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Que Fazer Com Esta Autonomia?

Esta pergunta tem tudo de retórica. Como acontece com toda a pergunta retórica, ela tem mais a ver com a dilação da resposta do que com a sua resolução em concreto. A utilidade da pergunta retórica é, aliás, essa, a de permitir estabelecer uma distância necessária à criação dum espaço social onde os interlocutores ensaiem o seu processo de aproximação a partir das contradições experienciadas no seu confronto com a realidade imediata da acção.
Houve tempos em que a retórica esteve ao serviço duma verdade substancial contra esta verdade imediata do quotidiano, sempre que esta verdade era socialmente perturbadora. Era precisamente a contradição da realidade imediata, num mundo dicotomizado, que justificava a necessidade da retórica, como palavra eloquente do rhetor (donde derivou reitor), a quem competia reger o mundo segundo outra realidade.
Hoje, a retórica transformou-se e tende a fazer parte da nossa realidade quotidiana, não no sentido de que a realidade da palavra substitui a realidade das coisas, mas no sentido de que a realidade das coisas está cada vez mais dependente da forma como cada um se sente mobilizado ou se deixa mobilizar para a construção dela, sendo certo que o grau de mobilização (ou de aceitação) passa em grande medida pelos mecanismos de projecção dos interesses próprios nessa realidade, mesmo que esses interesses próprios sejam interesses alheios assimilados como próprios. É aqui que a construção retórica já não dicotomiza, mas pluraliza, porque essa é a condição da participação, do acesso à palavra, do dizer a acção própria em vez do fazer a acção dita pelos outros. Se o fazer a acção dita pelos outros implica um tempo normalizado e ritualizado, um tempo da prática e da prédica como o lugar de referência da acção, um tempo em que a prática é ditada, o dizer a acção própria implica a divergência, a conflitualidade e a argumentação, isto é, um tempo de negociação e de estratégia.
É evidente que este fenómeno pressupõe a dissolução da realidade objectiva, isto é, a dum mundo organizado em relações estáveis, estruturadas e consistentes, (como era a do mundo da metafísica ou a do mundo das narrativas), que estejam para além do jogo estratégico em que se traduziu a lógica da acção no mundo contemporâneo, a qual, estimulando o protagonismo individualístico, mais expõe o sujeito individual à condição contraditória de ter de se empenhar numa acção estratégica e de ter de suprimir a estratégia, já que é esta orientação das acções que expõe o sujeito à precarização permanente, isto é, à sua própria dissolução.
A reconstrução da identidade pessoal e profissional tem, então, de superar o movimento estratégico, integrando-o num processo de produção de espaços intersubjectivos, onde a acção se defina pela interdependência, ou seja, pelo reconhecimento da necessidade dum limite à estratégia individual, que dê lugar à definição de interesses sociais. Esse é o sentido da pergunta "Que fazer com esta autonomia?"
A contradição fundamental que esta questão encerra está justamente no que fazer, quando este que fazer é, antes de tudo, um dizer...ou, melhor, um dizer-se, já que toda a acção social é um projectar-se. É por isso que a autonomia, como prática da interdependência, mediada pela Escola, é um enredo inacabável e não apenas, como se vai ouvindo dizer, uma nova modalidade de gestão com mudança de nomes e pouco mais...
Será isto, ainda, retórica? E porque não, já, política?
Porque se trata de um "enredo inacabável", continuaremos.

Manuel Matos
Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação / Universidade do Porto


  
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Edição:

N.º 78
Ano 8, Março 1999

Autoria:

Manuel Matos
FPCE, Univ. do Porto
Manuel Matos
FPCE, Univ. do Porto

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