldt esta era uma tendência incipiente. Hoje transformou-se numa tendência avassaladora que quase destruiu a universidade humboltiana naqueles (poucos) países onde esta chegou a lançar fortes raízes no século XIX. Em todos eles (e noutros, como Portugal) verificamos que a configuração dominante ou até única do chamado "ensino superior" não é a universidade humboldtiana mas uma versão revista e aumentada do que aqui designámos por "universidade-bis" ? alguns chamam-lhe "multiversidade", que lhe vai muito bem. A propalada "crise da universidade" é, de facto, a crise desta teratológica criatura que vive permanentemente atascada numa multiplicidade de "funções" e "missões" mutuamente incompatíveis.
Mas isso são contos mais largos, cujo desenvolvimento terá de ficar para melhor oportunidade, se surgir.

José Manuel Catarino Soares
Instituto Politécnico de Setúbal

Jornal a Página da Educação nº 84 - Outubro de 1999, pg. 10


  
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Edição:

N.º 84
Ano 8, Outubro 1999

Autoria:

José Manuel Catarino Soares
Instituto Politécnico de Setúbal
José Manuel Catarino Soares
Instituto Politécnico de Setúbal

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