(Para todos aqueles que ainda ousam desenhar roteiros vagabundos ou empreender viagens por caminhos incertos.)
Aquele inexperiente professor tinha-se deixado influenciar por um grupo (nesses perturbados tempos considerado marginal, de má fama e politicamente suspeito) que dava pelo nome de Movimento da Escola Moderna. Com professores "marginais" aprendeu uma máxima que o iria acompanhar para onde quer que o levassem os concursos e a coragem: olha para o que és (ou pretendes ser como pessoa e professor), não olhes para o que outros fazem (ou não fazem, ou não são...). Leu tudo o que havia para ler (ou o deixavam ler) sobre o Freinet do "texto livre". Mas, por meados de Novembro, já começava a descrer da cartilha. Ele bem tentava, mas os trinta alunos que havia herdado de um austero professor à moda antiga reformado não saíam dos canónicos "a vaca dá leite, ossos e carne", "a vaca é muito importante para a nossa alimentação", "eu gosto muito das vacas", "quando eu for grande, quero ser vaca"... Alguns putos sobreviventes da última "classe masculina" tinham na ponta da língua a tabuada, sabiam de cor as estações de caminho-de-ferro de Benguela e o sistema galaico-duriense, tratavam por tu os esteres e os miriares, desenhavam na perfeição a caneca da praxe e ainda sabiam entoar a música (já só a música!) do "somos pequenos lusitos", que o tempo de o Jesus do cruxifixo estar ladeado por dois ladrões ainda não ia longe e a Biblioteca Popular não tinha sido desmantelada, apesar da ordem expressa dos novos poderes. Naquele tempo, a palavra liberdade ainda inspirava em muitos espíritos sentimentos contraditórios. De modo que, quando colocados perante a possibilidade de rabiscarem "redacções" a que o jovem professor teimava em chamar "textos livres", ainda que o equinócio mais próximo fosse o de Setembro e já se começasse a pensar em preparar a festinha de Natal, os miúdos adoravam escrever sobre... "A Primavera". Durante aquela "quinzena de trabalho", o professor tinha lido mais de vinte textos encimados pela palavra "redacção", com o mesmo título ("A Primavera") e formatados em vinte linhas de lugares-comuns. Ficou a saber que a Primavera era uma estação do ano, que os passarinhos faziam os ninhos, as flores nasciam nos campos, a temperatura subia nos termómetros e que a comunhão pascal estava próxima. Ficou sabendo que todos, sem excepção, gostavam da Primavera, o óbvio a que um dos alunos acrescentara (por distracção, ou por súbita inspiração, nunca se chegou a saber) que, quando fosse grande "gostaria de ir à Primavera"... Naquele tempo, o dia começava, invariavelmente, com a aula de educação físico-motora. Sob a orientação do professor, os alunos cumpriam o ritual diário de voltar a pôr em grupos as carteiras que a colega da tarde voltaria a colocar todas alinhadas, voltadas para o quadro negro e para a secretária. Concluído o exercício de musculação, o professor propôs que fossem lidos todos os textos "livres" (o professor era um teimoso...), para seleccionar alguns para o terceiro jornal. Importa fazer um parêntesis na narrativa, para referir que o dinheiro da venda dos dois anteriores dera para comprar o tabopan com que os alunos construiram a mesa que suportava o limógrafo, o copiador de gelatina e a máquina a petróleo onde era aquecido o "leite escolar". Mas, dessa vez, o professor sugeriu à assembleia de alunos que, contrariando o acordado, não fossem os autores a lê-los mas o professor. Autorizado, iniciou a leitura do primeiro texto: "A Primavera. Eu gosto muito da Primavera. A Primavera é uma estação do ano, que começa no dia ..." E daí por diante, até ao inevitável "Depois da Primavera, vem o Verão, que é outra estação do ano muito bonita". Chegado ao fim da primeira leitura e tendo o cuidado de não permitir que os alunos vissem o papel e reconhecessem a caligrafia, perguntou: - "Quem escreveu este texto?" De imediato, ergueram-se vinte e tal braços, que os putos acabaram por baixar, no meio de grande embaraço e confusão. Não satisfeito com a reacção e sem delongas, o professor passou à leitura do segundo texto, que era clone do anterior, e repetiu a pergunta: - "Quem escreveu este texto?" Alguns alunos ainda esboçaram um levantar de braço, mas rapidamente suspenderam o gesto. Ao cabo de uma dezena de leituras, a perturbação inicial deu lugar ao riso. Os alunos tinham percebido a mensagem. Já não erguiam os bracitos, mas mal sabiam o que os esperava. O professor propôs um novo jogo de escrita a que todos aderiram sem reservas. Dessa vez, foi o professor quem ditou as regras. Já que todos gostavam de escrever sobre a Primavera, assim se faria, mas não poderiam recorrer a qualquer das frases tradicionalmente utilizadas: "eu gosto muito da Primavera", "as andorinhas...", etc, etc... O silêncio tomou conta da sala, um silêncio estranho, nunca visto. Mas jogo era jogo, teria de ir até ao fim. Durante alguns longos minutos, os alunos entreolhavam-se, cotovelos assentes nas carteiras, cabeças entre as mãos, gestos de impaciência... até que um deles, após um trejeito no rosto, se decidiu escrever algo. O colega do lado espreitou, encolheu os ombros como se dissesse "olha a grande novidade!" e fez par com o primeiro. Pouco a pouco, juntaram-se os restantes, cada qual na sua vez, que o "ritmo individual", apesar de não se constituir em conceito cientificamente assumido, é de uma cruel evidência para aqueles que, como o outro, ainda crêem que a pedagogia é a arte de ensinar tudo a todos como se fossem um só. Findo o inesperado jogo, os textos foram recolhidos. Seguindo os mesmos cuidados da primeira sessão de leitura, o professor leu o primeiro dos textos e perguntou: -"Quem escreveu este texto?" No meio dos seus trinta alunos, um braço ergueu-se decidido, um só braço, uma só mão autora. O professor disfarçou como pode a emoção e leu o segundo dos textos. Novamente, um só erguer de braço sem hesitações, um gesto único, convicto. E assim foi acontecendo até à derradeira leitura daqueles textos LIVRES. José Pacheco Escola da Ponte / Vila das Aves
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