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Dez Questões e Uma História sobre a Educação e os Movimentos Sociais na Virada do Século

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Ocupar a terra, ocupar as escolas

A politização do social, do cultural e, mesmo, do pessoal abre um campo imenso para o exercício da cidadania e revela, no mesmo passo, as limitações da cidadania de extração liberal, inclusive da cidadania social, circunscrita ao marco do Estado e do político por ele constituído. Sem postergar as conquistas da cidadania social, como pretende afinal o liberalismo político-econômico, é possível pensar e organizar novos exercícios de cidadania - porque as conquistas da cidadania civil, política e social não são irreversíveis e estão longe de ser plenas - e novas formas de cidadania - coletivas e não meramente individuais; assentes em formas político-jurídicas que, ao contrário dos direitos gerais e abstratos, incentivem a autonomia e combatam a dependência burocrática, personalizem e localizem as competências interpessoais e coletivas em vez de as sujeitar a padrões abstratos; atentas às novas formas de exclusão social baseadas no sexo, na raça, na perda de qualidade de vida, no consumo, na guerra, que ora ocultam ou legitimam, ora complementam e aprofundam a exclusão baseada na classe social.

Boaventura de Sousa Santos. Pela mão da Alice.
O social e o político na pós-modernidade.
Cortez, São Paulo, 1995:263-64

O debate sobre os movimentos sociais vem ocupando um papel preponderante nas ciências sociais desde finais dos anos 70. Intelectuais das mais diversas tendências teóricas e políticas têm abordado com frequência o estudo desses movimentos considerando que, para o bem ou para o mal, nas estratégias por eles desenvolvidas encontram-se algumas das razões que explicariam as importantes mudanças experimentadas nas formas de participação, resistência e exercício da democracia tanto no Primeiro como no Terceiro Mundo. Discutir a natureza e o caráter dos novos (e não tão novos) movimentos sociais tem se transformado, desta maneira, numa questão inelutável para todo aquele que se aventure a analisar a dinâmica da ação política no capitalismo de fim de século.
Naturalmente, qualquer revisão sobre a importante e extensa produção bibliográfica referida a esta problemática escapa aos limites da presente intervenção. Todavia, uma rápida aproximação a alguns dos temas freqüentemente desenvolvidos neste campo pode permitir-nos reconhecer que, quase com exclusividade, grande parte dos estudos realizados enfatizam (al guns deles de forma muito perspicaz e penetrante) a contribuição que os movimentos sociais estão dando, ou têm dado, para a defesa dos direitos sociais e humanos, a construção de novas formas de subjetividade, de participação e representação democrática, de exercício da cidadania, de luta emancipatória e de institucionalização do espaço público. Apesar do caráter fundamental que todas essas questões possuem para uma discussão crítica acerca dos movimentos populares, parece existir nos debates realizados uma certa tendência ao instrumentalismo: os movimentos sociais são geralmente julgados em função da realização ou não das promessas e objetivos que eles mesmos se formulam ou que outros lhes atribuem. Se para os governos conservadores os movimentos sociais quase sempre atrapalham e incomodam, para os intelectuais que os analisam eles "servem" ou "não servem.
No campo educacional semelhante atitude penetra, inclusive, nossas análises mais críticas. Argumenta-se, por exemplo, e com razão, que perante a ofensiva neoliberal o grande desafio democrático consiste na defesa e na transformação da educação pública, estabelecendo-se que os movimentos sociais devem desempenhar um papel fundamental nesta tarefa. Porém, com muito menos freqüência, nossos estudos destacam em que medida a educação pública e as instituições escolares podem contribuir, elas mesmas, na defesa e transformação dos movimentos sociais. Ou seja, o instrumentalismo nos leva a considerar que tais movimentos valem na medida em que colaboram na mudança da escola, mas, ao mesmo tempo, não nos ajuda a reconhecer a importancia de julgar também as nossas próprias instituições educativas em virtude da contribuição que elas estão tendo na consolidação ou transformação desses movimentos.
A instrumentalização dos movimentos sociais acaba conduzindo-nos por um caminho de mão única que condena a escola a uma preocupante condição de passividade: ela (sempre pura e imaculada) apenas está aí para ser transformada. Trata-se de uma questão paradoxal. Com efeito, o surgimento e expansão dos movimentos sociais parece ter (ironicamente) contribuído para transformar o nosso antigo otimismo pedagógico numa irresponsável apatia escolar. A escola, isenta sempre do pecado original, passou de ser ilimitada no seu poder a inanimada perante a mudança social. O nosso pedagogismo prometéico e voluntarista, muito freqüente não apenas nas perspectivas liberais quanto também em muitas análises de esquerda, foi transferido aos movimentos sociais com as mesmas catastróficas conseqüências estratégicas que tinha quando aplicado à esfera educacional.
Em ambas as perspectivas, a escola acaba gozando de um status negado aos movimentos sociais: ela sempre vale por si mesma. Sua existência se situa assim fora de toda controvérsia essencialista. Duvidar da necessidade histórica e política da escola pode constituir, segundo a mirada atenta de alguns pedagogos "críticos", uma heresia antidemocrática. Contrariamente, pareceria ser que os movimentos sociais e populares devem demostrar diariamente sua competência, sob o risco de perder definitivamente seu sentido.
Pretendo aqui formular algumas reflexões derivadas desta artificial dissociação entre os movimentos sociais e as instituições escolares. Tratam-se de considerações cujo desenvolvimento conceitual precisaria de um aprofundamento maior, mas que procuram estimular o debate sobre nossa compreensão crítica e nossas estratégias políticas em torno da necessária articulação entre ambas as esferas, questão fundamental em toda luta pela ampliação e radicalização da democracia .

 

Dez Questões que Abalam as Nossas Certezas

1
O pensamento instrumentalista acerca dos movimentos sociais é filho primogênito do pragmatismo individualista, e, como este, uma eficaz conquista conservadora. Significa a imposição de um mecanismo (aparentemente inocente) segundo o qual aquilo que não "funciona", "não serve", e, aquilo que "não serve", deve ser "descartado". Pessoas, instituições e utopias são submetidas, desta forma, a uma única e implacável lógica: "use e jogue fora". Não existiria, segundo essa concepção, nenhuma necessidade histórica nos movimentos populares. Fora do critério de utilidade, eles acabam perdendo a razão de ser. A marca que os caracteriza é a sua eventual permutabilidade.

2
Produto da força hegemônica do neoliberalismo e dos seus próprios erros estratégicos, a esquerda acaba sendo atravessada por esse tipo de interpretação, caindo assim numa perigosa armadilha desmobilizadora cujo efeito imediato é um progressivo esvaziamento da democracia. Uma democracia sem sujeitos, sem protagonistas, sem ganhadores ou perdedores, aparentemente sem conflito e simplesmente processual. Nesta concepção mínima, a democracia consiste apenas numa série de mecanismos administrativos, cuja responsabilidade recai num conjunto de "representantes" aos quais a sociedade delega essa função por meio de eleições periódicas. A escola imaculada e os movimentos sociais instrumentalizados são expressão eloqüente dessa democracia "sem adjetivos", tal como foi caracterizada (e idealizada) pelo intelectual conservador Friedrich Hayek. Desta forma, a escola e os movimentos populares perdem densidade social; desmancham sua conflitividade; se estilhaçam perdendo projeção histórica. Numa democracia vazia, só podem conviver pessoas, instituições e utopias vazias. Uma democracia em eterno regime de emagrecimento. Em suma, movimentos sociais light para uma escola diet.

3
A tendência à instrumentalização dos movimentos sociais e a condenação da escola a um eterno estado vegetativo formam parte de um mesmo processo: a despolitização da vida social promovida pelo neoliberalismo nesta virada de século. Submetidos a uma progressiva lógica despolitizante os movimentos sociais e a escola acabam se autonomizando um do outro, desintegrando-se o vínculo que deve uni-los numa democracia substantiva.

4
De forma específica, a despolitização da escola se traduz na sua desintegração como esfera pública. Esfera movimentos populares. onde se realiza o direito social à educação, e que, ao mesmo tempo, habilita para o exercício dos direitos humanos fundamentais: o direito ao trabalho, ao bem-estar, à participação política, à felicidade. A luta contra o monopólio do conhecimento constitui um momento central na possibilidade de realizar esses direitos. E é na escola onde se trava essa luta, embora ela supere os restritos limites das instituições educacionais. Mediante sua progressiva despolitização a escola se autonomiza dos movimentos populares, criando a ficção de uma suposta inocência das práticas pedagógicas com respeito às práticas sociais.

5
Dessa forma, é fundamental reconhecer que, além da pretendida autonomização de ambas as esferas, a escola sempre tem a ver com os movimentos sociais. A pseudo-absolvição da prática escolar com relação às práticas sociais não acaba sendo outra coisa que a forma dominante de estabelecer o vínculo específico entre elas. Uma escola inanimada perante a mudança social é uma escola comprometida com a conservação da ordem, com o mascaramento das condições de miséria e exploração existentes em nossas sociedades. Se a escola não contribui para o fortalecimento dos movimentos populares, ela acaba contribuindo para seu enfraquecimento. "Não ter nada a ver com os movimentos sociais" é uma forma específica de ter muito a ver com eles.

6
Os movimentos sociais estão contaminados de política. A escola também. O problema reside em discriminar e reconhecer o conteúdo da política que os contamina. Não existe pureza nos movimentos populares. Não existe pureza na escola.

7
Os movimentos sociais estão contaminados de conflito, atravessados de problemas éticos, de medos e esperanças, de utopias inconclusas, de lutas inacabadas. A escola, tentando silenciar esses conflitos, fala sobre eles. Não se trata, então de "abrir as portas das instituições escolares" aos problemas da vida social. Trata-se de transformar radicalmente a forma mediante a qual, tentando silenciá-los, a escola fala sobre eles. Não se trata de adicionar ou sobrepor discursos "alternativos" sobre o social. Trata-se de ganhar a batalha discursiva que se trava dia a dia na escola sobre o próprio conteúdo do social.

8
Temos que sujar a escola de vida social. Sua pretensiosa profilaxia apenas expressa nossa irresponsável miopia perante a injustiça, a discriminação e a violência da exclusão.
Injustiça, discriminação e violência presentes naqueles que estão nas nossas instituições e naqueles que a sociedade condena ao exílio da escola. Não sujar a escola de vida social é condenar-nos, nós mesmos, ao exílio do silêncio. E o exílio do silêncio é a linguagem das sociedades derrotadas e sem esperança.

9
A escola pública é o espaço privilegiado da luta pela democratização do conhecimento, a esfera da sua socialização e produção. Mas não o único. Devemos reconhecer e compreender as práticas educacionais que os próprios movimentos sociais desenvolvem de forma autogestionária. As escolas dos sindicatos e a importante experiência pedagógica do movimento dos sem-terra são bons exemplos de práticas alternativas e, também, da necessidade de ampliar o horizonte da nossa concepção acerca da educação pública para além da escola estatal.

10
Entre os movimentos sociais que mais impacto político têm tido nas lutas democráticas dos últimos anos, destaca-se o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), referência fundamental da resistência popular ao neoliberalismo no Brasil e na América Latina. O sucesso (provisório, ao menos) das lutas dos sem-terra não pode - todavia ser atribuído, apenas, aos objetivos gerais do movimento ou aos princípios que orientam seu amplo programa de reforma agrária.

A formulação de uma série de objetivos políticos definidos na perspectiva de uma sociedade sem exploradores, onde a terra deve ser um bem de todos distribuído (junto com a renda e a riqueza) de uma forma justa, onde a realização da justiça social se concretiza no combate a todas as formas de discriminação e exclusão e na construção de valores humanistas e socialistas, tem sido - sem dar lugar a dúvidas - um fator fundamental na definição de um movimento que lutando pela terra, luta por uma sociedade igualitária. Contudo, resulta evidente que a simples manifestação desses princípios não parece condição suficiente para explicar o impacto que as reivindicações dos sem-terra estão tendo na sociedade brasileira, assim como a pouco dissimulada preocupação que as elites econômicas e políticas manifestam com relação às ações do movimento.
A força dos trabalhadores sem-terra, acredito, está na força da sua estratégia: as ocupações. Elas são um ato de rebeldia, de desobediência civil. Constituem a recuperação legítima daquilo que foi expropriado mediante a força brutal da negação do direito social à terra, do direito humano à vida. Ocupar a terra é recuperar aquilo que foi roubado, aquilo que nos é negado. Devemos aprender a lição que dia-a-dia nos brinda a luta desses milhares de trabalhadores e trabalhadoras sem-terra, dos seus filhos e filhas, dos milhares de camponeses e camponesas que lutam pela sua dignidade e por recuperar a nossa dignidade social perdida. Ninguém pode permanecer indiferente perante as ocupações: elas obrigam a tomar partido, a assumir uma posição. Nas ocupações se está a favor daqueles que ocupam ou daqueles que resistem à ocupação. Como afirma José de Souza Martins: "na verdade a questão agrária engole a todos e a tudo, quem sabe e quem não sabe, quem vê e quem não vê, quem quer e quem não quer" (citado em Fernandes, 1996: 29). (E aqui, como sempre, as palavras que usamos revelam a posição que assumimos. Daí que, para o governo, por exemplo, os sem-terra "invadem" a propriedade alheia, quer dizer "usurpam", "roubam". O governo tenta assim mascarar, por trás da sua defesa a uma ilegítima lei de propriedade, a arbitrariedade dos verdadeiros usurpadores: os senhores feudais desta nova virada de século, os grandes latifundiários de uma sociedade dividida, desintegrada pela existência de milhares de famintos).
Ocupar as nossas escolas é uma forma de contribuir com essa luta. Uma forma de recuperar também aquilo que nos é expropriado mediante a sua privatização e despolitização cotidiana. A marcha pela terra e a marcha pela escola pública se percorrem pela mesma trilha. Formam parte da mesma luta contra a exclusão, da mesma pedagogia da esperança, assumindo assim o nosso direito inalienável à resistência, à indignação e à desobediência.

 

A história... (SEM MORAL)

Na manhã do domingo, 17 de novembro de 1996, despertei, como todo domingo, disposto a dedicar o tempo que sempre me falta para a leitura do jornal. Ainda meio adormecido fui pegar a Folha de São Paulo que aparecia indiscreta por debaixo da porta da sala. Confirmando a inexorável evidência de que toda porta que deve estar aberta encontra-se sempre fechada e sua chave perfeitamente escondida, decidi desafiar os mais elementares princípios da física tentando fazer passar a exageradamente volumosa Folha dominical pelo delgado (exageradamente delgado) espaço que separa o limite da porta do inicio do chão. A luta foi cruenta e, como acontece todo domingo, os Classificados saíram vitoriosos: ou encontrava a forma de pulverizar o jornal ou abria a porta. Antes de procurar a chave (e como demostrando certa dignidade perante os ostentosos classificados) dei uma rápida olhada nas amassadas manchetes que se revelavam incompletas depois dos meus não muito convincentes esforços. Uma delas chamou minha atenção embora por um motivo trivial "Brasil tem 50 milhões de clandestinos". Enquanto procurava a chave pensava quando venceria meu visto de residência temporário, questão que me levou à apavorante dúvida de se já não me encontrava entre os milhares de "clandestinos" que vivem no Brasil. Devo confessar que as matemáticas nunca foram para mim um entretenimento apaixonante. Todavia, e apesar de continuar sob efeito da torpeça matinal que, como sempre, atrapalhava minhas aspirações de leitor madrugador, uma simples e inconsciente operação aritmética começou a apagar a disparatada preocupação de estrangeiro indocumentado: 50 milhões é um terço da população brasileira!, pensei. Não podia ser possível que, no Brasil, morassem tantos estrangeiros em condições de ilegalidade. Alguma coisa estava errada: ou a minha conta, ou a manchete ou a minha interpretação sobre o uso do termo "clandestino". Conhecendo as limitações idiomáticas que possuo, decidi consultar o Dicionário Aurélio, ferramenta fundamental na luta contra minha ignorancia lingüística.

Clandestino {Do lat. clandestinu.) Adj; Feito ou realizado às ocultas: encontro clandestino; Ilegal, ilegítimo: partido clandes; S.m.; Pop. Indivíduo que se introduz subrepticiamente em navio, avião, trem, etc., para viajar sem documentos nem passagem; V. bookmaker

As definições confundiram ainda mais a já intrincada manhã de domingo. Decidi que o melhor seria consultar a matéria. O espanto foi me invadindo na medida em que avançava na leitura: os milhares de "clandestinos" não eram, naturalmente, estrangeiros. Eram brasileiros que moravam, naturalmente, no Brasil. Sua "clandestinidade" resumia-se na aterradora evidência de que eles possuem uma incontestável existência física, porém não uma existência legal. Os censos os registraram (provavelmente de maneira fortuita), mas, "legalmente", nunca nasceram, não possuem nome "oficialmente" reconhecido, o seu nascimento nunca foi registrado. A sua morte tampouco o será.
A matéria informava que, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), em 1994, nasceram 991.000 brasileiros "clandestinos". Aplicando a definição do Aurélio, poderíamos dizer que, nesse ano, 991.000 brasileiros introduziram-se sub-repticiamente no Brasil. Voltei ao dicionário. Procurei "sub-reptício" e "sub-repção".

Sub-reptício (Do lat. subrepticiu); Adj; Obtido por meio de sub-repção, ilicitamente; fraudulento: depoimento sub-reptício; Feito às ocultas; furtivo: tráfico sub-reptício de drogas.

Sub-repção (Do lat. subreptione)S. f.; Omissão ou alteração fraudulenta de fatos que iriam influir em determinadas medidas de ordem moral, legal, disciplinar, etc.: A sub-repção leva a conclusões enganosas: Ato de alcançar uma graça ou benefcio por meios sub-reptícios; Roubo, furto, subtração.

Em alguns estados, segundo a mesma fonte, a "clandestinidade" é esmagadora: no Maranhão 81,96% da população não tem registro de nascimento, no Piauí 72,07%, no Acre 68,38%, no Amapá 66,59%, em Roraima 66,23%. Em Alagoas, Pernambuco, Rio Grande do Norte, Ceará, Pará e Rondônia mais da metade da população não existe, apenas não existe, "legalmente". Pesquisas recentes revelaram que, em algumas cidades de Alagoas, por exemplo, há oito anos não nasce nem morre "oficialmente" ninguém; apesar de que a taxa média de crescimento anual difundida por órgãos "oficiais" é de 2,18 % (1980-1991), de que a esperança de vida ao nascer é, na região do Nordeste, de 55,64 anos (1984), e de que, também "oficialmente", a probabilidade de morte antes de completar um ano é de 105,14 por cada 1.000 crianças nascidas.
50 milhões de brasileiros sub-reptícios: "ilícitos", "fraudulentos". Estão aí, mas nunca nasceram para o Estado. Pode ser que alguma vez alguém os registre em troca de um voto. Para votar é preciso existir. O corrupto coronel da região dará existência a alguns deles, votará por eles. Serão também "clandestinos" para a nossa fraca e degradada democracia. Se isso não acontece, nunca morrerão "oficialmente". Se para votar é preciso existir, para morrer é preciso ter nascido. No Estado de Pernambuco, uma de cada três crianças que morrem é enterrada sem o (re)conhecimento oficial em cemitérios que são como elas: "clandestinos". Para a implacável frialdade da estatística sobre mortalidade infantil, essas crianças não morreram porque nunca nasceram. A estatística sobre mortalidade infantil no Brasil é "oficialmente" certa, socialmente falsa.
O que tem a ver nosso relato com os movimentos sociais e a educação? Uma resposta trivial poderia ser que a escola deve permitir que esses milhares de excluídos superem sua forçada "clandestinidade", promovendo a organização e a mobilização popular contra os mecanismos históricos que produzem a miséria e a marginalidade das maiorias. O argumento, sendo relativamente válido, nos conduz a uma interpretação limitada acerca das conseqüências político-educacionais da história relatada. Limitação que se expressa numa pretendida externalização e reificação dos problemas sociais: eles acabam ficando sempre fora dos nossos assuntos cotidianos. Na perspectiva do já citado pragmatismo individualista, a problemática dos "clandestinos" é motivo de preocupação apenas para os próprios "clandestinos". O enfrentamento das causas que produzem a "clandestinidade", também. Nós, pessoas "legalizadas", só podemos aconselhar-lhes o auxílio medicinal de uma educação supostamente emancipatória... e reclamar, naturalmente, ao Estado para que a leve à prática.
A questão, acredito, é mais complexa. A "clandestinidade" envolve a todos, e como tal deve ser interiorizada pela escola. A negação do direito a um nome oficialmente reconhecido (negação que é muito mais profunda que a ausência de um registro formal nos cartórios), é também a negação do nosso próprio nome, dos nossos direitos humanos e sociais, da nossa própria condição de cidadania. A escola tem muito a ver com isso, não apenas na medida em que ela atende às necessidades dos excluídos, mas também na medida em que se transforma num espaço social onde se constrói uma ética pública, integradora e igualitária.
Ética que nos obriga a sentir muita vergonha quando lemos nos jornais, por exemplo, as cotidianas marcas da miséria e da dualização estrutural que atravessam nossas sociedades. Uma vergonha que politiza nossas escolas e as práticas pedagógicas. Uma indignação que nos faz sentir o desejo incontrolável de continuar lutando para mudar a nossa história.

Pablo Gentili
Universidade do Estado do Rio de Janeiro / UERJ
Publicação por permuta com "Educação em Revista; III - nº 3 - 12.98.

* Capítulo do livro Identidade Social e a Construção do Conhecimento organizado por Luiz Heron da Silva, José Clovis de Azevedo e Edmilson Santos dos Santos (Prefeitura Municipal de Porto Alegre, Secretaria de Educação, 1997).

 

BIBLIOGRAFIA

IBGE, Indicadores Sociais. Uma análise da década de 1980. Rio de Janeiro, 1995

Fernandes, B. M. MST: formação e territorialização. Hucitec, São Paulo, 1996.

Gentili, P. (org ) Pedagogia da exclusão. Crítica ao neoliberalismo em educação. Vozes, Petrópolis, 1995.

Hayek, F. A. Los fundamentos de la libertad. Unión Ed., Madri, 1991

MST. Programa de Reforma Agrária. São Paulo, 1996.

Oliveira, F de. Estado, sociedade e movimentos sociais no limiar do século XXI. FASE, Rio de Janeiro, 1994

Silva, T. T. da. Territórios Contestados. Vozes, Petrópolis, 1995

Silva, T. T. da & P. Gentili (orgs ). Escola S.A. Quem ganha e quem perde no mercado educacional do neoliberalismo. CNTE, Brasília, 1996

Souza Santos, Boaventura de. Pela mão de Alice. O social e o político na pósmodernidade. Cortez, São Paulo, 1995.

Stedile, J. P. & Frei Sérgio. A luta pela terra no Brasil. Scritta, São Paulo, 1996.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 78
Ano 8, Março 1999

Autoria:

Pablo Gentili
Laboratório de Políticas Públicas, Univ. do Estado do Rio de Janeiro, UERJ, Brasil
Pablo Gentili
Laboratório de Políticas Públicas, Univ. do Estado do Rio de Janeiro, UERJ, Brasil

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