Página  >  Edições  >  N.º 77  >  Educação e Memória

Educação e Memória

Escrito sob o signo da comemoração do cinquentenário da Declaração Universal dos Direitos do Homem, este artigo procura levantar algumas interrogações sobre a importância de manter viva a referência a determinadas datas históricas. Existem de facto datas-estrela, conforme a expressão feliz de Walter Benjamim, elas evocam a memória dos dias que fizeram a diferença. O dia 10 de Dezembro de 1948 é sem dúvida uma dessas datas cintilantes.
Em 1948 a humanidade acabava de acordar do pesadelo nazi, essa ferida para sempre inscrita na nossa memória e na nossa cultura. Os terríveis acontecimentos que marcaram a segunda guerra mundial tornaram a cultura ocidental menos segura em relação às certezas que vinha acumulando ao longo dos séculos. Todavia, a experiência dramática vivida por milhares de seres humanos durante o nazismo não atingiu apenas uma cultura em particular. Foi todo o sentido de cultura e de humanidade que ficou definitivamente posto em causa com essa experiência. Afinal, como lembram persistentemente muitos autores desta última metade do século, a cultura, só por si, não nos resguarda da barbárie. O que nos leva a reconhecer que a humanidade é acima de tudo um valor, um ideal a atingir, conforme o sublinha o texto aprovado pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 1948.
Em termos de humanidade, nada está garantido à partida. A consciência deste facto convoca-nos para o exercício de uma responsabilidade pessoal fundada numa memória social critica e activa. Precisamente o tipo de memória que a educação, enquanto lugar de emergência de vontades de futuro, deverá promover. Porque, um futuro fundado sobre a ignorância e o esquecimento, como o de certos tecnocratas, não tem nada de humano (Reboul 1992). A vontade de futuro, que a educação deve despertar, alimenta-se da promessa de dias diferentes e mais belos, ao mesmo tempo que se vai apoiando em indicadores positivos muito concretos que nos encorajam a prosseguir tentando, ainda que nada esteja garantido. O fatalismo é, como sabemos, contrário à razão pedagógica. Mas é a memória de certos acontecimentos que nos mantém avisados e atentos. As recordações tornam-nos mais lúcidos e menos vulneráveis ao efeito tranquilizador das promessas. Neste sentido, viver a memória como responsabilidade, não significa imobilismo ou desistência. Significa, pelo contrário, a consciência de que é preciso empenharmo-nos pessoalmente na realização da diferença desejada.
É certo que não podemos voltar atrás no tempo e reparar o irreparável, mas temos a obrigação ética de interrogar o acontecido e fazer justiça à memória dos que sentiram na carne e na alma a crueldade dos homens. Porque, não o esqueçamos, o pesadelo que temos em referência não foi provocado por nenhuma catástrofe natural como essas que neste momento atingem os povos da América Latina e relativamente às quais nos sentimos irremediavelmente impotentes. O pesadelo de que falamos foi provocado pelos próprios homens. E a indiferença, a ignorância consciente, é também uma forma de pactuar com o esse tipo de sofrimento humano. A ideia de identidade humana que a Declaração Universal procura evidenciar radica no reconhecimento de que a humanidade é, simultaneamente, um direito e uma tarefa de todos os homens. Porque para lá das marcas físicas e culturais que caracterizam a magnífica diversidade de modos de ser humano no mundo, existe um traço comum que sublinha a identidade humana e que se prende com o enigma da subjectividade de que cada pessoa dá testemunho. É, precisamente, a necessidade de fazer justiça a esse enigma que nos leva a viver a memória como responsabilidade.
Contudo, o vínculo a uma memória comum, a uma identidade universal, não pode anular um outro tipo de memória vital também para a identidade dos homens e das comunidades. Falo da memória ligada aos espaços físicos de pertença, aos lugares onde se nasce, onde se dorme, onde se come, onde se ama e se sofre. Falo, pois, do tipo de memória que enraíza o homem numa determinada cultura e, deste modo, ajuda a estreitar os laços que tecem a identidade colectiva. Estamos perante uma conciliação entre o ideal do romantismo de fidelidade a uma tradição e o ideal iluminista de afirmação da autonomia racional do homem. O humano define-se tanto pela capacidade de enraizamento a um lugar e a uma cultura, como pela capacidade de distanciamento e de critica em relação à natureza e a tudo quanto a tradição lhe apresenta como natural. Julgo que é na promoção e na gestão deste equilíbrio, entre a mensagem do romantismo e a mensagem da modernidade, que se joga o papel da educação. Nesta medida, a lição a tirar das datas-estrela, prende-se não só com a necessidade de preservar a referência a um património cultural comum mas também com a ideia de que é possível interromper o curso da história e mudar de rumo quando tal se afigura necessário. Como disse, a educação deve manter o passado vivo, mas só o conseguirá alimentando o exercício de uma memória prospectiva e critica, consolidada no diálogo entre diferentes modos de recordar. O passado pode então tornar-se presente, ajudando a despertar consciências capazes de se deixarem afectar pelo trágico dos acontecimentos.

Isabel Baptista
Universidade Portucalense


  
Ficha do Artigo
Imprimir Abrir como PDF

Edição:

N.º 77
Ano 8, Fevereiro 1999

Autoria:

Isabel Baptista
Universidade Católica, Porto
Isabel Baptista
Universidade Católica, Porto

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo