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O primado do pedagógico

1º andamentoTorna-se cada vez mais frequente, no plano das orientações e decisões educativas veiculadas pelos órgãos superiores da administração escolar, a invocação do critério de prioridade pedagógica como sendo a base de referência que deve presidir aos juízos sobre as decisões e práticas aplicáveis ao domínio da acção educativa.
Estamos, evidentemente, no plano lógico, face a um discurso paradoxal, do género do que ocorre, por exemplo, na expressão "tens que ser autónomo", já que a administração, ao mandar que se deve dar prioridade ao pedagógico, está a anular essa mesma prioridade, como a autonomia se anula no preciso momento em que é imposta. Esta contradição lógica é, porém, insanável, porque é inerente a todos os enunciados normativos que visam compatibilizar o exercício da autoridade com autonomização pedagógica. O que aqui nos interessa, entretanto, não é o plano da lógica pura, mas o plano semântico do discurso, enquanto portador de significados que pretendem criar sentidos e, consequentemente, criar disposições para a acção.
Ora, o plano semântico do discurso oculta a própria contradição lógica logo que a ordem da sua interpretação, que é a da criação de significado, remeta para os seus destinatários a definição do sentido. É, assim, importante para a restituição do sentido do discurso da prioridade do pedagógico sobre o administrativo, atentar em quem são os destinatários visados, bem como em que contexto se espera que o discurso actue, porque contexto e destinatários constituem uma unidade interpretativa indissociável da própria legitimidade do discurso.
A quem se destina, então, o discurso da prioridade do pedagógico sobre o administrativo? Aos professores, antes de mais, porque são eles os elos determinantes da cadeia administrativa que deve assegurar o processo de autonomização do pedagógico. Ao constituí-los como destinatários privilegiados da mensagem, o discurso do primado do pedagógico liberta-os, simbolicamente, da própria cadeia que o discurso representa, induzindo que aí não há cadeia administrativa: onde há é em tudo o que entrave a acção para a inovação, todo esse mundo de papel em que os mangas de alpaca se comprazem. O primado do pedagógico sobre o administrativo visa, então, ser percebido pelos professores como o reconhecimento, por parte do poder, da consagração de uma ordem de competências profissionais a eles reservada, como foi reclamado, desde sempre, pelos sectores críticos da educação e pelas correntes que vêm preconizando a actividade docente como um trabalho de profissionais reflexivos.
Que esse reconhecimento corresponda, de facto, ao que caracteriza o pensamento crítico, enquanto manifestação duma utopia realizável na ordem do conflito, que é a ordem da denúncia, eis o que é problemático no discurso do primado do pedagógico. Num contexto de reforma educativa, onde os critérios são, eminentemente, políticos e administrativos, a pedagogização dos actos da administração torna-se essencial ao exercício da autoridade política, sobretudo quando esta pretenda coonestar-se com a colaboração dos próprios administrados. Como o processo de reforma educativa ameaça eternizar-se, até porque os problemas sociais são cada vez mais transferidos para a escola, a pedagogização do administrativo apresenta-se como uma via de eleição para travestir de autonomia pedagógica o que é resultante dum défice estrutural da autonomia política, confrontada com a alegada falta de alternativas no mundo contemporâneo.
Daí ao conformismo militante, é sempre a direito...

Manuel Matos
Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação / Universidade do Porto


  
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Edição:

N.º 76
Ano 8, Janeiro 1999

Autoria:

Manuel Matos
FPCE, Univ. do Porto
Manuel Matos
FPCE, Univ. do Porto

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