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José Correia Tavares - Um Poeta de Escárnio e Mal-Dizer

Ao contrário do que acontece com a maioria das tradicionais"cantigas de escárnio e maldizer",cujo tom satírico abdica quase sempre de uma função social e correctiva, não sendo nunca uma arma de luta política e definindo-se apenas na dimensão crítica individual e subjectiva ou mergulhando no debate ligeiro ou grotesco, a sátira na literatura portuguesa pôde evidenciar-se com maior relevo, como se sabe, a partir do Cancioneiro Geral (1516). Mas, por ser um dos géneros literários mais fecundos de toda a nossa criação literária ao longo dos séculos, pode dizer-se que a sátira perdeu, na moderna literatura portuguesa - com excepção de um ou outro caso -, quase toda a sua razão de ser e poucos são hoje os escritores (poetas, dramaturgos ou ficcionistas) que, pelos caminhos da crítica mordaz, certeira e acutilante, tentam realizar uma obra literária que se enquadre nessa perspectiva.
Ora, na forma intervalar como publica os seus livros, José Correia Tavares tem sido uma voz discordante no percurso alongado da poesia portuguesa - discordante e não de todo isolada no reino literário dos nossos salamaleques, que é sabido vem de alguns trovadores, mas ganha uma outra expressão crítica e de clara irreverência com o tão esquecido Tomás Pinto Brandão, sim, esse poeta que nasceu no Porto e se fartou de gozar com os tempos que foram os do senhor dom João quinto, sobretudo em O Pinto Renascido e o Bom Governo de Portugal, depois com a obra toda de Nicolau Tolentino, e mais perto de nós um Cesariny (ainda muito vivo), um O'Neill (mais comedido) ou um Mendes de Carvalho (mais satírico em versos de "ponta e mola"). Mas poucos mais poetas poderemos contar com rigor que se enquadrem nesse caminho de expressão que, por ser limitado, tantas vezes se considera quase como um "género menor" nas várias e variadas formas de afirmação, de crítica ou de denúncia. Porque há sempre quem não goste de se sentir acicatado em dois versos directos e incisivos que exponham na praça pública certos defeitos, vícios ou hábitos que assim se ridicularizam. Mas a ironia, quando dominada e apontada com endereço exacto e código postal certo, é ainda uma forma superior de expressão literária.
Por isso, na visão irónica de José Correia Tavares, que agora publica Leitura dos Actos e é talvez o seu melhor livro no género, assistimos, como espectadores interessados, visados e avisados, ao grande espectáculo do mundo como um circo cheio de gente. Tudo se denuncia nas suas quadras
(é esse o modo próprio de se exprimir poeticamente) e em voz alta o poeta declara não haver suspeitas de que assim não seja: "Afixação proibida.../Não vás nessa, te anuncia,/Que Poeta és pela vida / Sem qualquer hipocrisia". Mas o sentido crítico, irónico e denunciador que se espelha nessa forma satírica e de mal-dizer remonta a pontos ou sinais bem antigos e, "num país que totaliza oito séculos de história", o poeta confessa ter conseguido "fazer a quadratura do circo", porque se não limita a sinalizar, com viva acuidade, os falsos vícios, as atitudes postiças e defeitos comezinhos de um quotidiano tantas vezes captado pelos cabelos: "Quantas vezes muito amarga / A condição subalterna: / Nós, feitos burros de carga, / Enquanto eles dão à perna".
Mas em Leitura dos Actos, como assinala no seu prefácio Silvina Rodrigues Lopes, "o mundo apresenta-se como um circo em que entre o sério e o lúdico se tece uma rede inesgotável de cumplicidades que protegem do desespero. "Porque é tudo uma comédia / Se levado ao exagero, / Personagens de tragédia / Não caí no desespero", e José Correia Tavares fala de tudo (e por tudo) e de nada, tem a língua demasiado solta e destravada, pouco escapa nas suas alusões directas ao poder, à traição, à política, aos costumes, enfim, aos vários modos de se ser português, aqui e agora, mesmo depois de Abril ter chegado e se terem comemorado com toda a pompa e circunstância os vinte e cinco anos da revolução que já passou, porque nos altos e baixos da nossa condição a realidade ainda nos ensina e mostra em nitidez muitos dos desvios sociais, culturais e outros: "Porque tive de calar / Quando Abril já se perdia, / Só me resta este lugar / Da palavra - Poesia".
Coerente no caminho que decidiu traçar e está bem presente em livros anteriores como Beijos e Pedradas (1975), O Verso e o Rosto (1987) ou em Todas Estas Palavras (1989), José Correia Tavares reafirma com este novo livro que sempre sabe fixar com ironia e intenção crítica os traços e sinais evidentes de uma "realidade" social, humana e cultural que é muito nossa: não apenas por sermos"um país decimal em tudo", como proclamava Mendes de Carvalho, mas sobretudo por sermos uma gente (e todos nós nela incluídos) que tem ainda vícios e preconceitos de raiz ou de educação, que quase não gosta nada ver-se retratada em quadras secas e directas, como pedradas que caem em charco muito lodoso ou em versos endereçados a quem sempre teve e tem telhados de vidro. "Aos auto-suficientes, / Do génio filhos dilectos, / Gosto de ver com as lentes / Para pequenos insectos".
A força expressiva e satírica que ressalta desta Leitura dos Actos espelha essa nossa realidade humana e social, repetimos, com uma sadia e firme ironia e a certeza de que o poeta não quer e não pode dizer as coisas de outro modo: mas esse é, quanto a nós, o aspecto mais interessante de uma poesia que percorre os caminhos da crítica e da denúncia e se pretende afirmar como um poeta deste tempo, directo, incomodativo, repetitivo, mas sempre actuante no seu propósito de tudo escarnecer e mal-dizer. E nisso todos nós estamos incluídos, como "animadores da pista ou ainda menos, de trapézio em trapézio, engolimos isto, cuspimos aquilo, perdemos o fôlego em jogos malabares, não raro na corda bamba, já no poço da morte". Talvez para se dar ainda razão a Garrett, no ano em que passam duzentos anos sobre o seu nascimento, que dizia que "esta terra é pequena e a gente dela não é grande".

Serafim Ferreira
Crítico literário

José Correia Tavares
LEITURA DOS ACTOS
Prefácio de Silvina Rodrigues Lopes
Ed. Livraria Minerva / Coimbra, 1999.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 81
Ano 8, Junho 1999

Autoria:

Serafim Ferreira
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.
Serafim Ferreira
Escritor e Crítico Literário, Lisboa. Colaborador do Jornal A Página da Educação.

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