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A Universidade: espécie rara, sempre em risco

(quarto texto de uma série de seis)

No artigo anterior (cf. "A Página", Dezembro de 1998) iniciámos a caracterização do "método da veracidade a priori". A caracterização ficou a meio, pelo que importa completá-la quer pela positiva, dizendo em que consiste tal método de superar a dúvida, quer pela negativa, dizendo em que é que ele se distingue tanto do "método da autoridade" como do "método da investigação científica". E mais não diremos acerca de cada um dos métodos de fixar a crença. Em vez disso, partiremos do pressuposto de que deles terá já sido dito o suficiente para permitir a qualquer leitor contextualizar adequadamente os dois problemas a tratar nos dois artigos finais - o "problema de Peirce" e o "problema de Humboldt", como me propus chamá-los- de cuja solução, espero, resultará claro qual a razão de ser e a pertinência do título escolhido para esta série de artigos acerca da universidade.

1. Apraz à razão, logo é real

O "método da veracidade a priori" é um método que privilegia aquelas hipóteses que são "aprazíveis à razão", sem cuidar, porém, de indagar experimentalmente se as suas possíveis consequências estão (ou não) de acordo com os factos pertinentes. Em virtude deste elemento hedonístico, o método apriorístico faz lembrar o trabalho dos artistas.
A analogia, embora instrutiva, é grosseira, já que o propósito da arte (pelo menos, o seu propósito primordial ou mais genuíno) não é o que consiste em superar a dúvida e fixar a crença acerca do que é real. Se entendermos por "real" aquilo que nos afecta (e a outros existentes) segundo processos regulares (e.g. a gravitação, a radiação solar, os sonhos, a linguagem idiomática), independentes das nossas preferências e opiniões, mas cuja estrutura e "modus operandi" se furtam amiúde a uma explicação satisfatória, mesmo quando já sabemos proceder à sua descrição a traço grosso (e.g. a patologia viral identificada pela sigla S.I.D.A) então, podemos dizer que o "método da veracidade a priori" é um método que faz da investigação do que é real algo de similar ao desenvolvimento do "bom-gosto", em domínios como a música, a pintura, a arquitectura, entre outros.
Sabe-se, porém, como o "bom-gosto" é omnívoro, culturalmente diferenciado e volúvel mesmo quando circunscrito a uma única àrea civilizacional. Por isso, não se estranhará que a história da filosofia metafísica, domínio de excelência do "método da veracidade a priori", nos forneça o espectáculo de uma empolgante série de debates em que os participantes, porém, raramente chegam a acordo.
Não raro, aliás, a controvérsia em torno de um problema metafísico esmorece ou chega mesmo a extinguir-se, não por via de um acordo resultante das virtudes intrínsecas do "método da veracidade a priori", mas depois do "método da veracidade a posteriori" - como também poderíamos designar, por contraste, o método da ciência- ter sido chamado a pronunciar o seu veredicto.

2. Veracidade a priori versus veracidade a posteriori

A diferença entre os dois métodos pode ser ilustrada com a ajuda de dois problemas de explicação: um, muito antigo, associado sobretudo à obra de Platão; o outro igualmente antigo mas remoçado graças aos esforços de muitos cientistas actuais- um dos quais, o astrofísico Carl Sagan, recentemente falecido, muito contribuíu também para o divulgar junto do público ao conferir-lhe um forte conteúdo ético e até um matiz épico-maravilhoso.
Seja, então, a "teoria da transmigração das almas" de Platão, por muitos considerado o maior filósofo metafísico (opinião que subscrevo). Para Platão, havia que explicar o facto de sabermos não só muito mais do que aquilo que nos é ensinado, mas também, mais crucialmente, muito mais do aquilo que poderíamos ter aprendido, em tempo útil, por nossa própria conta e risco. O problema foi magistralmente encenado no "Menon". Nesse dialógo platónico, um jovem escravo- que nos é descrito como um "patego" anódino, sem nada de particular que o distinga dos outros escravos ao serviço de Atenas, mas desenvolto e fluente no idioma ateniense - procede à resolução de um problema geométrico subtil, sem nenhuma instrução prévia em geometria, apenas guiado, na circunstância, pelas suas intuições e pelas perguntas de Sócrates.
Aprazia a Platão pensar que a proeza intelectual do escravo não teria explicação válida, a menos que se admitisse que ele já tinha aprendido os teoremas pertinentes da geometria numa encarnação anterior. Se assim fosse, raciocinava Platão, aprender seria, afinal, recordar os conhecimentos indeléveis adquiridos pela nossa alma imortal no decurso das suas vidas anteriores - um processo de rememoração designado por "anamnese" - mas soterrados no fundo da memória carnal da sua enésima vigiliatura terrena. Ensinar, pelas mesmas razões, seria ajudar a desentranhar tais conhecimentos, à maneira de uma parteira que ajuda um bébé a nascer, tal como no interrogatório que Sócrates fez ao jovem escravo.
A solução alternativa que a ciência comtemporânea está hoje em condições de sugerir para o problema de Platão será, talvez, menos aprazível (sobretudo para quem acredite na imortalidade da alma) do que aquela que o próprio Platão nos oferece. Em contrapartida, é uma solução muitíssimo mais robusta ou mais verídica, porque capaz de sobreviver ao confronto experimental e crítico com os factos pertinentes - sem, no entanto, deixar de fazer justiça à assombrosa perspicácia de Platão. Com efeito, sabemos hoje, graças ao avanços da biologia molecular, que o genotipo de cada ser humano encerra um prodigioso acervo de informações adquiridas durante o processo de evolução e selecção natural que conduziu à emergência da nossa espécie; ele próprio um episódio recente no processo geral de evolução e especiação da vida no nosso planeta iniciado há mais de 3,6 biliões de anos. Substitua-se, pois, memória genotípica da espécie humana ou genoma humano a "alma imortal", por um lado, e transmissão genética a "transmigração das almas", por outro, e estaremos mais perto da verdade do que Platão alguma vez esteve - embora tivessem sido necessários mais de dois mil anos e um aturado labor investigativo para podermos entender melhor (e corrigir), pelo método "a posteriori" da ciência, a sua bela teoria da anamnese.

3. O confronto com os factos

O segundo exemplo remonta ao século IV a.C, quando o filosófo Metrodorus (de Kios) afirmou que "tomar a Terra como o único mundo povoado no espaço infinito é tão absurdo como asseverar que num campo inteiramente semeado de milho apenas um grão germinará". Durante mais de dois milénios, a proposição de Metrodorus permaneceu no estado típico daquelas asserções que a alguns filósofos (e a alguns cientistas também) apraz considerar como "necessáriamente verdadeiras", ou verdadeiras "a priori", por aplicação do chamado "teste da inconcebilidade da proposição contrária" - o teste preferido dos filósofos metafísicos. Quanto à veracidade real da proposição, a que depende não da sua razoabilidade mas do veredicto da experiência, por confronto meticuloso das predições ou retrodições que dela se podem derivar com os factos pertinentes de observação, nunca foi (nem, aliás, se vê como poderia ter sido) assunto que merecesse séria consideração, até ao século passado. Desde então, muita coisa mudou neste particular, graças ao grande desenvolvimento da astronomia e da astrofísica, aos poderosos rádio-telescópios que lhes servem de base técnica de observação e aos avanços da astronáutica. Hoje, para muitos cientistas, a proposição de Metrodorus afigura-se não apenas passível de teste empírico na sua forma original, mas também susceptivel de ser reformulada em termos mais restritivos e empolgantes: "haverá vida INTELIGENTE fora do planeta Terra"?

4. Combinações instáveis

Actualmente estão em curso sete grandes projectos de investigação astronómica dedicados a responder a esta questão - os chamados projectos SETI ("search for extraterrestrial intelligence") - subsidiados por fundações e sociedades científicas sem fins lucrativos e logisticamente apoiados por algumas universidades.
Os projectos SETI partem de duas hipóteses. A primeira postula que o desenvolvimento da vida é uma consequência NÃO excepcional dos processos físicos que ocorrem em ambiantes adequados - neste caso, em planetas similares à Terra. O corolário é o de que, existindo bilões de estrelas na nossa galáxia e bilões de galáxias no Universo, deverão existir planetas tipo Terra, onde a vida deverá ser comum. A segunda hipótese postula que, em alguns desses planetas, pelo menos uma espécie desenvolverá modos de inteligência científica e uma cultura tecnológica. O corolário é o de que tais seres terão curiosidade em procurar outras formas avançadas de vida inteligente noutros lugares do universo e que emitirão sinais para o espaço sideral com esse objectivo. Se os sinais forem electromagnéticos e tiverem uma assinatura artificial reconhecível por nós, deveria ser possível estabelecermos contacto e até, quem sabe, trocarmos informações.
À primeira vista, estas hipóteses parecem filhas do "método da veracidade a priori" ou saídas directamente de um romance de ficção científica. Mas essa impressão atenua-se perante alguns factos. Observações astronómicas recentes detectaram 13 sistemas planetários orbitando à volta de estrelas semelhantes ao Sol. Se nenhum deles albergar planetas tipoTerra, não há razões para cessar a busca. As estimativas correntes mais conservadoras apontam para 10 milhões de sistemas planetários só na nossa galáxia, pelo que não é improvável que alguns alberguem planetas do tipo do nosso. A insistência dos investigadores SETI neste critério tem uma base factual sólida. A presença de OH2 parece ocorrer só em planetas do tamanho e da massa da Terra e ser um prérequisito para organismos semelhantes aos terrestres. A vida evoluíu rápidamente na Terra: 1 bilião de anos volvidos sobre a sua formação, há 4,6 biliões de anos, já os seus oceanos regurgitavam de seres unicelulares. A primeira hipótese parece, pois, ter pernas para andar. Não se dirá o mesmo da segunda, por razões que não podemos examinar aqui.
Mas ainda que essas objecções teóricas pudessem ser cabalmente respondidas, as dificuldades práticas da SETI são imensas. Mesmo os seus maiores entusiastas reconhecem que o êxito da busca depende não só do número real de civilizações tecnológicas da nossa galáxia mas também das suas técnicas e estratégias de transmissão. Mesmo que o número de tais civilizações fosse de 1 milhão (a estimativa é de Sagan) e que utilizassem um sinal de banda estreita (1hertz ou menos) num único comprimento de onda, "a busca é comparável à procura de uma agulha de 5 cm num palheiro 35 vezes maior do que Terra" (Lemarchand, Scientific American, Vol. 9, nº 4, 1998). Em suma, encontrarmos aqui uma singular mescla de três (dos quatro) métodos de fixar a crença que passámos em revista: o "método da veracidade a posteriori" (ou método da ciência), o "método da veracidade a priori" e o "método da tenacidade"- uma combinação muito instável.

José Manuel Catarino Soares
Escola Superior de Educação/ Setubal


  
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Edição:

N.º 76
Ano 8, Janeiro 1999

Autoria:

José Manuel Catarino Soares
Instituto Politécnico de Setúbal
José Manuel Catarino Soares
Instituto Politécnico de Setúbal

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