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Progressões Fictícias & Etc...

(...de como não terá fundamento a convicção segundo a qual os alunos sabem cada vez menos...)

A convicção, mais ou menos generalizada no senso comum, segundo a qual os alunos que frequentam as nossas escolas sabem cada vez menos terá algum fundamento? O mais certo é que saibam coisas diferentes daquelas que nós sabíamos quando andávamos na escola. Isso não impede, contudo, que ao longo dos anos tenham vindo a crescer na nossa classe algumas incómodas convicções relativamente a um suposto fracasso quanto às esperadas transformações sofridas por grande parte dos alunos que fazem o percurso da escolaridade obrigatória.
E não é por acaso. Na verdade sentimos que um elevado número, senão a maioria, dos que concluem o ensino unificado com suposto aproveitamento não possuem os conhecimentos, as capacidades, e a formação global consignadas na LBSE nem dominam os pré-requisitos que lhes permitiriam enfrentar com alguma hipótese de êxito os cursos complementares e que seria legítimo esperar pelo facto de terem concluído o nono ano. Muitos revelam grandes dificuldades no acompanhamento dos exigentes programas do ensino secundário dado carecerem de hábitos de trabalho, de estudo, de disciplina intelectual, evidenciando ao mesmo tempo graves deficiências no domínio da expressão e compreensão orais e escritas, instrumentos básicos obrigatórios não apenas para o prosseguimento de estudos mas também para o ingresso na chamada vida activa. É com frustração que sentimos o seu fracasso que é também, em parte, o nosso fracasso.
Pondo de lado a maior parte dos motivos que poderão estar na origem desta situação anómala, e que são sem dúvida muitos e complexos, a convicção que fica é que tais alunos foram objecto de avaliações deficientes ao longo do seu percurso escolar. Isto quer dizer simplesmente que, para estes, o sucesso escolar não passa de um sucesso fictício. Se isto não for apenas uma impressão subjectiva é provável que haja qualquer coisa de ambíguo na forma como avaliamos, ou ensinamos, ou talvez as duas coisas. Na verdade, as nossas escolas são locais onde, para uma grande percentagem de alunos, não se cumprem os objectivos educacionais pela simples razão de que cada vez menos se dominam os conteúdos prescritos pelos programas. À primeira vista poderia parecer que avaliamos com pouco rigor ou pelo menos fazemos "vista grossa". Basta pensarmos na frequência com que se permite a transição a alunos que, à partida de uma reunião avaliativa de final de ano lectivo, apresentavam quatro, cinco ou mesmo seis níveis negativos. Mas não se trata de avaliar mal. Estou convencido de que quase todos nós avaliamos correctamente aquilo que deve ser objecto de avaliação, quer dizer, as capacidades, limitações, potencialidades, grau de conhecimento dos conteúdos e de alcance dos objectivos por parte dos alunos. Contudo, quando se trata de assumir formalmente decisões que podem levar à retenção de qualquer aluno é frequente deixarmo-nos cair numa espécie de auto-censura que nasce da insegurança própria da nossa classe. Tudo funciona na prática como se, embora avaliando objectivamente, não tivéssemos em inúmeros casos a coragem de assumir as consequências dos nossos julgamentos.
Fazem-se transitar de forma forçada os alunos devido a alguns mal-entendidos quanto àquilo que verdadeiramente está em causa sempre que se ensina e avalia em contexto escolar. Por um lado, existe uma atitude auto-punitiva da nossa parte, nascida de sentimentos de culpa por sabermos que fazemos parte de uma instituição que não é perfeita. De facto, temos a percepção, infelizmente realista, de que as nossas escolas estão muito longe de ser locais ideais de aprendizagem, das nossas falhas e limitações como professores, das insuficiências do sistema de ensino visto como um todo. Este conjunto complexo de factores leva-nos a fazer raciocínios inconscientes mais ou menos deste tipo: Se o ensino não é perfeito, o insucesso dos alunos é um indicador do insucesso da instituição escolar, ou seja, do insucesso de cada um de nós.
Temos também consciência de que nos escapam muitos factores condicionantes da aprendizagem e que por isso toda a avaliação é complexa e sujeita a erros dado estar condicionada por variáveis de ordem genética, socio-afectiva, económica e cultural. Isto leva-nos, por exemplo, a ser sensíveis ás adversas condições de vida que constituem a realidade de muitos alunos fora dos muros da escola. Finalmente, porque as constantes pressões sociais e institucionais nos vão subtilmente convencendo de que o insucesso, o abandono e o baixo rendimento escolares são exclusivamente culpa nossa e nos exigem que a máquina do ensino vá funcionando, bem ou mal.
Porque termos sistematicamente em conta tais condicionalismos e porque está fora do nosso alcance reforçar os mecanismos de apoio pedagógico, social ou psicológico, somos levados a optar pelo caminho que nos parece mais fácil, ou seja, a pretexto de não os "penalizar" e de lhes "facilitar a vida" dado tratar-se de alunos supostamente "com problemas", escolhemos aquilo que pensamos ser um mal menor fazendo-os transitar artificialmente como se de alguma maneira os quiséssemos compensar pelos pontos fracos, deles e nossos. Mas alguém poderá dizer de que modo estamos a contribuir para a formação e para o desenvolvimento pessoal e social de um aluno se subirmos um nível dois para três porque temos conhecimento da sua situação familiar, económica, ou cultural desfavorecidas?
Tais atitudes nascem também da crença, profundamente enraizada na nossa cultura, segundo a qual a defesa dos interesses dos alunos passa pela sua aprovação a todo o custo e a sua retenção representa sempre uma penalização - o que está longe de ser verdade - bem como da convicção de que avaliar objectivamente é prejudicar quando, pelo contrário, uma avaliação deste tipo, ao permitir que aqueles que não cumprem os objectivos transitem de uns anos para os outros, os incapacita de forma indelével para futuras aprendizagens.
Pensar deste modo é também adoptar uma perspectiva conflituosa e bipolar do ensino e da avaliação que foge totalmente ao espírito da LBSE e que sobretudo passa por cima desta coisa tão elementar quanto esquecida: A escola serve sobretudo para ensinar e aprender e são estas suas vertentes que devem ser objecto de avaliação em quem ensina e em quem aprende. Vejamos a contradição: propomo-nos, à partida, avaliar os saberes e as capacidades dos alunos em áreas específicas e em matérias concretas que são os conteúdos das disciplinas que leccionamos, e cujas aprendizagens pensamos serem importantes para o seu desenvolvimento. Dentro desta lógica, um nível quantitativo deveria medir o seu grau de sucesso no que respeita ao domínio destes aspectos. Mas como somos sensíveis aos factores já invocados acabamos por nos transformar igualmente avaliadores destes, exorbitando as nossas competências e adulterando o acto avaliativo. É por isso que a frieza dos números oficiais esconde um défice no que respeita a conhecimentos, atitudes e comportamentos, isto é, naquilo que se pretende, afinal de contas, com a escolaridade.
Semelhantes pressupostos tácitos, sendo reveladores da nossa confusão, levam também a que carreguemos aos ombros o peso dessas condicionantes como se fôssemos responsáveis por elas; são uma forma defensiva de mascarar o insucesso que nos assusta, e portanto o assumir uma atitude injustamente auto-condenatória e auto-protectora; vão camuflando os "podres" do sistema permitindo que a instituição "mostre serviço".
Um outro efeito secundário desta pseudo-avaliação resulta do desajuste entre as nossas intenções, ainda que inconscientes, e as mensagens recebidas pelos alunos e as suas famílias pois, para estes, um nível quantitativo positivo em determinada disciplina é um sinal de domínio dos conteúdos, e sucesso no alcance dos objectivos, isto é, de sucesso escolar. E repito, na maioria dos casos, os nossos alunos, os pais e a sociedade em geral estão enganados. Enganados por nós, evidentemente. Nestas circunstâncias, e apesar do muro de silêncio lançado à volta do assunto pelas correntes acções de formação contínua sobre avaliação, esta constitui um campo onde reina o arbítrio porque é, em grande parte, o resultado de uma manipulação que em última análise não beneficia a comunidade em geral nem os educandos em particular. De facto, as transições formais de alunos que não cumprem os objectivos previstos nos programas, ao viciarem os dados em jogo, têm consequências devastadoras nos graus de ensino subsequentes dado produzirem um efeito de "feedback" negativo sobre o próprio ensino, a aprendizagem, as futuras avaliações. Deste modo talvez seja legítimo perguntar se o papel tradicional da escola, no que ela tinha de mais característico, muito do seu prestígio e seriedade, não estarão a perder-se ou, o que é pior, se nas últimas décadas ela não se terá pouco a pouco vindo a transformar, de instituição de ensino, numa espécie de instituição de caridade. De falsa caridade, entenda-se.
Os adolescentes que hoje são nossos alunos terão de se movimentar, quando entrarem na vida adulta, numa comunidade cada vez mais exigente, especializada e responsabilizadora onde irão ser, quer queiram quer não, implacavelmente avaliados pelas suas efectivas prestações familiares, profissionais e sociais. Os seus sucessos ou fracassos, em todos os aspectos, serão ditados em grande parte pelas competências, pelos saberes, pela criatividade e espírito de iniciativa mas sobretudo pelas realizações de que, na selva competitiva que é a sociedade de hoje, consigam apropriar-se. A maneira como vão responder a esses desafios dependerá dos seus percursos prévios, sejam eles familiares, afectivos, económicos, sociais, culturais.
Os factores que conduzem à conquista e ao domínio daquele conjunto de capacidades, ou às incapacidades contrárias, são demasiado complexos para que se possa responsabilizar apenas uma instituição tão limitada como a escola pela criação de um ambiente propício à sua inculcação ou aprendizagem. Mas independentemente de se considerar que o nosso papel como educadores é pouco ou muito importante, o que é certo é que temos também uma palavra a dizer. Se acreditamos que os valores e os conhecimentos ministrados pela escola são benéficos para o desenvolvimento pessoal dos alunos e para o da sociedade no seu todo, temos que dar o nosso melhor para os defender e para que sejam apreendidos por eles. Se não for o caso, haverá que fazer um esforço de adopção de novos valores e portanto de novos conteúdos e objectivos educacionais.
Ora o que podemos fazer com propriedade e autoridade, de modo a dar um contributo ainda que modesto para o desenvolvimento, é tentar proporcionar a cada aluno um ambiente favorável ao conhecimento progressivo de si próprio, dos outros e do mundo e, por consequência, ser verdadeiros e justos no que respeita a avaliar as "performances" de cada um. E embora se possa facilmente reconhecer que, em termos de qualidade, a nossa escola tem ainda muito caminho a percorrer, não me parece que seja a falta desse ambiente a causa essencial do fracasso nas aprendizagens, do desinteresse dos alunos, da não conclusão da escolaridade obrigatória e da indisciplina. Estes problemas, que sem dúvida como cidadãos e educadores nos preocupam, têm algumas das suas causas mais evidentes, para além das condicionantes já referidas, na incompreensão social acerca do papel e da importância do ensino organizado bem como no desconhecimento quase total acerca da importância da ligação família-escola.
Tal inconsciência, que pode ser considerada simultaneamente uma das medidas, causas e consequências do nosso subdesenvolvimento como sociedade, resulta numa grande ausência de empenho e responsabilização por parte de grande número de pais no que diz respeito à educação/instrução dos filhos, o que, aliado ao comodismo que nos é próprio, leva a que muitos milhares de crianças e jovens sejam pouco menos que abandonados à sua sorte ao longo de todo o percurso escolar por quem não sabe ou não quer assumir as suas responsabilidades educativas.
Sabemos, melhor do que ninguém, que a sociedade enferma de males que se reflectem em altos custos para cada um dos indivíduos e que factores alheios à escola e à nossa vontade são determinantes para o sucesso ou o fracasso das aprendizagens. Não ignoramos que as injustiças, a miséria material, psíquica e moral, são coisas com que infelizmente há que contar. Mas o pior que a escola pode fazer tendo em vista o desenvolvimento da sociedade é agir como se fosse um órgão pretensamente nivelador das distorções e dos desequilíbrios sociais pois é no âmbito de instituições competentes para tal que é necessário criar mecanismos atenuantes das desigualdades através da assistência económica, social, familiar e psicológica.
Ao avaliar os alunos de forma tendenciosa e falsamente caritativa não só esquecemos aquilo que a colectividade verdadeiramente espera de nós como mostramos uma grande falta de respeito pelos alunos pois esquecemos um dos seus direitos - o de não ser enganados - e uma das nossas primeiras obrigações  - a de não os tratar como seres dignos de piedade pelo facto de as condições sociais em que se movimentam não serem as ideais - correndo o risco, deste modo, de perpetuar uma das causas da injustiça social e do subdesenvolvimento: a ignorância. Mais importante é que façamos despertar neles a auto-estima e a auto-confiança, bem como a ideia de que as desigualdades são coisas naturais que em grande parte podem ser ultrapassadas com o conhecimento, o empenho, e a luta persistentes. Temos de aceitar as nossas limitações e a nossa pequenez face aos problemas externos e internos que nos condicionam sem nos sentirmos culpados por causa disso. Não podemos ter a pretensão de ser a única, nem sequer a mais relevante, fonte de conhecimentos e é bom que tenhamos a humildade de olhar para a escola como o lugar onde as crianças e os jovens vêm apenas aprender "algumas coisas". Serão as mais importantes? Talvez, mas há aprendizagens essenciais para a vida de um ser humano que ela nunca lhe poderá ensinar. Por isso devemos ter a franqueza de reconhecer que o ensino oficial, em termos educativos e instrutivos, tem um peso limitado, pelo menos no que diz respeito ao ensino básico. E será bom tomarmos consciência disso para que possamos dar em quantidade e qualidade aquilo que realmente é da nossa competência, pois é justamente na medida em que relativizamos a importância da nossa instituição e da nossa função que tais aprendizagens poderão passar a ser devidamente dimensionadas e valorizadas. A avaliação abastardada a que tenho vindo a referir-me, e da qual todos temos conhecimento mas que se tornou uma espécie de tabu da nossa classe, porque não se limita a avaliar aquilo que deveria ser o único objecto da avaliação é, como tentei mostrar, nociva em termos formativos. Os alunos que ao longo da escolaridade obrigatória vão sendo avaliados sistematicamente desta forma, digamos proteccionista, para além de construírem uma imagem pouco respeitosa da escola, interiorizam vícios de pensamento que perspectivam uma visão errada da vida dado serem facilmente levados a considerar que o empenho e o esforço pessoais não compensam e que se pode conseguir o que se quer independentemente de se possuírem ou não estas qualidades. Vão-se (de)formando também na convicção, naturalmente errónea, de que aquilo que diz respeito à sua própria vida está mais dependente de factores que lhes são alheios e que não podem controlar do que da sua vontade e acção em todos os domínios. É, em resumo, uma avaliação infantilizadora porque provoca nos mais novos uma concepção fatalista da realidade.
É indiscutível, no que nos diz respeito, a urgência em alargar e aperfeiçoar o sistema dos apoios pedagógicos, instituir um ensino com meios e métodos diversificados e encontrar maneiras de responsabilizar a sociedade em geral e as famílias em particular, e não apenas a escola, pelas coisas da educação. Mas ainda é mais urgente que reflictamos honestamente na atitude eticamente reprovável e de alcance educativo desastroso que consiste em simular sucesso educativo, ignorando que tal atitude irá vitimar, mais do que beneficiar, os alunos dado que os afasta irremediavelmente do acompanhamento de aprendizagens que exigem operações mentais de nível superior.
Se se quiser abrir a escola e preparar os jovens para a vida a avaliação que deles fizermos terá que ser cada vez mais uma avaliação objectiva, uma avaliação que incida sobre os auto e hetero-conhecimentos, as capacidades, as potencialidades de cada um, independentemente de tudo o resto.

Manuel Eduardo Pires
Escola Secundária Abade de Baçal / Bragança


  
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Edição:

N.º 79
Ano 8, Abril 1999

Autoria:

Manuel Eduardo Pires
Escola Secundária Abade de Baçal, Bragança
Manuel Eduardo Pires
Escola Secundária Abade de Baçal, Bragança

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