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Comer o quê?

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Num dos números de Julho do DNA, na rubrica "Perguntas na Net", desafiavam-se os leitores com uma questão pertinente, e que, à primeira vista, poderia parecer marginal às clássicas temáticas do debate educativo:

«Depois da BSE, dos alimentos transgénicos, da brucelose e das dioxinas, o que nos resta para comer?»

Pouco, muito pouco mesmo. Mas daí não vem grande mal, a si ou ao mundo. É sabido que o Ocidente, civilizado, come para além do necessário, engorgita (carne e peixe) ao almoço e ao jantar, enfrasca-se (em vinho, cerveja e conhaque) antes, durante e depois dos repastos, e nos intervalos que ainda restam encharca-se em cafés (da bica cheia à italiana curta). O resultado fere a vista (barrigas que teimam em galgar os cintos) e agride o organismo (enfarte, colesterol e dispepsia).
Que fazer? Voltemos ao "conduto" frugal com pão e azeitonas, ao caldo de couve portuguesa do horto caseiro, às frangas de capoeira criadas nas traseiras do quintal, aos caracóis apanhados nas saudáveis actividades de recolecção.
Mas este retorno ao - hoje reconhecido - paraíso gastronómico implica uma nova política urbanística. Isso mesmo, não leu mal. Uma nova utilização dos solos urbanos. Tão simples quanto isto: os condomínios privados, com garagem, piscina, court de ténis, mordomias bastas e luxos variados, que a treinada imaginação das imobiliárias lhe promete e que a realidade, pós contratual, lhe reduz a metade, terão que passar a incluir uma horta (biológica, dirá o folheto). Tal quinhão de terra arável irá mantê-lo entretido nos seus bocejantes fins-de-semana e, simultaneamente, garante-lhe, aos olhos dos seus que tanto ama e estima, a visibilidade de "ganha-pão" familiar.
Para o sistema educativo, esta nova orientação tem um corolário lógico: a "Educação para a Saúde", na sua vertente alimentar, deveria passar a incluir uma componente prática ligada ao amanho da terra. E deste modo se instituiria a "horta pedagógica" (tão cara aos nossos colegas MEMistas e correntes afins), bem mais útil que o ensino teórico de matérias de alimentação, dita racional, cuja validade científica é posta em causa a todo o momento por novas investigações (que abalam a proverbial segurança didáctica do professor que já não sabe responder, de forma conveniente, à simples pergunta que hoje qualquer cidadão coloca a si mesmo: "afinal, o que devo comer?"). A horta pedagógica tem ainda uma outra vantagem, esta ao nível do plano de estudos dos ensinos básico e secundário: é uma excelente substituição desse imbróglio curricular, essa abencerragem terminológica, que dá pelo nome de "área-escola".

PS: não nos move qualquer intenção de, por esta via, engrossar as hostes dos político-partidários da regeneração da lavoura nacional, que se mostram muito agastados com os politocratas da UE, por estes terem vindo a transformar gradualmente em campos de golf os nossos produtivos terrenos agrícolas e em subsídiodependentes os nossos esforçados "lavradores" (não agricultores, porque se lavra a terra não se agriculta, como nos ensinou na última campanha eleitoral um dirigente partidário, também candidato? a "grande educador").

Luís Souta
CIOE / Escola Superior de Educação de Setúbal

(*) Recuperação do título de um periódico académico, de âmbito local, que nos anos de 1992-93 cultivou a crítica institucional, no estilo de "escárnio e mal-dizer", reforçando, porém, a função de auto-regulação social (esta sim, ausente das ditas cantigas, como nos recordava Serafim Ferreira, n'a Página de Junho, a propósito da edição do mais recente livro de José Correia Tavares, "um poeta de escárnio e mal-dizer"). Os co-editores do FIDEBEQUE - António Mendes Lopes, Luís Souta e José Catarino Soares - reencontram-se n'a Página dispostos a assegurar, rotativamente, esta (nova) rubrica? até ao final do (velho) milénio.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 83
Ano 8, Setembro 1999

Autoria:

Luís Souta
Instituto Politécnico de Setúbal
Luís Souta
Instituto Politécnico de Setúbal

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