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Universidade - espécie rara, sempre em risco (10)

Em artigos anteriores, tivemos ocasião de descrever a emergência da comunidade científica moderna na primeira metade do século 17 (cf. "A Página", Fevereiro e Março 1999) e a "universidade-bis", sua contemporânea (cf. "A Página", Junho de 1999). Do confronto atento dessa dupla descrição resultará claro, presumo, a asserção que nos interessa aqui pôr em destaque: a comunidade científica moderna nasceu e consolidou-se não apenas fora da universidade-bis, mas também, em grande medida, à sua revelia.

1.- Os colégios especiais para a "mocidade nobre"

Não poderia ser de outra maneira, aliás. Uma instituição de vocação intrinsecamente internacional, como é a comunidade científica, não cabe, por definição, nos moldes estreitos do Estado nacional e dos seus anexos escolares, entre os quais encontramos, desde o século 14 e em lugar cada vez mais preponderante, o "colégio" interno (em cohabitação de professores e estudantes), pilar principal da universidade-bis e dos seus modernos sucedâneos. Não precisamos sequer de sair de Portugal para encontrar exemplos probatórios, tanto práticos como doutrinários, desta incompatibilidade congénita entre o princípio (intrinsecamente libertário) da livre investigação que anima a instituição da comunidade científica, pilar central da universidade-tris (de que falaremos mais adiante), e o princípio (intrinsecamente autoritário) da endoutrinação que anima a instituição do colégio interno, pilar central da universidade-bis.

As "Cartas sobre a educação da mocidade" de António Nuno Ribeiro Sanches (1699-1782), famoso médico português na corte dos Czares da Rússia, são um documento excelente para conhecermos a doutrina subjacente ao que aqui temos vindo a designar por universidade-bis. "Quem pensar na conservação da nossa Monarquia", escreve Ribeiro Sanches, vê imediatamente "que necessita de oficiais de Mar e Terra. Isto é, de um exército e de uma frota. É certo que só entre a Nobreza se acham as pessoas mais aptas para exercitar estes Cargos, e não necessito aqui de mencionar lugares comuns para provar o que todos sabem por experiência". Dando isto por assente, a proposta de Ribeiro Sanches consiste na criação de um Colégio que designa por "Corpo de Cadetes", "Escola Militar" ou "Colégio dos Nobres", que "não é coisa nova na Europa", "onde os soldados são os meninos e moços Nobres ou Fidalgos. Estes são os que fazem as sentinelas e as rondas dentro da Escola. Ali se exercitam na Arte Militar, e toda ela é governada por esta disciplina. E aquele tempo em que os Soldados nos Corpos de Guarda consomem a jogar, a fumar tabaco, e a zombar, ocupam os moços nobres desta Escolas nos estudos ingénuos que são aqueles que servem para servir e mandar na sua Pátria". Que "estudos ingénuos" tinha Ribeiro Sanches em mente? Vários, da Esgrima, Manejo da espingarda, e Equitação, à Arquitectura Militar, Fortificação, Aritmética, Álgebra e Trigonometria, passando pela Gramática Portuguesa, Latim, Castelhano e Francês. Mas "o primeiro e quotidiano ensino desta Escola deve ser a religião, para cumprirmos a obrigação de Cristãos, com pároco e vigário privativos como se fosse uma paróquia, estes também com função docente de instruir os pequenos nobres nos assuntos religiosos."

Relativamente às "escolas maiores", ou seja ao ensino superior, que Sanches destinava exclusivamente à "mocidade civil e nobre", com exclusão da mocidade que, "pelo seu nascimento e suas poucas posses, é obrigada a ganhar a vida pelo trabalho corporal" (a qual, segundo Sanches, não deveria estudar) e da nobreza (a que destinava um colégio especial, como vimos), propõe Ribeiro Sanches a criação de três escolas. Duas delas (Medicina e Leis civis) constituiriam a Universidade de Coimbra e a terceira (Teologia e Cânones) seria instalada em Lisboa, Évora ou Braga, ou, sendo conveniente, também em Coimbra.

2.- Os donos da universidade-bis

O Marquês de Pombal terá em conta muitos destes conselhos. No ano seguinte ao da publicação das "Cartas" de Sanches é criado, em Lisboa, o "Colégio Real dos Nobres", como parte de um vasto e ambicioso projecto de reforma escolar. Nele se inclui a tentativa patética (já se verá porquê) de reformar os estudos superiores "para fazer Coimbra gloriosa e invejada por todas as outras Universidades da Europa" (sic). O poderoso marquês julgou que, para conseguir esse fim, lhe bastaria apetrechar a "universidade" de Coimbra com as mais modernas "máquinas" (como então se designava todo e qualquer dispositivo laboratorial, do pêndulo à luneta astronómica) e recrutar no estrangeiro os mestres mais ilustres para aí ensinarem. Excelentes disposições, dir-se-ia, não fosse o facto de o mesmo Marquês ter tomado, em nome do seu Rei e senhor, outras destinadas a impedir todo o convívio intelectual com o exterior e toda a circulação interna de ideias que se afastassem mesmo minimamente dos padrões estabelecidos pela Real Mesa Censória, posto avançado do tribunal do Santo Ofício.

"Todos os barcos eram vistoriados à chegada a Portugal - escreve ýRómulo de Carvalho na sua "História do Ensino em Portugal" - todos os livros e manuscritos eram sequestrados para efeitos de censura, e todos os que se publicavam no país eram sujeitos à mais rigorosa fiscalização ideológica. Com Pombal tudo se multiplicou na prática repressiva, sob a sua vigilância superior, chegando onde nunca ninguém tinha chegado, obrigando a nação inteira a entregar na Real Mesa Censória a lista dos livros que tinha em suas casas !". Em 24 de Setembro de 1774, informa-nos a mesma obra, um edital da Real Mesa Censória torna pública uma lista de livros proibidos por conterem doutrina "ímpia, falsa, temerária, blasfema, herética, cismática, sediciosa, ofensiva da paz e do sossego público". Na longa lista figuram Hobbes, Diderot, Rousseau, Voltaire, La Fontaine, Espinosa, etc. De todos os livros apreendidos mandou o Marquês proceder a grandes fogueiras no Terreiro do Paço e na Praça do Pelourinho em Lisboa. E se dúvidas ainda houvesse acerca dos desígnios da reforma pombalina, lá rezavam os estatutos da Universidade de Coimbra, no volume II, p. 223, que "há dois Poderes pelos quais se rege e governa o Mundo. Convém a saber: a Autoridade Sagrada da Igreja e o Poder Real. Que ambos procedem imediatamente de Deus".

3.- Uma Universidade transida de medo

A certeza impressa nestas palavras não deixa margem para veleidades de qualquer espécie. São duas forças poderosíssimas, a Igreja Católica e o Estado nacional (na sua forma monárquica e, para mais, neste caso, autocrática) que presidem à construção da Universidade-bis. É fácil compreender que tal tentativa fosse um malogro quase completo e que, à sua revelia, o núcleo nacional ainda embrionário da comunidade científica internacional procurasse outras vias, mais discretas, de institucionalização, por forma a prosseguir o seu labor - como foi o caso, p. ex., da Academia das Ciências, criada logo após a demissão de Pombal.

O minucioso relatório que D. Francisco de Lemos Coutinho, o deputado da Inquisição e também da Mesa Censória que Pombal nomeara reitor-reformador da Universidade de Coimbra em 1770, escreve à rainha D. Maria I, cinco anos depois da aplicação dos estatutos pombalinos, é esclarecedor. "A universidade - escreve o reitor Coutinho em estilo grandiloquente - considerada em si mesma, é um grande Corpo formado pelos Senhores Reis e magnificamente dotado pelos mesmos Senhores para o fim de ser o Seminário geral da Nação, no qual se ensina a mocidade nobre e civil de toda ela nas Ciências e nas Artes". (A nobreza civil era constituída por aqueles que, não sendo nobres por hereditariedade, tinham recebido títulos nobiliárquicos que lhes permitia desempenhar determinados cargos estatais). Mas o "grande corpo" da universidade pombalina parece bem enfezado, a julgar pelos números. Em cinco anos, o número de estudantes inscritos em Teologia ficou-se por 19, em Matemática 10, em Filosofia 4, poucos em Medicina (o relator não adianta números). Relativamente a Direito (Cânones e Leis), adianta que, antes da reforma, "passavam de três mil e agora apenas chegarão a quinhentos".

D. Francisco Coutinho não se pronuncia sobre os factores que poderiam explicar este misterioso raquitismo precoce. Mas não é de todo implausível que se resumissem todos a uma causa eficiente: um clima de medo a roçar o terror - ou, se quisermos empregar um lexema mais preciso do vernáculo popular - o tremendo "cagaço" que infundia o implacável e tentacular aparelho repressivo do Marquês. Recordemos que este homem mandou assassinar, em espectáculo público, gente da maior nobreza do país (marqueses de Távora, duque de Aveiro, conde de Atouguia), com confiscação de todos os seus bens, por alegado crime de lesa-majestade.

Seja como for, para atenuar este retrato pouco animador, o esforçado reitor-reformador evoca os grandiosos edifícios que o marquês mandara construir: o Hospital Escolar, o Dispensário Farmacêutico, o Observatório Astronómico, o Teatro Anatómico, o Gabinete de História Natural, o Gabinete de Física Experimental e o Laboratório Químico. Para fazer de Coimbra "a mais invejada e gloriosa das universidades europeias" (de resto, muito pouco gloriosas), parecia deveras impressionante. O problema é que a ciência (e a arte) se dá mal com o medo e a repressão. Ora, o medo e a repressão continuaram a exigir as suas vítimas, mesmo depois da demissão de Pombal. Em 1778, o grande matemático José Anastácio da Cunha, lente de Geometria na Universidade de Coimbra, foi preso, julgado em auto-da-fé pelos seus "heréticos erros" pelo Santo Ofício, excomungado, privado de todos os bens pessoais e condenado à reclusão forçada.

4.- O problema de Humboldt

Temos agora todos os elementos necessários para formularmos um problema importante. Entregue a si mesma, a comunidade científica sempre evocou no imaginário popular, em toda a parte, sentimentos contraditórios. Atribui-se-lhe fantásticos e inconfessáveis desígnios de dominação, pactos secretos com o Mefistófeles, poderes ocultos e misteriosos, uma estranha (para não dizer patológica) curiosidade pelo imenso caleidoscópio do Universo. Por outro lado, espera-se dela, hoje em dia, que produza milagres na mesma cadência com que a fábrica Ford de Palmela produz automóveis (ou seja, um em cada 90 segundos). É a velha e sempre renovada confusão entre ciência e tecnologia, o grande e democrático caldeirão onde se faz a saborosa sopa de pedra da globalização dos saberes pela mão da ciência imaginária da comunicação.

A tentativa de separação das águas, não colhe, porém, melhores resultados. Se dissermos que existe uma diferença substancial entre cientistas e engenheiros, e se formos acreditados (como deveríamos, em bom rigor) eis que, de imediato, a velha teoria da conspiração, a mais antiga e popular das teorias da causação, entra em cena. Cabe-lhe lançar uma sombra permanente de suspeição sobre esse grupo de gente estranhíssima que parece, afinal de contas, entusiasmar-se infinitamente mais com a mosca do vinagre, a universalidade e limites da computação, a matéria escura do universo, os classificadores nominais das línguas Bantu ou a área de esquartejamento do caribú entre os esquimós Nunamiut, do que por assuntos tão palpitantes como o último Benfica-Porto, as possibilidades do Dr. Mário Soares ser eleito presidente do parlamento europeu, ou a duração provável do casamento do príncipe Eduardo.

A suspeita que se insinua é, já se vê, que gente de tão abstrusos gostos e de tão inefáveis ocupações é, ou inimputável ou, no melhor dos casos, supinamente improdutiva e ociosa. Pois, se não serve sequer para fabricar torradeiras eléctricas, que outro préstimo poderá ter?

Não se julgue que se trata de um problema menor ou fácil de resolver. Em boa verdade, até ao momento da criação da nova Universidade de Berlim (o modelo original do que aqui temos vindo a chamar Universidade-tris), por proposta de Wilhelm von Humboldt, o problema da articulação institucional e função social da comunidade científica no concerto das nações modernas não tinha sequer sido pensado, muito menos objecto de uma primeira tentativa coerente de solução institucional. Os méritos e os limites da Universidade Humboldtiana só se compreendem, porém, se formos capazes de formular com clareza tanto os problemas a que ela pretendeu dar resposta como os que derivaram do êxito dessa resposta. Será esse o tema do próximo e último artigo desta série.

José Catarino Soares
Escola Superior de Educação de Setúbal


  
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Edição:

N.º 82
Ano 8, Julho 1999

Autoria:

José Manuel Catarino Soares
Instituto Politécnico de Setúbal
José Manuel Catarino Soares
Instituto Politécnico de Setúbal

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