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"Doze Em Um"

Completar-se-á em 15 de Junho o processo de adopção de manuais escolares para o 1º ano de escolaridade. Atento à importância de que se reveste esta selecção, o DEB fez chegar a todas as escolas fichas de avaliação da "qualidade científica e pedagógica" dos ditos, com o objectivo de dar cumprimento ao disposto no Decreto-Lei 369/90. Na sua circular de 20 de Abril de 1999, solicita aos professores e às escolas que registem "os problemas detectados, eventualmente, em alguns" dos manuais.
Após algumas advertências (ou reprimenda?) aos professores relativamente à recolha de dados do ano transacto, o DEB pede que a "selecção seja bem ponderada e precedida de uma análise criteriosa". Perante a diversidade e quantidade de critérios envolvidos na análise (um total de dezoito), focalizei a minha apreciação num deles: "os textos são claros, rigorosos e adequados ao nível etário do aluno". E embrenhei-me numa leitura atenta dos manuais de Língua Portuguesa.
Ao cabo de uma dúzia de exemplares provindos de diferentes editoras e autores, interrompi o esforço de análise, pois compreendi que estaria a ler o mesmo manual com capas diferentes e que, por outro lado, deveria proteger a minha sanidade mental. Havia lido doze vezes as mesmas frases, não tive coragem para ler a outra dúzia de manuais que me esperavam.

Viagem ao passado

Durante a leitura, senti-me transportado até ao ano de 1958, puto de sete anos a cumprir obsoletos rituais do século XIX. Eis-me sentado, lado a lado com outros miúdos, em velhas carteiras com buracos para tinteiro e penas, num coro de melopeias sem sentido, repetindo até à exaustão, cada qual voltado para o seu livro único: "a de águia, e de égua, i de igreja, o de ovos, u de uvas..."
Os manuais best selers (todos iguais, ainda que uns mais iguais que outros...) servem, despudoradamente e à semelhança dos seus antepassados, o mesmo método de iniciação à leitura e escrita (o chamado "analítico-sintético"), num convite à reprodução de anacronismos.
A hegemonia de um método contribui para a ocultação das alternativas, pois, do global de contos aos métodos silábicos, do global de palavras aos métodos mistos, dos fonomímicos aos fonossintéticos, existe uma panóplia de metodologias que, há muitas décadas, os professores deveriam ser capazes de utilizar. Se não há duas crianças iguais, não haverá duas crianças que aprendam a ler do mesmo modo e será indispensável que os professores estejam capacitados para proceder a diferentes abordagens na iniciação à leitura e escrita.
Numa breve análise aos manuais aprovados (!) para o 1º ano, extraí algumas frases de elevado gabarito intelectual, que as nossas (infelizes) criancinhas hão-de repetir até à exaustão, e que passo a citar.

As mesmas frases em doze manuais

"A tia tapa o pote" é a frase campeã das citações, quase a par com a célebre "a vaca dá leite". E regressamos ao país rural de Salazar, quando "o Vilela leva a vaca à vila", "o avô vai à vila a pé", ou ficamos a saber que "o Vilela veio da vila a cavalo".
Através dos manuais ficamos também a conhecer o que preenche o quotidiano dos alunos das nossas escolas: "É dia de aula e a Adélia pula" (Durante a educação físico-motora? Durante o recreio? O texto é omisso, termina em suspense, não nos informa). Mais claro é o texto seguinte: "Na aula, a Sónia acabou tudo: a soma, a cópia e o ditado. Tocou a sineta. A Sónia saiu da aula", o que reflecte uma clara assunção de novas pedagogias.
A confirmar a presença de sobredotados nas escolas oficiais, "o Paulo lê a pauta" enquanto "a avó toca violino", "o avô toca viola" e "a tia toca corneta". Porque nos preocupamos com a educação musical, se em cada família há um Motzart em potência?

"Textos claros e rigorosos"

Os manuais dão notícia de prodigiosas acrobacias : "a bola pula e o Lito papa a lula", "o Paulo pula da mota", "a Lili papa a lua", "o Óscar viu os ovos e abriu os olhos", "eu pulo e leio" (presumo que em simultâneo e que sublime exemplo de interdisciplinaridade!).
Os manuais traduzem, como vimos, preocupações com o são desenvolvimento cognitivo dos seus jovens leitores, mas não descuram o desenvolvimento atitudinal. Vejamos alguns exemplos de transmissão de modelos, neste caso, de respeito e amor ao próximo: talvez porque "o miau é mau" e "o mémé é tão mau", "o Catita deu uma patada ao cão", "o Pepe bateu com o pé no pé do pipi", e "a Belita bateu à tia". Perante tais manifestações de pacifismo militante, é estranho que os alunos andem à traulitada nos recreios.
Os manuais sugerem técnicas avançadas, que deverão ser estudadas pelos bombeiros e aplicadas já na próxima época estival: "caiu uma gota de água na mata e apagou o lume".
E, num esforço de protecção da língua materna relativamente às influências das telenovelas brasileiras e cowboyadas americanas, dizem-nos, no mais puro português, que "o xerife comeu muito xuxu, tau, tau, tau, toca o teu berimbau", que "a Pepa papou", "papa tu do Dadá", "o Jugu não viu o zebú.". Por sua vez, os personagens que atravessam estas surrealistas narrativas foram baptizados com nomes usuais em qualquer conservatória do registo civil do nosso país: "Ucha, Tutu, Zuzu, Dídio, Lalá, Nídia, Ulema, Dálio, Dedé, Xodó", etc. Já agora, alguém sabe o que é uma "mupa"? Eu não sei, o programa de auto-correcção do computador também não, mas as criancinhas de seis anos deverão saber.

"Textos adaptados ao nível etário do aluno"

Os manuais contêm diálogos caracterizados por uma forte intensidade dramática:
- "Mimi, dá-me o tomate.
- Toma, Rui, o tomate é teu.
- Eia, é a teia. (No manual, esta frase acaba em ponto final mas, perante tanta alegria, eu arriscaria o ponto de exclamação. Já o mesmo não faria na frase "Eia, pai, é a pipa", porque, apesar de vivermos num dos países de maior consumo de álcool, recuso pensar que a criancinha vá acabar contraindo uma cirrose ou em tratamento nos alcoólicos anónimos)
- Ai o tapete.
- Mãe, a sopa azedou.
- Dou-te azevia cozida e batata.
- Ó filha olha a agulha. Olha o baralho do palhaço."
Perante estas pérolas de literatura, o Freinet deve revolver-se no túmulo e o Saramago há-de ficar roído pela inveja.

"Evolução na continuidade"

Agora, falando a sério... juro que são estas frases a roçar a imbecilidade que milhares de crianças vão ser forçadas a decorar, no próximo ano lectivo, ao mesmo tempo que preenchem muitas carreirinhas de "is de igreja", ou de "pês de pote". Juro que não inventei qualquer das frases e que muitas outras do género ficaram por citar.
As editoras falam "de livros que têm de estar adaptados à realidade do próximo século". Manuais "para o século XXI" com as mesmíssimas frases de há cinquenta ou cem anos?
E, como se não chegassem os disparates debitados nos manuais, as editoras brindam-nos ainda com livros de fichas e... "sebentinhas"?! Que fique o ensino superior a saber que já não tem o exclusivo, que as (pobres) das criancinhas de cinco e seis anos já dispõem de "sebentinhas" no mercado livreiro. Sugiro que a penitência mínima para tão grave pecado consista em mil recitações da "Balada da Neve", que os mais velhos aprenderam nos manuais únicos do Estado Novo.
Esta evolução na continuidade reflecte uma inércia transgeracional inquietante. Não haverá outros modos (mais inteligentes) de aprender a ler e a escrever?
Os meus colegas e amigos pedem-me que modere as palavras dos textos que vou escrevendo. Como poderei ser comedido, se todos vemos, ouvimos e lemos?

José Pacheco
Escola da Ponte / Vila das Aves


  
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Edição:

N.º 81
Ano 8, Junho 1999

Autoria:

José Pacheco
Escola da Ponte, Vila das Aves
José Pacheco
Escola da Ponte, Vila das Aves

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