Página  >  Edições  >  N.º 79  >  Qualidade de Vida - Uma Problemática do Desenvolvimento da Sociedade

Qualidade de Vida - Uma Problemática do Desenvolvimento da Sociedade

A ideia de qualidade de vida aparece na literatura, como um conceito que poderá ser classificado de "sincrético", quer dizer de uma visão de conjunto, confusa e compreensiva de um todo complexo. Este todo complexo reside numa perspectiva geral da questão social e da melhoria da condição humana, sob todas as suas formas e em cada um dos sectores da existência. Esta melhoria apresenta-se pois como um critério de base servindo para definir a orientação de todo o desenvolvimento duma sociedade, como segurança face a desenvolvimentos que não respeitam certos valores humanos e como expressão duma transformação obrigatória das formas e das modalidades de desenvolvimento que conhecemos historicamente.

A qualidade de vida, enquanto elemento de análise do bem estar, aparece de alguma forma associada ao "grito de toque a reunir" de grupos e de indivíduos conscientes dos problemas sociais que temos conhecido nas últimas décadas, associados à actual opção de desenvolvimento das sociedades. A qualidade de vida é pois uma discussão de natureza económica, social, cultural e política, constituindo o seu discurso uma linha de pensamento em conflito com o discurso tradicional. Ele propõe uma nova prática - uma prática social centrada sobre a mudança.

Uma mudança que passa por múltiplos campos do bem estar como a habitação, as condições de trabalho, a saúde, a alimentação, a educação, a cultura, os modos de vida urbana, os lazeres, etc. A qualidade de vida é, portanto, um objecto multidimensional do desenvolvimento social que polariza as formas de tratar tanto um conjunto de realidades concretas imediatas e quotidianas, como o conjunto dos mais diversos problemas que se colocam a longo prazo. Os lugares de aplicação deste objectivo são de tal forma diversos que é ilusório pensar que ele pode ser plenamente realizado num período de tempo imediato.Tal como no caso da democracia, trata-se de uma realidade de identificação social sempre possível de ser melhorarada e que opera, de certa maneira, como uma prática reguladora do desenvolvimento.

É pois na dinâmica da acção social que a qualidade de vida pode encontrar um conteúdo real para a mudança da sociedade em que vivemos. Uma sociedade que, neste final de século, se caracteriza por um conjunto de transformações consideráveis que têm afectado a qualidade de vida dos indivíduos, especialmente dos que residem em meio urbano.

As grandes urbes apresentam características e situações particulares e comuns assentes num mesmo padrão de referência, profundamente marcado pela convergência típica do modelo de homogeneização dos comportamentos. Por exemplo, ao nível da cidade, por uma lado, é a utilização intensa de parcelas do território urbano que conduz à proliferação de florestas de cimento, a perder de vista, de habitações estereotipadas e edifícios de escritórios, onde predominam os canhões de betão e de vidro e, por outro, é a utilização massiva do automóvel que conduz à poluição desenfreada.

Nenhuma metrópole teve a sorte de escapar de maneira significativa a esta conjunção, que parece por agora fatídica senão - em muitos lugares - fatal.

A forma como se desenvolve o tecido urbano é hoje preocupante. Os cidadãos, porque o sentem quotidianamente, começam a tomar consciência que a convergência do elevador e do automóvel conduz a uma forma de vida urbana caótica, em que a instabilidade e o custo se tornam intoleráveis. Este sistema, devora e esteriliza o espaço, e cria um envolvimento marcado por uma poluição constante e crescente, aumentando esta de maneira exponencial à medida que a região urbana continua a crescer. É neste contexto que os habitantes começam a dar os primeiros sinais de preocupação com o problema. Tanto na cidade como na periferia começa a haver uma exigência de melhores espaços de vida e de lazer, de novos e melhores serviços de saúde, de cultura e de educação. Mas a ainda não total disponibilidade destes, bem como a sua necessária acessibilidade são elementos maiores que faltam para garantir uma parte do bem estar e da qualidade de vida das populações.

Independentemente da existência de uma ligeira oferta de bens e serviços públicos de qualidade, dos cidadãos terem mais consciência dos seus direitos e deveres socias e civícos, de se assistir a um ligeiro crescimento do rendimento médio das famílias, da melhoria do nível de instrução, do aumento da mobilidade física ou de um acesso facilitado a bens de consumo básicos, a exigência de uma melhor qualidade de vida não passa ainda de uma nova e mera aspiração. O desafio é tamanho. Os espaços de habitação e o acesso aos bens e serviços sociais de interesse público deverão ser bem diferentes. Os que hoje existem não passam nos padrões de certificação de qualidade que agora se exige para o bem estar dos indivíduos.

Compete aos vários níveis de decisão contribuir decisivamente para criar o quadro multivariável para o desenvolvimento de um melhor quadro de vida, seja na habitação, na saúde, na educação, na cultura, no trabalho ou na ocupação do tempo livre. Fazê-lo numa perspectiva de desenvolvimento durável, muito mais do que a mera criação de condições gerais de conjuntura económica, é uma obrigação dos responsáveis dos vários patamares políticos que tomam decisões. Organizar os objectivos deste quadro, numa perspectiva de harmonização das intervenções para metas que permitam responder às aspirações dos cidadãos, é o que se espera como resposta às exigências impostas pelas modificações do quadro actual. A não ser assim, as aspirações de uma melhor qualidade de vida podem muito bem ser uma meta inatingível, deixando proliferar os germes que contaminam e transformam cada vez mais a vida numa civilização de betão edificado e de catedrais de consumo gigantescas que nos leva a questionar: será que mesmo com toda a riqueza produzida não somos capazes, ou não estamos ainda preparados, para fornecer, a toda a sociedade, uma civilização de bem estar ?

Montréal, Março de 1999.

António Mendes Lopes
Centro Estudos Geográficos /Universidade de Lisboa
Instituto Politécnico de Setúbal


  
Ficha do Artigo
Imprimir Abrir como PDF

Edição:

N.º 79
Ano 8, Abril 1999

Autoria:

António Mendes Lopes
Instituto Politécnico de Setúbal
António Mendes Lopes
Instituto Politécnico de Setúbal

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo