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Universidade : Espécie Rara, Sempre em Risco (9)

1.- A implosão da universidade primeva

A "universidade primeva", na sua forma de "Estudo Geral", atinge o auge no terceiro quartel do século 13. No início do século 15, já pouco restava, porém, dessa singular instituição europeia, se nos reportarmos ao essencial da sua matriz. Não me possível evocar aqui, salvo a traço muito grosso, as diversas fases desse processo de "implosão" da universidade medieval (aqui designada por "universidade-primeva") e do processo, mais ou menos concomitante, de "eclosão" das formas correspondentes à instituição que se lhe sucede historicamente (aqui designada por "universidade-bis"). Antes, porém, convém deixar claro que "universidade-bis" não significa uma segunda edição, revista e aumentada, da universidade primeva. Designa, isso sim, uma instituição diametralmente oposta à sua antecessora.

A oposição entre estes dois modelos de "universidade" marca-se em todos os planos pertinentes: no ideário filosófico-pedagógico e nas formas de colinguismo subjacentes aos modos correntes de ensino e de estudo autónomo; nas fontes, desenhos e hierarquias curriculares; nas formas de autogoverno escolar; no valor de uso e de troca dos graus e títulos concedidos; na origem étnico-geográfica dos seus mestres e alunos. É também marcadamente diferente a relação que a "universidade primeva" e a "universidade-bis" mantiveram, no tempo que lhes coube viver, com os poderes constituídos da Europa cristianizada. A observação aplica-se tanto aos grandes poderes supra-nacionais e supra-regionais (o Papado, em primeiro lugar e, em menor medida, os grandes conglomerados herdeiros do desmembramento do Império Carolíngio: o Sacro Império Romano-Germânico e o Reino de França) como aos poderes realengos mais que começam a consolidar-se nos séculos 12 e 13 na Península Itálica, na Grã-Bretanha, na Península Ibérica e noutras paragens onde a aliança de monarcas e príncipes com os "homens-bons" mais ricos e influentes do "terceiro estado" - mercadores, cambistas, armadores, lavradores, criadores de gado e mesmo alguns mesteirais - se vai tornando num factor político de primeira grandeza, sobretudo nas cidades marítimas mais prósperas.

O confronto que se poderia estabelecer entre estes dois tipos sucessivos de universidade, nesses vários níveis de análise, seria deveras instrutivo. Aqui, pela absoluta falta de espaço (este é o penúltimo artigo de uma série que já excedeu largamente os limites originalmente previstos), teremos de nos contentar com um brevíssimo sumário que permita, pelo menos, estabelecer um contraponto útil com a "universidade-tris", aquela que consideramos espécie melindrosa.

2.- Carácter internacional da "universidade primeva"

A "universidade primeva" - digamos, para fixar ideias, as Universidades de Paris, Bolonha e Oxford, as únicas que ilustram cabalmente esta tipologia era uma corporação-instituição organicamente unificada no plano internacional, ainda que o epíteto de "internacional" valha apenas, no caso em apreço, para os limites geográficos da Europa cristianizada de então.

Eram vários e muito potentes os factores dessa unidade orgânica internacional. Primeiro, o idioma. Os mestres da universidade primeva ensinavam não nos seus vernáculos natais, mas em Latim. Esse era o veículo único de ensino presencial tanto nas disciplinas do "trivium" (o primeiro patamar de "Faculdade da Artes", correspondente ao que hoje se poderia chamar de "literacia básica") e do "quadrivium" (o segundo patamar, correspondente à "literacia avançada"), como do ensino profissionalizante (o terceiro patamar na hierarquia dos estudos, ministrado nas Faculdades de Direito, Medicina e Teologia). Em bom rigor, a importância do Latim como língua de "alta cultura", assentava numa forma específica de colinguismo, numa aliança tácita do Latim com o Grego, o Hebraico e o Árabe literários, onde o Latim ocupava, porém, a posição charneira através da dupla mediação consentida pelo exercício supremo da tradução e/ou da exegese das "fontes autorizadas" da escolástica (a que adiante se fará referência).

Era em latim que o mestre ("magister"), lia em voz alta, comentava, questionava ("quaestio") e ajuizava ("determinatio") os textos dos autores__- consagrados um exercício de competência docente denominado "lectio". Era em Latim que se debatiam livremente as questões controversas que os mestres colocavam à consideração dos seus pares e dos alunos em sessões especiais ("disputatio"). Era em Latim que as lições dos mestres eram recopiadas à peça e reunidas num único caderno ("exemplar"), de modo a poderem ser facilmente manuseáveis. Era em Latim que os estudantes se preparavam para os exames e que estes se desenrolavam. Era em latim que era feita a titulação e colação ("collatio") dos graus universitários. Finalmente, era em Latim, mais ou menos "vulgar" (embora não possamos avaliar até que ponto, por falta de informação suficiente), que os escolares (estudantes e mestres) de diferentes "nações" comunicavam entre si.

O segundo factor de unificação da universidade primeva diz respeito ao método comum de superação da dúvida (ou, se se preferir, de fixação da crença) em todas as questões de natureza téorico-especulativa: a chamada filosofia escolástica. Dos grandes filósofos escolásticos (e.g. o dominicano São Tomás de Aquino e os franciscanos Roger Bacon, Duns Scotus, William de Ockam e Marsiglio de Pádua), nada cabe dizer aqui, por ser assunto demasiadamente vasto e marginal para os nossos propósitos actuais. (O leitor interessado poderá, todavia, travar (ou reatar) conhecimento com o penúltimo, sob licença ficcional, na personagem de "Guilherme de Baskerville", o frade-detective do magnífico romance "O Nome da Rosa", de Umberto Eco). Da filosofia escolástica importa dizer apenas que se tratava de uma simbiose original do método da "veracidade a priori" com o "método da autoridade" - a autoridade da Bíblia; de Aristóteles, Platão, Hipócrates e Galeno (e dos seus exegetas árabes, como Avicena, Averróis, Rhazis); e dos grandes filósofos-teólogos da Igreja Católica Romana da "idade das trevas" : (Santo) Ambrósio, (São) Jerónimo, (Santo) Agostinho e (São) Gregório.

O terceiro factor de unificação internacional da "universidade primeva", residia na própria coesão, mobilidade profissional e diversidade nacional da corporação dos mestres. Disso são testemunho os dispositivos que estes forjaram para afirmar a sua independência perante todos os poderes vigentes, controlar os seus próprios procedimentos de trabalho e defender os seus direitos profissionais: (i) um currículo de âmbito internacional para todos os estudantes; (ii) graus universitários de âmbito igualmente internacional; (iii) a greve e o que (à falta de melhor termo) se poderia denominar, com António José Saraiva, (iv) "debandada geral".

Graças a (i), um estudante podia circular sem peias entre Paris, Oxford e Bolonha, e transferir-se, ainda mais facilmente, para outros "Estudos" de segunda ou terceira linha. Graças a (ii), ou seja, munido da "licentia ubique docenti", qualquer recém-licenciado podia ensinar em qualquer parte da Europa cristã. Munido do grau de doutor em Artes, Medicina, Direito, ou Teologia, podia almejar ser admitido ao posto de mestre nas correspondentes faculdades, sem exame prévio. Os factores (iii) e (iv) requerem um pequeno intróito. Os poderes já estabelecidos (Papado, monarcas, altos dignatários da Igreja Católica, grandes senhores da nobreza) e os que despontavam ("comunas" ou "concelhos"), nunca cessaram, de muitas maneiras, de procurar condicionar a liberdade de ensino nem de interferir na conduta e administração do "Estudo Geral". Os mestres universitários de Paris, Oxford e Bolonha, dispunham, porém, de duas armas de peso que não hesitaram em empregar, em múltiplas ocasiões e com êxito assinalável, para repelir essa intrusões: a greve ou recusa em leccionar e, em último recurso, a debandada geral, a qual consistia em abandonar colectivamente e de comum acordo a cidade onde ensinavam para ir ensinar noutras.

A "autonomia universitária", de que hoje tanto se fala, teve aqui, no uso (ou na ameaça do uso) destas duas armas pelos mestres da "universidade-primeva"- ambas invenção dos mestres, sublinhe-se, não dos estudantes - a sua primeira e mais genuína expressão. Eles sabiam que delas dependia, em última instância, a única garantia efectiva e o único escudo protector da sua independência. Uma lição que convém não esquecer.

3. - Aristocratização das universidades

A "universidade-bis" é em tudo oposta à sua predecessora. Às "faculdades" e "nações", sucedem-se os "colégios". À escolástica entendida como fé temperada pelo exercício da razão ("a fé em busca da inteligência" na fórmula lapidar de Santo Anselmo), à tentativa de conciliar Aristóteles e a Bíblia, sucede-se a apologia da "douta ignorância" (o título da suma teológica do cardeal Nicolau de Cusa) e a denúncia da "seita aristotélica" dos filósofos escolásticos. Aos mestres universitários ("universitas magistrorum") - que a si mesmo se encaram como homens de ofício, mesteirais, artesãos da arte de trabalhar o intelecto, corporação específica entre as demais corporações de ofícios, igualmente específicas, do grande estaleiro urbano medieval - sucede-se uma casta semi-hereditária: a aristocracia de toga.

A Universidade de Bolonha servir-nos-á, aqui, como exemplo ilustrativo dessa transformação geral. As novas linhas de força já se detectam claramente no crepúsculo do século 13. Por exemplo, o "colégio" dos juristas bolonheses, reclama insistentemente (1295, 1299, 1304) e obtêm finalmente (1397), em sede estatutária, um direito preferencial para os filhos, irmãos e sobrinhos de doutores na sucessão das cátedras que vagassem. Não se trata de um pormenor insignificante. A luta dos mestres bolonheses para se auto-perpetuarem por via hereditária é o culminar de um processo em que o fideicomisso substitui a filosofia.

Começam por praticar a usura, emprestando dinheiro a juros, sobretudo a estudantes pobres ou perdulários. Os lucros são depois reinvestidos em bens imobiliários (casas e terras) e sociedades comerciais. Os mestres universitários são agora proprietários ricos e capitalistas, desejosos de ombrear com os nobres. Constroem sumptuosas moradias. Erguem jazigos funerários monumentais. Fazem gala em exibir os sinais exteriores da sua riqueza recente nas próprias cerimónias, práticas e insígnias universitárias. Os exames de doutoramento prolongam-se em festas semelhantes às dos nobres: bailes, representações teatrais, torneios. O título de "magister" já não lhes chega. Fazem-se agora chamar pelos estudantes de "dominus meus" (meu senhor) e nos documentos oficiais de "nobiles viri et primarii civis" (homens nobres e cidadãos principais). Durante a "lectio" sentam-se em cadeiras de espaldar ao estilo senhorial e cada vez mais decoradas. Nos exames de doutoramento usam anel de ouro, toga, boina, capelo com gola de arminho e luvas de cano alto estas últimas a expensas dos estudantes. Um texto estatutário de 1387 exige que o candidato entregue, antes do seu doutoramento, nas mãos do bedel, "um número suficiente de luvas para os doutores do colégio" e vai ao ponto de precisar: "Serão de boa pele de camelo e largas bastantes para que a mão entre com facilidade e bem-estar. Por boa pele de camelo deve entender-se que serão das que se compram, pelo menos, a 23 soldos". Os mestres não fazem apenas vida de nobres; convivem com eles e usufruem mesmo de algumas das suas prerrogativas. É o caso dos reitores de Bolonha que recebem o privilégio de usarem armas e de serem escoltados por cinco homens.

4.- Enclausuramento e nacionalização das universidades

A esta evolução social dos mestres universitários corresponde uma evolução paralela do próprio regime escolar do "Estudo Geral" e do seu lugar na sociedade. Como dissemos, o "colégio" substitui as "faculdades" e as "nações". De instituição marginal na universidade-primeva, onde tinha um carácter puramente assistencial ou hoteleiro (acolhendo alunos muito pobres, no primeiro caso, ou muito ricos, no segundo), o colégio ocupa agora o lugar de instituição central . São eles o centro do ensino e do estudo da universidade-bis. A universidade-primeva não dispunha de edifícios próprios para dispensar os seus ensinos. Os seus mestres e estudantes não frequentavam necessariamente os mesmos locais, não comiam necessariamente à mesma mesa, não pernoitavam necessariamente sob o mesmo tecto. A universidade-bis dispõe dos colégios, que reúnem, num mesmo espaço confinado, todas essas funções outrora dispersas. São um misto de caserna, hospedaria, cantina, escola e convento,_é um universo concentracionário que permite economias de escala consideráveis e favorece uma disciplina e controlo superlativos da vida privada de todos e de cada um. A sua expansão é imparável. Os colégios alugam e compram casas, tomam conta de bairros inteiros, primeiro nos arredores, depois em aldeias vizinhas. Bem depressa conseguirão que lhe sejam reconhecidos direitos de jurisdição sobre o território que ocupam.

São eles que regulamentam a circulação das pessoas e animais, que policiam as ruas e que fixam os preços das propinas e outras tarifas.

São estes estabelecimentos de tipo colegial que vão proliferar a partir do século 14. São eles que constituem a matriz institucional do aqui designámos por "universidade-bis". As "novas" universidades não têm, nem nunca tiveram, aquele carácter de formação espontânea, autónoma e gradual das Universidades de Bolonha, Paris e Oxford. São, ao invés, criaturas dos monarcas e dos papas, criadas, por vezes, a partir de embriões já existentes ou de apelos locais, mas inteiramente controladas por forças e desígnios que escapam inteiramente ao controle dos seus mestres e estudantes.

Convém, pois, não nos deixarmos iludir pela identidade dos rótulos. Entre as Universidades de Bolonha, Paris e Oxford ("universidade-primeva") e as suas homónimas ulteriores (incluindo nelas Salamanca e Coimbra), quase todas criadas por bula papal e/ou decreto real ("universidade-bis"), não há apenas descontinuidade de formas e conteúdos. Há também, concomitantemente, uma diferença sensível de escala, uma redução drástica dos largos horizontes próprios de uma comunidade nómada e internacional de mestres e estudantes para o universo confinado e semi-concentracionário dos colégios.

O termo desta evolução é a nacionalização da Universidade de Praga (1409). Todas as "nações" (como então se chamavam os agrupamentos de estudantes e mestres de uma mesma etnia) desta Universidade são, _nessa data, obrigadas a prestar juramento de fidelidade à coroa da Boémia. A divisão política instala-se. A "nação" checa rejubila. A "nação" alemã decide a debandada geral, abandonando a Universidade de Praga para ir fundar a de Leipzig. Como observa o historiador Jacques Le Goff: "É uma data na história medieval; [em Praga] nasceu uma universidade nacional; o mundo intelectual desliza para dentro dos moldes políticos". Entenda-se: para dentro dos moldes do Estado nacional. Mas esses são, como veremos, moldes demasiado estreitos para a universidade moderna.

José Catarino Soares
Escola Superior de Educação de Setúbal


  
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Edição:

N.º 81
Ano 8, Junho 1999

Autoria:

José Manuel Catarino Soares
Instituto Politécnico de Setúbal
José Manuel Catarino Soares
Instituto Politécnico de Setúbal

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