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As mães da Praça de Maio

Acontece cada ano com mais evidência. Chega-se ao final com o cansaço imenso que resulta da repetição. Gestos, palavras, críticas e propostas de uns, elogios, encómios, promessas e desculpas de outros. Dez meses iguais, aos dez meses que fizeram os últimos anos lectivos. Uma rotina esmagadora à qual parece ser necessário aderir para se sobreviver. Rotina ameaçadora!

Não sei como é que outros profissionais escapam - se é que escapam - às rotinas próprias das outras profissões. O que lemos e ouvimos sobre o que se passa na Saúde ou na Justiça, não é encorajador. Provavelmente também passam anos esmagadoramente monótonos. É preocupante que a sociedade portuguesa tenha tantos campos de bloqueio e que o trabalho continue a carregar esta marca de burocracia e desprazer.

Adiei quanto pude a escrita deste editorial de fim de ano lectivo. Não me apetecia repetir os anteriores editoriais de Julho. Editoriais de fuga para férias... Deixem lá que este foi igual aos outros e o próximo será igual a este... Tentem deixar que o Sol e o Mar limpem as mágoas e o cansaço.

Admiti repetir outros editoriais, de anos mais distantes, do tempo em que ainda tinha energia para gritar pela reinvensão do sistema educativo... Admiti fazê-lo mas recusei... Seria voltar a dizer que já não acredito nas reformas mas na necessidade de reinventar o sistema educativo... A dúvida é a de saber se ainda há quem tenha capacidade para reinventar alguma coisa...

Talvez o tempo se encarregue de resolver todo este desconforto de fim de ano, que parece afectar muitos professores. E, tal como a maioria do povo sabe tirar prazer dos "big show SIC" e da música "pimba", talvez nasça uma maioria de professores capaz de tirar prazer da escola e da profissão que tem. Se assim for, nos próximos finais de ano, a maioria estará feliz e sem angústias desnecessárias, os professores tranquilos pelo dever cumprido, os governantes felizes pelo aplauso e pela ausência de crítica e os alunos transpirando a confiança que a ignorância sabe transmitir.

Como não queria fazer o que estou a fazer, isto é, repetir os últimos editoriais de Julho, consultei rascunhos e percorri fichas, com a angústia conhecida de quem tendo de escrever não tem nem alma nem tema. Finalmente encontrei a ficha "As mães da Praça de Maio". E reli as minhas notas. E perdi-me tranquilamente a pensar. E agradeci a Hebe Pastor de Bonafini, essa mãe da Praça de Maio, e a todas as outras mulheres de Maio, pela sua inteligência, pela sua coragem, pela sua força e por persistirem em exigir vida a troco da vida.

Hebe Pastor de Bonafini, argentina, presidente da Associação das Mães da Praça de Maio, tem hoje 71 anos. Em 1976, quando na Argentina se instalou a ditadura militar que duraria até 1983, era mãe de uma família comum. Tecedeira casada com um mecânico, tinha dois filhos com vontade de viver. O mais velho, professor e investigador universitário, fazia trabalho político na Universidade e, em colaboração com elementos da Igreja, alfabetizava de adultos num bairro pobre de Buenos Aires.

Foi preso aos 26 anos, esteve um ano e meio num campo de concentração desaparecendo depois para sempre. O filho mais novo, de 23 anos, desapareceu, dez meses depois do irmão, após ser preso, quando participava numa reunião sindical. A nora, mulher do filho mais velho, desapareceu um ano e meio depois do marido. Esta é a história de uma família comum, igual a milhares de outras histórias de famílias que viveram a ditadura militar argentina (e de outras ditaduras de outros países).

A outra história, a que dá um outro sentido às repetições, a que parece ensinar como transformar a repetição e a rotina em movimento de transformação, a que nos pode devolver a esperança, é desencadeada por esta e muitas outras mulheres que a ela se associaram. Há 22 anos que todas as semanas, à Quinta-Feira, as mães das e dos "desaparecidos", se concentram na Praça de Maio e exigem que lhes devolvam os desaparecidos. Vinte e dois anos sem uma falha. Às vezes são centenas, em momentos especiais são milhares.

Vinte e dois anos depois ninguém acredita que os sequestrados, os torturados e os desaparecidos durante a ditadura regressem com vida. Mas estas mães de Maio persistem, semana após semana, dia após dia, em dar sentido, em dar vida, aos que partiram. Como? Lutando pela dignidade dos que ficaram.

O poder actual na Argentina - que elas acusam de ser mero disfarce do anterior - quis comprar-lhes a vida dos desaparecidos. Mas elas recusaram o dinheiro e exigem justiça. Exigem o julgamento dos assassinos e torturadores. E exigem sobretudo uma outra atenção aos jovens de agora. Nestes últimos 22 anos, as mães da Praça de Maio reinventaram, semana após semana, novas formas de luta pela dignidade e pela justiça social. Desenvolvem trabalho social nos bairros mais pobres. Publicam um jornal mensal. Abriram um café literário. Promovem debates sobre a condição dos jovens de hoje. Intervêm combatendo as novas formas de morte, de tortura, de "desaparecimento" (de exclusão) social e político dos jovens. Vinte e dois anos de persistência e de criatividade.

"Aparición con vida de los desaparecidos". Mais do que os banhos de Sol e Mar, talvez estas mães de Maio nos dêem a força necessária para regressar, com vida, em Setembro.

José Paulo Serralheiro


  
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Edição:

N.º 82
Ano 8, Julho 1999

Autoria:

José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.
José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.

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