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Carlos Alberto Torres em Entrevista

A GLOBALIZAÇÃO NÃO É O FIM DA HISTÓRIA
NEOLIBERALISMO OU DEMOCRATIZAÇÃO
- eis a apção inevitável para CAT

VIVER, AMAR E CONHECER SÃO VERBOS
QUE OS PROFESSORES DEVEM CONJUGAR
- lembra Carlos Alberto Torres, especialista em Educação Internaciomnal e Desenvolvimento

Carlos Alberto Torres é professor da Universidade da Califórnia Los Angeles (UCLA) desde há oito anos e director do Centro de Estudos Latino-Americanos da mesma universidade. Natural da Argentina, onde se licenciou em Sociologia, fez mestrado em Ciência Política, no México. Já na Universidade de Stanford (EUA), fez novo mestrado e doutoramento em Educação Internacional e Desenvolvimento. Fez estudos pós-doutorais em Fundamentos da Educação Internacional na Universidade de Alberta (Canadá).
Actualmente, desenvolve trabalho de pesquisa na área da Sociologia Política da Educação e acaba de preparar um livro sobre democracia, educação e multiculturalidade. Como autor, tem publicados cerca de 40 livros e centena e meia de artigos de pesquisa.
No Verão passado, esteve no Porto a cumprir um estágio de pesquisa e docência na Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação. Mais recentemente, regressou para integrar o júri do exame de graduação de Luiza Cortesão - "um êxito total; ela foi óptima; é uma intelectual de primeira nota, e o júri aprovou-a por unanimidade" - e participar no lançamento de um número temático da revista «Educação, Sociedade & Culturas», dedicado a Paulo Freire. Carlos Alberto Torres pertence, aliás, à direcção do Instituto Paulo Freire, bem como a várias outras instituições e/ou sociedades científicas.
O que adiante se reproduz é o resultado de uma pequena conversa mantida aquando da sua última passagem pelo Porto.

P - Tanto quanto julgo saber, no seu último livro aborda alguns dilemas da cidadania num mundo global. Num momento em que se fala tanto de globalização, como é que interpreta o impacto deste fenómeno, no caso específico dos sistemas educativos nacionais?

R - Bom, este tema é muito amplo, mas há algumas respostas concretas.
Por exemplo, a globalização tem um impacto muito forte nos meios de comunicação de massas, e os mass media estão dominados pelos países centrais, particularmente pelos Estados Unidos da América (EUA). Daqui decorre um problema que alguém denominou como sendo a 'californianização do gosto'. Especialmente nas culturas jovens, há uma forte presença dos modelos americanos - mais concretamente californianos, de Hollywood -, que fazem a promoção de valores que vão muito além das culturas regionais ou nacionais.
Por outro lado, a globalização tem um impacto muito directo na mobilidade do capital do trabalho. Isto é, com a globalização há uma desregulação do capital, o que origina a falta de protecção e de controlo da sua mobilidade. O capital circula mais facilmente entre os países, levantando questões não apenas económicas, mas também culturais e políticas.
Ao mesmo tempo, há uma questão tecnológica. A globalização vincula muito mais todos os espaços do Globo - eu viajo por todo o mundo e estou em constante comunicação com a minha secretária, com o meu grupo de pesquisa, com a minha família; ainda há poucos minutos, estive a fazer uma comunicação internacional, via internet... Ou seja, há uma forte presença da globalização em toda a nossa a vida. Logo, tem de haver uma forte presença na educação.
No entanto, uma das questões que se afigura mais interessante é que o magistério do professor está relativamente protegido, uma vez que se trata de um processo de certificação a nível estatal, em alguns casos, ou nacional. Por isso, esta é uma das poucas profissões em que os seus membros estão protegidos da globalização. Contudo, há outros elementos da globalização que não protegem a educação - por exemplo, as grandes companhias produtoras de livros de texto são multinacionais, e aí há uma série de características que se aplicam e são seguidas em países onde não correspondem à sua origem.
Mas uma das questões mais importantes é perceber como é que as agendas de pesquisa - que são impulsionadas especialmente por organismos reguladores do capitalismo, como o Banco Mundial - se tornam agendas internacionais, criando condições para que haja uma homogeneidade do que é importante em termos de dotações para a educação, de conhecimento legítimo, de valores, etc.
Conclusão: a globalização tem impacto nas nossas vidas e na percepção dos jovens e dos adultos; a globalização tem impacto nos sistemas educativos, não obstante o magistério docente estar ligeiramente protegido; e, certamente, com a globalização também há fortes mudanças no capital do trabalho que afectam a educação, especialmente a relação entre a educação e o trabalho.

P - E como é que esse impacto da globalização se reflecte na democratização das sociedades e na construção da cidadania?

R - Está a tocar num aspecto muito importante, porque a globalização tem duas faces.
Por um lado, integra muito mais fortemente os valores vinculados aos direitos humanos; quer dizer, os direitos humanos eliminam a noção de cidadania, porque a cidadania é hoje a defesa dos direitos humanos.
Por outro lado, em termos de globalização, aqueles que têm mais sucesso, aqueles que podem consumir mais, são os que têm maior acesso aos benefícios da cidadania; os que consomem menos, têm menos benefícios. Resultado do capitalismo, quem tem acesso a recursos e pode consumir, é um cidadão de facto; quem não tem acesso a recursos e não pode consumir, é um cidadão de segunda categoria; portanto, não é um cidadão.
Ou seja, com a hiper-presença dos direitos humanos - que protegem um mínimo de condições da vida quotidiana -, a globalização tem um impacto muito poderoso nos avanços da cidadania; no entanto, como empurra muito mais para a competência e o êxito, a globalização destrói a cidadania.

P- É um pau de dois bicos...

R - Exactamente, exactamente.

P - Voltando ao impacto da globalização na relação entre a educação e o trabalho - perante tão estreita relação, fará sentido falar em auto-desenvolvimento?

R - Enquanto utopia, o auto-desenvolvimento é algo por que há que continuar a lutar, ainda que as condições de probabilidade sejam adversas.
A homogeneização também provoca fragmentação. E há uma forte presença da luta em defesa do local, uma forte luta que está a ser travada por muitos movimentos sociais, em busca, exactamente, desse auto-desenvolvimento. Portanto, a globalização não é o fim da história.
Aliás, eu distinguiria dois aspectos muito importantes: a globalização como projecto histórico, tecnológico e cultural - que escapa ao controlo de um indivíduo particular, de um grupo particular - e a globalização neoliberal, impulsionada pelos poderosos.
Porque também há a globalização dos sectores populares, há muita mobilidade da força de trabalho, há muito sentido de solidariedade através das fronteiras e há muita força das organizações não-governamentais, que agora são muito mais globais do que antes. Ou seja, há uma globalização não neo-liberal; uma globalização não dos poderosos, mas uma globalização histórica, primeiro, e, logo, dos movimentos sociais.
Por isso, não estou muito pessimista. Quanto a mim, há que distinguir, há que saber exactamente para quem estamos a trabalhar e há que decidir se, num quadro de globalização, trabalhamos pela democratização ou pelo neoliberalismo.

P - E como é que se pode fazer essa distinção? Nas políticas educativas, por exemplo, quais são os marcos de referência que permitem aos professores saber se estão a optar por uma via, e claramente por essa, ou se, pensando estar a optar por aquela, não estarão, muito provavelmente, a dar trunfos...

R - É uma excelente questão.
A globalização não neoliberal defende os princípios do iluminismo e da universalidade. O professor é um grande personagem da globalização e fá-la todos os dias na sala de aula, porque um professor ensina arte, mas não ensina apenas arte portuguesa. O professor é um grande globalizador; já decidiu, na medida em que ajuda a difundir a cultura universal.
Portanto, a questão é que a universalidade do iluminismo continua a ser um fenómeno de globalização e de criação de consciência. A globalização neoliberal é muito mais particularista; provê uma defesa de interesses particulares, e os interesses particulares são interesses de classe, de raça, de género, etc.
Eu não posso dar pílulas de globalização neoliberal e de globalização não neoliberal, para que o professor consuma as que gosta. Não existe tal coisa; é uma decisão. Logo, o professor tem que usar um juízo crítico, e esse juízo crítico deve estar bem formado - um bom professor é um bom pesquisador.

Ou seja, não há uma resposta para a sua pergunta. Eu não tenho uma receita, mas posso analisar situações concretas e ver com um professor o que apoiamos e o que não apoiamos. Em última instância, é uma decisão política!

P - E que também nos remete para os critérios da formação de professores enquanto profissionais críticos, responsáveis, com autonomia...

R - Totalmente.

P - Mas sendo a formação muito decidida a nível de gabinetes políticos, ela não poderá ser desvirtuada, manobrada? Quando é um ministério político que decide - normalmente, ignorando os professores que estão nas escolas - , não há o risco de a decisão estar submetida a certos interesses particulares, uma vez que os governos estão comprometidos nas suas relações internacionais?

R - Essa pergunta é muito boa, muito boa, mas vamos por partes.
Em primeiro lugar, os gabinetes podem regular o que quiserem, mas o professor, na sala de aula, também faz o que gosta. Há um elemento de autonomia muito forte, e essa autonomia dá muita liberdade; a luta pela autonomia é uma luta dos professores, isso está fora de discussão.
Por outro lado, e no âmbito dessa autonomia, é muito importante atribuir ao professor e às instituições de formação de professores a capacidade de criarem um pensamento crítico - e o pensamento crítico na educação está a chegar muito fortemente aos âmbitos de formação de professores. Portanto, é fácil afirmar que vamos ter muito mais capacidade crítica ao nível da formação de professores do que ao nível da definição de questões na política pública.
Então: a autonomia é um princípio fundamental da formação do professor; a luta pelos direitos dos professores na economia política é muito importante; a multiculturalidade é outro princípio fundamental para impulsionar esta democracia. Junto com isto, eu afirmaria a capacidade espiritual do professor de entender que a sua tarefa não é burocrática; é uma tarefa amorosa, é uma paideia, e há um eros da paideia...
Você perguntava se se pode construir um pensamento e uma prática docente que não seja organizada a partir do gabinete do ministro. Pode. Pode, porque há uma utopia, uma vocação; há uma luta quotidiana dos professores para trabalharem com as crianças. Nós não trabalhamos com uma matéria-prima; não formamos coisas. Nós aprendemos a aprender com gente que está a aprender a aprender. Não há tarefa mais digna no mundo do que a do professor!

P- Voltando-nos agora para o pensamento de Paulo Freire, seu grande amigo. Para alguns professores, ele será uma referência; para outros, talvez um quase desconhecido. Qual é a importância de Paulo Freire na pedagogia?

R - Na minha opinião, Paulo Freire (PF) foi um revolucionário. Com uma criatividade única, ele mudou a nossa capacidade de pensar. PF é um símbolo, é emblemático.
O seu livro «Pedagogia do Oprimido» é, sem dúvida, uma das duas obras mais importantes deste século: John Dewey marcou o pensamento pedagógico da primeira metade do século com o seu livro sobre educação e democracia; «Pedagogia do Oprimido» marca o pensamento pedagógico desta segunda metade, fazendo o começo do que eu definiria como o pensamento crítico em educação e logo reincorporando os aspectos críticos de Dewey.
Há uma coisa espiritual em PF: a sua capacidade de pensar muito fresca; o desejo de risco...; ele arriscava muito; ele pensava criticamente; o compromisso político com o oprimido, que ele defendeu em toda a sua vida - Freire foi um guru! Eu tive PF em reuniões com milhares de pessoas, adorando-o. Mas era um homem sensato, que lutava contra a sua possível arrogância; era um mito na sua própria vida.
Eu não conheço mais que dois mitos em vida. O outro é Noam Chomsky, o intelectual vivo mais citado em todo o mundo ocidental [segundo uma pesquisa do «New York Times»]. Chomsky é uma pessoa muito humilde. Fala muito lentamente. Agita-se, de vez em quando, porque tem muita energia, mas é um homem muito calmo. É coisa de genialidade...
PF foi, também, um homem muito genial. Um mês antes de morrer, publicou «Pedagogia da Autonomia» [ver páginas seguintes], um livro que contém os mandamentos da pedagogia e que é a sua grande contribuição após «Pedagogia do Oprimido». Eu gostaria de fazer a seguinte afirmação: num curso de formação de professores devem ler-se os textos clássicos, mas não podem faltar «Educação e Democracia», de Dewey, «Pedagogia do Oprimido» e, agora, «Pedagogia da Autonomia» - é uma maravilha!
Em síntese, PF foi um pensador da diversidade; foi um pensador clássico; foi um pensador modernista crítico, foi um pensador pós-modernista; tudo junto. Defino-o como ele me disse uma vez que gostaria de ser lembrado - "Quando eu morrer, gostaria que as pessoas dissessem que Paulo Freire viveu, amou e quis conhecer" [NR: PF nasceu em 1921 e morreu em Abril de 1997]. Viver, amar e conhecer, são os três preceitos que qualquer professor deve ter em conta.
Viver quer dizer estar desperto, alerta, acordado para a descoberta da espantosa realidade que nos rodeia; quer dizer ser curioso, ter uma pedagogia e uma epistemologia da curiosidade, que foi uma das grandes lições de PF.
Amar é a paideia pedagógica; o eros. O professor não pode trabalhar com as crianças como se fossem pedaços de barro para modelar; o professor trabalha com seres humanos e, acima de tudo, tem de amar. Uma vez, PF disse-me: "Carlos, há muitos intelectuais mal amados" - ora, se um professor não for bem amado, muito dificilmente saberá amar. PF amou e amou muito.
E quis conhecer... O conhecimento como elemento de universalidade, de transformação; o conhecimento - como Hegel poderia afirmar, sem nunca o ter dito - como uma paixão.
PF viveu, amou e quis conhecer. É um gigante, um homem que antecipou o seu tempo por muitos anos.

P - Curiosamente, no entanto, tenho a ideia de que PF esteve fora do circuito do pensamento científico em educação durante alguns anos, apenas sendo retomado muito recentemente...

R - Sem dúvida... Concordo consigo. De 1978 a 1980, no México, publiquei três livros que, basicamente, são uma compilação de textos de PF e críticas à sua obra. Esses três livros foram a referência mais importante para retomar a discussão de PF na América Latina, porque ele tinha desaparecido - com isto, quero dizer que eu fiz um dos primeiros estudos críticos de PF, mas o estudo crítico também desoculta o pensamento dele.
PF foi muito famoso no Brasil, aquando da presidência de João Goulart, antes de ser preso durante 70 dias e se ter exilado na Bolívia e no Chile. Aqui, voltou a tornar-se muito famoso, como pensador revolucionário, de transformação, e escreveu «Pedagogia do Oprimido», que teve uma força imensa entre 1968 e 1975. A reintrodução do seu pensamento, em 1980-83, nos EUA, põem-no, novamente, sobre a mesa. E em inglês.
Eu diria que esta segunda recepção foi diferente da primeira, quando ele era muito lido como educador de adultos; na segunda, já foi recebido como um pedagogo crítico. Então, começou a trabalhar e a publicar, tornando-se um guru e acabando por morrer praticamente no zénite da sua popularidade - Paulo recebia 300 cartas diárias e tinha convites para viajar para todo o mundo, com tudo pago.

P - Para terminar, proponho que regressemos à sua obra pessoal. Sendo a identidade uma questão central nos seus trabalhos, gostaria que distinguisse multiculturalidade e interculturalidade?

R - Vou dar a minha visão, que pode ser muito diferente da que há em Portugal, e a primeira questão é saber porque falamos de multiculturalidade ou interculturalidade - falamos, porque há uma tentativa de explicar a diversidade.
Interculturalidade é um termo que se usou nos EUA durante os anos 70-80, e que está a usar-se agora em toda a Europa, e não apenas em Portugal. Nos EUA, a discussão é sobre a multiculturalidade, que quer dizer três coisas: primeiro, e sobretudo, uma educação anti-racista; segundo, um movimento social; terceiro, uma tentativa de transformação curricular específica.
Você pode perguntar se é um movimento social homogéneo ou uma transformação curricular homogénea - não, não é: há uma versão liberal, mas com diversas variantes; há uma versão conservadora, a que chamo conservadorismo pragmático, porque aceita a diversidade e, portanto, toma decisões com respeito pela multiculturalidade; e há uma versão de esquerda, que também tem muitas variantes - por exemplo, a pedagogia crítica está muito vinculada à multiculturalidade crítica.
Eu não posso comparar, mas posso falar da multiculturalidade. Creio que é o tema da transição de século. É o tema que vai marcar a crise e a resposta da educação frente às exigências e aos desafios do futuro.
Porquê? Porque discute o tema da identidade, e em educação não fazemos mais do que discutir a questão da identidade.
É esta a minha resposta.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 76
Ano 8, Janeiro 1999

Autoria:

Carlos Alberto Torres
Professor da Universidade da Califórnia Los Angeles (UCLA) e director do Centro de Estudos Latino-Americanos da mesma universidade. Natural da Argentina.
Carlos Alberto Torres
Professor da Universidade da Califórnia Los Angeles (UCLA) e director do Centro de Estudos Latino-Americanos da mesma universidade. Natural da Argentina.

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