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A Propósito do Livro - Multiculturalidade e Educação

Foi dito, com uma certa dose de razão, que Portugal e Espanha viveram virados de costas durante demasiados anos. Não penso que com isto não tenha relação o facto de se tratarem de duas ex-grandes potências colonizadoras, com interesses opostos aqui e acolá.
A cultura ibérica, pode dizer-se, expande-se por todas as terras do planeta de modo bifurcado através dos ditos império espanhol e império português, com a singular circunstância de idiomas próximos ainda que invejosamente/ciumentamente distintos, costumes e rituais característicos, mas, isso sim, com as mesmas crenças religiosas que, a pouco e pouco, vão entrando em contacto com as dos aborígenes e gerando interessantes sincretismos, como é o caso, por exemplo, daqueles que vivem em terras do Brasil ou do Caribe.
Sem entrar no que chamaria "dramáticas grandezas" da nossa história ultramarina, a pura realidade bio-antropológica é que nos misturámos, étnica e inclusive linguisticamente falando, até fazer da mestiçagem signo da identidade ibero-americana. Por isso, com o que fomos e somos, portugueses e espanhóis, permita-me o leitor uma pergunta abrupta: a propósito de quê a pouca atenção merecida nos nossos círculos sociais, políticos e académicos pelo tema da multiculturalidade?, como é possível que os nossos países, exportadores massivos de emigrantes (muitos também foram "colonizadores", não nos enganemos), tenham sido tão renitentes em olhar-se no espelho do pluralismo cultural que, mesmo sendo nebuloso nos seus contornos, expressa quer a miséria quer a esperança na dinâmica da história sofrida por pessoas e povos?
Penso que pode dever-se, entre outras razões de carácter mais interpretativo, e que deixo aos gurus da narrativa social, a que esse espelho não representava uma imagem de veneração híspano-lusitana, , não sendo, além disso, os territórios da nossa pátria terra de promessa para ninguém. Após ter decaído a influência internacional da Península Ibérica, uma vez obrigados à "retirada metropolitana" (no caso espanhol faz precisamente cem anos desde o baixar da bandeira nas últimas possessões), esse mundo novo, para o qual continuávamos a contribuir com tanta força de trabalho, aparecia no imaginário colectivo como referência de frustração e de decadência.
O signo histórico tinha mudado, e de que maneira! Custa a assumir que indo primeiro como senhores tivéssemos de ir depois como necessitados e iletrados à procura de uma vida digna, impossível no solar paterno. Também é verdade que a fusão de povos e cultura se desenvolve com mais força nos países que acedem à sua independência do que nas metrópoles onde, com a excepção do povo cigano, não se vislumbra qualquer outra diferença étnica.
Convém recordar, de modo complementar, que o discurso ideológico incorporado na "luta de classes" adquiriu um predicado muito mais intelectual do que qualquer tentativa de primar a relevância de factos diferenciais na esfera pública. Nós e eles como excisão cultural, expressivamente singular em cada tempo e situação. Até chegar a este final de século no qual se conclui como nunca o paradoxo de um mundo dominado pelo desenvolvimento tecnológico que, no entanto, é incapaz de subsumir a voragem de segregação, aberta ou subtil, que alimenta notáveis e prejuízos e impiedosas atitudes xenófobas em ambos os lados do Atlântico.
O choque de culturas foi largamente substituído pelo conflito das classes sociais, mesmo que não falte quem o interprete como o reverso da mesma moeda de troca em cada contexto concreto e com as especificidades evolutivas de cada caso. Do que não há dúvida é da influência construtiva que sobre o tópico da multiculturalidade teve o progressivo empurrão da democracia liberal num marco de projecto compartido, política e economicamente, com outros povos da Europa, América ou mais além de ambos os continentes.
Toma especial importância nesta dinâmica o fortalecimento da sociedade civil, donde aparece com força própria a necessidade de uma educação para a cidadania responsável e adequadamente predisposta não só à aceitação da diversidade, mas também à sua consideração como elemento de coesão e enriquecimento comunitário. Surge assim o apelo a uma ética intercultural que permita conduzir os objectivos de uma grande parte de pessoas que pensam no civismo como fonte de progresso moral, estrategicamente depositados nos principais fundamentos do desenvolvimento pendular numa sociedade que se valoriza por ser moderna e avançada.
Definitivamente, é provável que ainda convivamos bastantes anos com a sensação de ambivalência e incomodidade que carrega o discurso do reconhecimento e agregação culturais. Mas mais cedo do que se julga tornar-se-á patente a miséria do etnocentrismo, e as novas gerações apostarão com mais valentia no diálogo intercultural, o único com sentido prospectivo de eficácia para qualquer projecto da comunidade, a nível espiritual e material. A globalização não pode reduzir-se à sua compreensão mercantil, alienada da procura de valores universalizáveis a partir de um objectivo de encontro e respeito pelas identidades; e tudo isto com a esperança de que globalizar possa significar também um travão no crescimento assimétrico das economias nacionais.
O desafio está aí e é a nossa geração que tem de o assumir e converter em legado credível. Sem falsas expectativas nem tão pouco tingido por um pessimismo permanente. Talvez com uma dúvida metódica que, longe de restringir, fortaleça a vontade de estudar, investigar e comunicar para avançar comunitariamente, no meio de uma sociedade civil não oprimida nem amordaçada pelo Estado.
Trata-se de duvidar positivamente, dizendo as coisas como elas são, ou seja, marcando a distância entre a retórica e os factos. Diziam-no os meus estimados alunos portugueses de doutoramento e acaba de o ratificar, por argumentos, o meu reconhecido colega Luís Souta (Professor na Escola Superior de Educação de Setúbal e Vice-presidente da Associação Portuguesa de Antropologia) neste enxundioso livro, um dos poucos que se podem encontrar sobre Multiculturalidade e Educação no querido país vizinho.
No caso de Portugal é claramente próximo: emissor de cidadãos para o Norte, receptor de imigrantes do Sul, com uma apreciável proporção de regressos e um assentamento in crescendo de cidadãos de outros países que o escolhem como lugar de trabalho ou residência. Uma nação que, como a nossa, precisa penetrar definitivamente na procura de uma competência multicultural.
A obra que aqui comentamos do Dr. Souta, sublinha esta questão desde o princípio até ao fim, complementando-a com uma exposição promedida, diáfana e bem organizada acerca da riqueza acumulada que para o trabalho e para o encontro intercultural existe já em Portugal. Sem esquecer à partida que a emergência das sociedades multiculturais está de braço dado com os enormes desafios tecnológicos e que a diversidade étnica e cultural crescentes, ali como aqui, deve ser abordada na perspectiva educativa, social e cultural, dento do panorama europeu.
Tem especial interesse a parte que refere as políticas multiculturais na terra de Pessoa, com um exame apurado da dinâmica associada à reforma educativa, e delimitação de territórios necessitados de intervenção prioritária, a julgar pelos índices de fracasso escolar. É precisamente este panorama que é reflectido por tais dados o que alimenta um desejo, bem situado, de estabelecer estratégias multiculturais adequadas, com plataformas de apoio na colaboração escola-famílias, núcleo imprescindível para criar comunidades educativas, objectivo estratégico na melhoria da qualidade dos serviços prestados pelos centros de ensino, cujos profissionais hão-de ser formados conscientemente com habilitações específicas só se for necessário, para melhor intervenção em contextos que requerem algo mais do que sabedoria convencional.
Precedido pela célebre frase de Freire "Ninguém é, se proíbe que outros sejam" aborda o tema do racismo e os seus vaivéns na sociedade portuguesa, reclamando um trabalho contínuo nas escolas e explicitando curricularmente preocupação e análise, que se concentra ainda no problema da intolerância e da marginalização dos ciganos ("Ciganos: os eternos excluídos").
A última entrega do volume, antes de catalogar recursos interessantes, tem a ver com dois projectos multiculturais que se desenvolvem em Portugal. O primeiro tem por título Várias Culturas, Uma Escola e realizou-se durante cinco anos (desde o curso de 90-91) numa escola primária de Amora-Seixal. E o segundo, não é outro senão o Centro para a Igualdade de Oportunidades em Educação (CIOE), fundado em 1991 na própria Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico de Setúbal.
É justo agradecer a Luís Souta o seu sucesso notável neste livro, conciso e directo, sugestivo e expressivo, tanto ao nível das ideias como dos factos narrados. Aproximando-nos do Portugal de amplos portões culturais, assim como em Espanha, é preciso assumir, definitivamente, um grande projecto de educação intercultural. Trata-se de ganhar o futuro aprendendo com a nossa história.

Miguel Á. Santos Rego
Director do ICE: Instituto de Ciências da Educación da Universidade da Santiago de Compostela

Multiculturalidade & Educação
Luís Souta
Profedições, lda


  
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Edição:

N.º 81
Ano 8, Junho 1999

Autoria:

Miguel Á. Santos Rego
Director do Instituto de Ciencias da Educación da Universidade de Santiago de Compostela e membro do Consello Escolar de Galicia
Miguel Á. Santos Rego
Director do Instituto de Ciencias da Educación da Universidade de Santiago de Compostela e membro do Consello Escolar de Galicia

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