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Os Enforcados de Chicago

Editorial de Maio de 1999.

Escrevo este editorial na véspera do dia 1 de Maio de 1999. Faz agora 25 anos que preparamos este dia, não como se fosse o "1º Dia do Resto das Nossas Vidas" mas como se fosse o 1º Dia do Resto da Vida do Nosso Povo e mesmo da Humanidade.
A generosidade e a vontade de vencer era tanta que não ficamos apenas "à beira de cegar", cegamos mesmo. E a nossa cegueira fez-se bússola e a nossa vida perdeu-se à procura dos caminhos a que nós chamamos da justiça, da igualdade e da fraternidade.
25 anos depois perguntamo-nos porque levamos tão a sério esta sede de mudar o mundo. O que nos terá levado a esta necessidade de autenticidade. Porque a incapacidade de pragmatismo. Porque não abraçamos naturalmente a hipocrisia. Porque esta necessidade de dizer o que nos parece ter de ser dito? Mesmo sabendo que o que temos a dizer pode não ser o mais razoável e sobretudo o mais confortável?
Véspera de mais um primeiro de Maio. Mais um dia em que é preciso olhar e não fingir nem mentir. Cento e quarenta adolescentes a quem não se pode mentir. Tantos quantos os alunos administrativamente distribuídos este ano.
Penso e quanto mais penso maior é a vontade de fugir a esta enorme responsabilidade de ser professor. Um professor está proibido de ser pragmático e de mentir.
Maio de luto e de luta. Um 1º de Maio desgastado e que entre nós se tem transformado, ano após ano, em mais uma comemoração da feira popular do que no dia em que os trabalhadores defendem, de forma actualizada, os seus direitos. 1º de Maio que parece cada vez mais longe dos que pela sua vida e também morte, lhe deram significado simbólico.
No mínimo, demos voz aos enforcados de 1886:
Chicago, Maio de 1886. A polícia reprime as manifestações em defesa das oito horas de trabalho. Centenas de trabalhadores são presos. Dezenas de condenados a penas várias. Quatro condenados ao enforcamento.
Da complexidade do estado de alma destes quatro trabalhadores condenados à morte registe-se, pobremente, restos das suas palavras:
- Adolph Ficher: "Todos os anarquistas são socialistas, mas nem todos os socialistas são necessariamente anarquistas".
- Louis Lingg: "Desprezo-vos. Tenho desprezo pela vossa ordem, as vossas leis, a vossa autoridade baseada na força. Enforquem-me por isso."
- August Spies: " (...) o Estado em que uma classe domina e vive à custa de outras classes e chama a isto ordem, está condenado a morrer e a dar lugar a uma sociedade livre, baseada na associação voluntária, e na fraternidade universal..."
- Albert Parsons: "O governo é para os escravos; os homens livres governam-se".

Adolph Fischer, Louis Lingg, August Spies e Albert Parsons, por decisão do tribunal, foram enforcados em 1886. O seu crime, foi o de lutarem pelo máximo de oito horas de trabalho diário. Em 1 de Setembro de 1959, eu próprio, aceitei um contrato de trabalho de 64 horas semanais. Dez horas de segunda a sábado e quatro horas de trabalho ao Domingo. A estas quatro horas - das seis às 10 da manhã de Domingo - chamava-se cumprir. Só muitos anos depois percebi que "cumprir", significava cumprir o horário de trabalho estabelecido. Esta experiência pessoal, aqui tornada pública, talvez mostre como toda a ciência social dificilmente é ciência. Mas também pode mostrar como a troca de saberes, e de experiências, no campo social pode ser esmagador. E ... levanta questões como a de saber se existe alguma ciência social que não seja predominantemente política. (...) Por mim os conceitos de ciência e de cultura que me transmitiram na Universidade, estão há muito tempo no caixote do lixo. Suponho até que já devem ter dado origem a algumas "dioxinas".

As formas de escravidão têm mudado ao longo do tempo. Uma coisa não mudou: o domínio do Aparelho de Estado continua nas mesmas mãos. Razão suficiente para dizemos que este 1º de Maio não é só de luto mas de luta.

Para nós portugueses este 1º de Maio é de luto.
- é de luto porque a guerra civil em Angola continua a transformar um dos mais belos países do mundo numa imensa sepultura;
- é de luto porque depois das esperanças de libertação do povo de Timor, vemos a esperança transformada em morte e em dor, os desafios à vida foram transformados na morte certa ou anunciada.
- é de luto porque a morte e a violência são assumidas como coisa boa. Assassínio em nome dos direitos humanos. Imensa capacidade para esconder uns diabos e revelar outros. A sociedade do espectáculo - que denunciávamos há 30 anos -surpreende-nos por ser capaz de ir tão longe. Guerra e Violência do Estado sem disfarce, a não ser a mentira e a propaganda barata.

Maio de luto também pela guerra na Europa. Não só pela guerra em si, mas por todos os que sofrem com ela, e pelos precedentes que antecipam todos os que no futuro, sofrerão se esta lógica de "política externa" e de "política internacional" for por diante.

Pelo menos desde 1998, que há no Kosovo uma catástrofe humanitária. Acções de limpeza étnica do "Exército de Libertação do Kosovo" (UCK) contra os sérvios e outras minorias no Kosovo, com resposta de limpeza étnica da polícia e militares jugoslavos contra habitantes do kosovo de origem albanesa. Um conflito igual a muitos outros existentes em com diversas partes do mundo. Se o objectivo das forças da NATO fosse o de resolver este conflito, certamente que recorreria a outros meios que não aos da barbárie contra uma das partes, e de favorecimento das outras.

Mas o objectivo da NATO não tem nada a ver com a resolução do conflito entre kosovares de origem sérvia, albanesa, turca, húngara ou outra qualquer. Os camponeses pobres do kosovo, seja qual for a sua origem étnica, são apenas pobres vizinhos camponeses. Por serem pobres, estão condenados a sofrer, seja às mãos do poder da NATO, seja às mãos do poder de Belgrado. Em 1999 manifestar-se no 1º de Maio, é ainda não perder de vista a natureza de classe de todos os regimes políticos. Mas manifestar-se neste 1º de Maio, é também saber distinguir e graduar os vários tipos de inimigos de classe.
1999: 1º de Maio de luta e de luto. Procuremos que seja mais de luta que de luto. Se é de luta é bom que se definam os inimigos de classe. É importante que se reconheçam as estratégias de luta. É fundamental que se definam os objectivos a atingir.
Os inimigos de classe são conhecidos. Podem vestir-se de variadas roupagens, mas são quase todas conhecidas. A luta continua a ser entre capital e trabalho. O capital tomou novas formas e o trabalho também. Temas/desafios para discutirmos e tratarmos entre nós. As estratégias de luta dependem da consideração e das características que hoje atribuímos ao capital e a quem o serve. Nunca peço ao adversário que se adapte ao meu estilo de luta. A minha capacidade de luta, deve permitir-me adaptar-me ao estilo de luta do meu adversário. É isto que deve levar sempre um sindicalista a pensar que deve saber mais de política do que qualquer dirigente patronal. O verdadeiro inimigo de um exército não é outro exército. O verdadeiro inimigo de um exército é sempre um povo. Aprendi isto na luta contra o fascismo. Parece-me uma ideia cada vez mais válida.
Neste 1º de Maio de luto e de luta, sobretudo depois das últimas decisões dos garotos da NATO, não podemos deixar de referir algumas questões de natureza internacional. É muito provável que nos próximos anos o direito à "intervenção humanitária" seja invocada com mais frequência. Esta frequência dependerá dos interesses económicos e estratégicos dos EUA.
Hedley Bull, académico de direito internacional, dizia à cerca de quinze anos que "os Estados ou grupos de Estados que se constituem em juízes autoritários do bem comum mundial, ignorando as opiniões dos outros, são de facto, uma ameaça para a ordem mundial, e portanto para a acção efectiva neste campo". Suponho que qualquer mortal reconhece que a violação dos direitos humanos é demasiado comum. Se fosse possível resolver tais abusos recorrendo à força, não se vê como é que qualquer Estado poderia ser proibido de, a seu belo prazer, decidir atacar "legitimamente" outro Estado.
Apesar da estupidez e hipocrisia da gente que nos governa e nos governará no futuro, discutamos estas questões com os nossos alunos. É bom não esquecer que um(a) professor(a) podem ser sempre os preparadores de próximas revoluções. Esse é um dos seus poderes. Usemo-lo com inteligência. Finalmente só me falta pedir que se juntem ao Movimento dos Educadores Para a Paz. Não peço mas se sentirem vontade de se juntar, o endereço é o do nosso jornal.

José Paulo Serralheiro


  
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Edição:

N.º 80
Ano 8, Maio 1999

Autoria:

José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.
José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.

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