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Quotidianos, Matemática e Escola

(O local e o global na escola)


A aprendizagem significativa é maior quando o aluno escolhe,
de uma variedade de opções e recursos,
aquilo de que precisa e quer aprender.

Carl Rogers, 1977

 

O local e o global no sistema de ensino parecem também estar legitimados na letra da Lei: "assegurar que nesta formação sejam equilibradamente interrelacionados o saber e o saber fazer, a teoria e a prática, a cultura escolar e a cultura do quotidiano" (Lei nº 46/86, capítulo II, artigo 7º, b)); "todas as crianças possuem um conjunto de experiências e saberes que foram acumulando ao longo da sua vida, no contacto com o meio que as rodeia. Cabe à escola valorizar, reforçar, ampliar e iniciar a sistematização dessas experiências e saberes, de modo a permitir, aos alunos, a realização de aprendizagens posteriores mais complexas" (Ensino básico, programa do 1º ciclo, 1990: 67).

Também a matemática tem reforçado o seu diálogo entre os saberes locais e globais como diz Iturra (1990a e b e 1991a). Verifica-se hoje, cada vez, mais uma preocupação em dar à matemática, por um lado, uma dimensão mais empírica e até utilitária, por outro lado, ligá-la ao quotidiano das pessoas. A ênfase dada à resolução de problemas é notória nos programas de matemática do ensino básico de hoje.
A este nível, a grande inovação dos programas de matemática do 1º ciclo parece mesmo estar no peso dado à resolução de problemas e também da maneira como se passa a considerar a criança: um sujeito activo que constrói o seu conhecimento. A questão da resolução de problemas na matemática, que agora tem vindo a ganhar mais importância nos programas das últimas reformas educativas, não é uma questão nem nova nem isolada e específica da matemática. É uma problemática que tem vindo a ser pensada em geral pela recém criadas ciências da educação e há pelo menos um século, pela psicologia cognitiva, sociologia do conhecimento e antropologia cognitiva, para além de toda a teoria construtivista que bebe a sua inspiração em Vygotsky.
Seja em que disciplina for, o diálogo local/global parece ser fundamental para o desenvolvimento cognitivo e valorativo dos alunos, e a Reforma Educativa parece não perder isso de vista:

"A inter-acção escola-meio é, afinal, tão indispensável à realização global do aluno como ao desempenho cabal do papel da própria escola na comunidade, explorando-se, numa complementaridade e de enriquecimento mútuo, adequados conteúdos formais e não formais" (GEP, 1988:117).

O desenvolvimento curricular e programático, esse é um outro assunto que depende dos docentes, das suas práticas e representações acerca da relação entre o local e global na aprendizagem e na construção do saber indispensável à vida.

A resolução de problemas

Curiosamente, a disciplina de matemática do ensino liceal dos anos 50, como nos referem Ribeiro et alii, (1996), já pretendia ser mais formativa que informativa e dar ênfase às técnicas de cálculo com base na resolução de casos concretos: "que esses casos concretos sejam, tanto quanto possível, do ambiente do aluno, da sua economia caseira, da economia escolar ou da região onde está localizada a escola" (Diário do Governo 1ª série - nº 8 - 12 de Janeiro de 1952, p. 28, cit in Ribeiro et alii, 1996 pp 3-5). No entanto, segundo as mesmas autoras, essa referência feita à resolução de problemas já nos programas de há 40 anos, aparecia com perspectivas diferentes das actuais: "enquanto nos anos 50, o objectivo seria o professor dar realce ao cálculo, devendo os alunos seguir o mesmo raciocínio, a aplicabilidade deste item nos anos 90, tem como objectivos principais, permitir ao aluno o desenvolvimento do raciocínio seguindo várias heurísticas, a compreensão de conceitos matemáticos, e mostrar como a matemática tem ligação com outras áreas do saber" (Idem p. 5).
Por detrás da problemática da resolução de problemas na matemática, está portanto também o conceito de aprendizagem significativa. Pretende-se que a aprendizagem parta da experiência de cada aluno, senão ele não aprende. Não se pode partir do vazio, há que partir do contexto do aluno e dos seus hábitos informais de calcular para chegar à abstração da matemática formal.
A resolução de problemas pode assim ser também uma via para combater as elevadas taxas de insucesso em matemática na medida em que procura aproximar a disciplina da própria vida dos alunos. E a resolução de problemas na sala de aulas é sem dúvida uma forma privilegiada de estabelecer essa ligação entre a matemática e a vida, a abstracção e o dia a dia.
O aluno precisa de ter a liberdade necessária para resolver um problema. Deve ser ele próprio a descobrir um caminho que considere conveniente para a sua resolução. Grande parte dos manuais, ao contrário, induzem o aluno num caminho como se outros não houvesse. Desta forma, não promovem o desenvolvimento do raciocínio, da criatividade, do espírito crítico, da capacidade de inventar e de resolver problemas uma vez que aos alunos já é indicado o caminho a seguir.
Num mundo cada vez mais matematizado, a matemática do futuro deverá ser um instrumento de compreensão e de domínio da realidade. É então premente a aposta no pensar de forma flexível, no identificar variáveis pertinentes nesta ou naquela situação, no utilizar diferentes estratégias. Esta é no fundo a pedagogia multi e intercultural. A contrária, a da matemática formalizada, que privilegia o cálculo abstracto, o simbolismo e a abstracção pura, que não se liga à realidade, que não reconhece a importância dos contextos sócioculturais dos alunos e dos seus saberes, não constrói cidadãos pensantes e preparados para o mundo real: a sociedade contemporânea que é heterogénea no espaço e no tempo.
Estamos uma vez mais a remeter para a ideia de que os processos cognitivos fundamentais se desenvolvem muito cedo e funcionam entre a empiria e a abstracção muito antes da criança ser escolarizada. É o que nos recordava já a célebre reflexão de Piaget de que "não são as matérias que ensinamos que os alunos não compreendem mas sim as lições que lhes damos".
Talvez por isso, a problemática da resolução de problemas atravessa todo o programa de matemática do 2º ciclo do ensino básico (M.E, 1991). Fá-lo tanto nos objectivos gerais como nas unidades e nos conteúdos. Entre variadíssimos exemplos, vejamos agora alguns extractos, primeiro para o 5º ano:
"Participar na realização de actividades e na resolução de problemas do meio envolvente", "estimar e criticar um resultado. Interpretar e criticar resultados dentro do contexto da situação", "aplicar conhecimentos e processos da matemática em situações reais", "representar e utilizar números inteiros relativos para interpretar situações da vida corrente", "a realização de esboços simples deve ser sentida pelos alunos como uma ajuda para a compreensão e resolução de alguns problemas", "resolver problemas ligados à vida real e aos interesses dos alunos utilizando as operações estudadas e conhecimentos de geometria [...] descrever e discutir estratégias de resolução de problemas".

Semelhante ênfase sucede no programa do 6º ano:

"Resolver problemas ligados à vida real que envolvam o perímetro do círculo", "resolver problemas ligados à vida real que envolvam o cálculo de volumes de cilindros ou de capacidades", "resolver problemas da vida corrente que envolvam o conceito de proporcionalidade directa, nomeadamente a aplicação directa de uma percentagem, recorrendo, em casos simples, ao cálculo mental".

Como calcular a altura dum prédio com o auxílio de um barómetro

Dizia atrás que o desenvolvimento curricular entre o local e o global se deve muito ao professor e à sua pedagogia mais monocultural ou, pelo contrário, mais intercultural, porque, justamente, pode-se calcular a altura dum prédio com o auxílio de um barómetro. E mais, através de uma grande variedade de formas, como nos refere Alain Bouvier na sua obra "La mystification mathématique". Resta saber se o docente aceita todos esses caminhos, apresentados eventualmente pelos alunos na resolução do problema ou, pelo contrário, apenas um, o considerado mais formal, baseado na pressão atmosférica entre dois pontos situados a altitudes diferentes.

É que os caminhos para a resolução do mesmo problema podem ser muitos:

  1. Levar o barómetro até ao telhado do edifício, atá-lo a uma corda comprida, descê-lo até à rua, e subi-lo de seguida. Medindo-se o comprimento da corda obtém-se depois a altura do edifício.
  2. Pegar no barómetro e subir as escadas interiores marcando na parede a sucessivamente a sua altura. Da contagem final das marcas resulta a altura do edifício em unidades barométricas.
  3. S = -gt^2 onde S é a distância, G a aceleração da gravidade terrestre, que é de 9,8 m/s, e T o tempo.
  4. E por que não, trocar o barómetro pela informação recolhida junto do porteiro do prédio?
  5. ... e muitos outros.

Ricardo Vieira
Escola Superior de Educação de Leiria
Professor Convidado da Universidade de Aveiro

 

Bibliografia referenciada

  • ITURRA, Raul (1990a) Fugirás à Escola para Trabalhar a Terra Terra:
    Ensaios de Antropologia Social sobre o Insucesso Escolar, Lisboa: Escher.
  • ITURRA, Raul (1990b) A Construção do Insucesso Escolar, Lisboa: Escher.
  • RIBEIRO, A. I., BRÁZ, F. E outros (1996).
  • "Os currículos de ontem, os de hoje e os de amanhã", in Educação e Matemática, Revista da Associação de Professores de Matemática.

  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 81
Ano 8, Junho 1999

Autoria:

Ricardo Vieira
Escola Superior de Educação de Leiria, ESE-IPLeiria. Investigador do CIID - Centro de Investigação Identidades e Diversidades
Ricardo Vieira
Escola Superior de Educação de Leiria, ESE-IPLeiria. Investigador do CIID - Centro de Investigação Identidades e Diversidades

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