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Reflexões continuadas sobre a globalização

(continuação do artigo "algumas hipotecas graves da cultura ocidental" )

11. - Foi, na verdade, o não-discernimento do que se encontra envolvido nesses binómios que levou, v.R., Thomas Hobbes (1588-1679) a inscrever lapidarmente, na 1ª página do seu 'Leviathan; or, The Matter, Forme, and Power of a Common-wealth Ecclesiasticall and Civill' (publicado em 1651), o seguinte axioma: "A Natureza (ou seja, a Arte mediante a qual Deus fez e governa o Mundo) é, por obra da Arte do homem, como acontece em muitas outras coisas, assim também nisto imitada, aquilo que pode fazer um Animal Artificial". Ora, em tal enunciado-deve advertir-se bem-o homem não só ficou erradamente fora da Natureza como acabou por reduzir aquela a um simples objecto manipulável a seu gosto!... Assim, pois, na tríade: Natureza (primeira)/Homem/Automata, os Engenhos dotados de 'vida artificial' seriam, pelo Homem (demiúrgico e fáustico), homologados perfeitamente no rol dos seres da primeira Natureza. Ora é indiscutível que um tal postulado acaba por resultar, para uma mente sã, num lôbrego 'non-sens', além dos efeitos nefastos e das consequências perversas e destrutivas que desencadeia.

12. - Na sua obra toda inteira, o patriarca moderno da Evolução biológica, Charles Darwin, esteve ele próprio muito longe de chegar a tais posições, para ele absurdas. (L , 'Darwin Among the Machines', de George Dyson, Penguin Press, 1997, caps. 1, 2, 3, 11 e 12). Que distingue, afinal, substancialmente os homens das máquinas? Precisamente os interstícios entre os diferentes cérebros pensantes; esse abismo que vai de uma consciência individual a outra consciência individual. Eis por que não há propriamente, na Espécie Humana e nas Sociedades Humanas, uma consciência global, no sentido próprio e literal do termo. É por isso que, sendo a 'consciência global' formada de consciências individuais em diálogo dialéctico umas com as outras, o que assoma primeiro ao patamar da globalidade é precisamente a 'inconsciência global'. É igualmente nessa fenda abissal entre as reais consciências individuais que se poderá encontrar o último topos justificativo da existência de uma Divindade, enquanto hipótese unificadora das consciências pessoais !... O Deus sive Natura de Espinosa daria lugar ao Deus sive Utopia, capaz de fundar e dar conteúdo à 'consciência global'. Pôr em conjunto, por conseguinte, todos os nossos cérebros em ordem a produzir uma mente comum à maneira das formigas daria, como resultado, um pensamento absolutamente impensável, inteiramente fora, abaixo ou acima, das nossas cabeças. (Cf. G. Dyson, op. cit., p. 209).

13. - No entanto-pasme-se!...-é mesmo esse o caminho errado prosseguido, contemporaneamente, pelos fascismos e nazismos e estalinismos de todos os tempos e matizes; e, hoje em dia, pelo cripto-fascismo ou fascismo soft, de orientação e conteúdos econocráticos, antes de tudo, que avassala, como um glaciar, a nossa Sociedade hodierna.
Como é tão difícil de vingar esse malmequer-bem-me-quer da Democracia na Espécie humana! .. .
Uma observação metodológica: Em tudo o que hoje se relaciona com os fenómenos e a análise crítica do Poder e do Saber, é de toda a conveniência não ignorar a obra de Michel Foucault (ver, como iniciação, por toda a sua obra, o livro precioso de Gilles Deluze: 'Foucault', Vega, 2a ed., 1998), bem como o livro magnífico do conhecido filósofo italiano, Giorgio Agamben: 'O Poder Soberano e a Vida Nua/Homo Sacer', Presença, 1998.

14. - Saber e Poder: como se relacionam? Deve tomar-se consciência de que eles se recobrem reciprocamente, mas de forma assimptótica. E como o Poder carece do Saber para se comportar com algum estatuto humano, ele tem o cuidado castrense de estar sempre atento a integrar todas as migalhas possíveis de Saber, inclusive as que procedem da periferia e das margens da organização político-social, i.e., da rebeldia, das oposições políticas, dos excluídos. Integracionismo e uniformidade e não-pluralismo nem-diversidade são as suas palavras d'ordem!...
Da analítica foucaultiana sobre o relacionamento estrutural entre o Saber e o Poder, facilmente se induz que esse binómio traduz e exprime, em última instância, aquela distinção abissal e antitética configurada institucionalmente entre a Cultura da Liberdade primacial e a Cultura do Poder-dominação d'abord.
Nesta óptica, como bem se compreenderá, perante as exigências imediatas das soluções práticas e face à necessária e imprescindível pluralidade dos valores e da própria percepção gnóseo-epistemológica da verdade, não resta, pois, outra saída senão ir em demanda, na boa formação da vontade, daquele caminho de compromisso prático que (segundo Isaiah Berlin e Paul Ricoeur) se revele o mais sensato e adequado, para o maior número possível das partes envolvidas. Ainda que tal compromisso se tenha de construir entre o que Isaiah Berlin chamava, de um lado, 'liberdade negativa', e, do outro, 'liberdade positiva'. A Psicologia humana, essa não pode abandonar, logicamente, a sua dimensão ética e moral, sob pena de suicídio. Como se pode ver, este é justamente o imperativo categórico resultante precisamente da pluralidade existencial dos Indivíduos-Pessoas conscientes e livres.

15. - Na Tradição do Ocidente (no Oriente, em contraponto, a tradição é para pior ...), outra característica essencial/nuclear e estruturante do Poder (estabelecido) é a sua insistentemente reivindicada prerrogativa divina,-essa divinização do Poder (saber) soberano que ecoa, com a sua aura própria, mais ou menos ao longo de toda a história sócio-política dos humanos (desde a organização tribal até aos modernos Estados-nações).
E, na galáxia ocidental, com a transição das monarquias para as repúblicas, e mesmo com estas a reivindicarem denodadamente a democracia, tem de concluir-se, num balanço crítico, que a situação sócio-antropológica não se alterou substancialmente. De uma forma ou de outra, mesmo numa sociedade moderna secularizada e laica, o facto irrecusável é que não se prescinde dessa prerrogativa da divinização do Poder constituído, ainda quando, e por princípio na República, se atribuía a origem do Poder à Nação ou ao Povo.
Em total cumplicidade com o Poder estabelecido, o próprio Evangelho de João (19, 1 la)) e a Carta de Paulo aos Romanos (13, 1) não se cansaram de estabelecer tradicionalmente a tese 'Omnis potestas a Deo' (= Todo o Poder vem de Deus), que S. Jerónimo ainda agravou com a sua tradução errada do grego ecsousía para a palavra latina potestas, configurando assim uma situação canónica em que o que era energia ou potência ou capacidade, próprias dos indivíduos, foi indevidamente outorgado ao Poder estabelecido. O Poder constituído viu-se, portanto, honrado (e divinizado...) com todas as benemerências, enquanto majestático e mecanicístico centro dinamizador de tudo o que se mova à face da Terra. Em suma, o Poder faz tudo... e nada nem ninguém poderão resistir ou estar contra o Poder estabelecido!... Assim, a Sociedade ocidental (contra os desígnios de Sócrates e Jesus) é integracionista/fascista, a partir do próprio momento original em que o legado bíblico neo-testamentário começou a ser moldado e vasado no molde imperialista do Império Romano!...
A divinização do Poder (soberano), como fonte e origem dinâmica de todo o bem, deveio, assim, um estigma inultrapassável. Na Idade Antiga, na Idade Média e na Idade Moderna. Na Idade Moderna, caracterizada pelas aberturas para a Liberdade dos indivíduos, paradoxalmente, essa divinização ainda teve consequências mais fortes, funestas e perversas do que nas Idades Antiga e Média, onde se respeitava e cumpria reverencialmente, quand même, aquela espúrea e duvidosa tese do 'omnis potestas a Deo'. A Economia das pessoas detinha, apesar de tudo, o primado sobre a Economia das Coisas. O universo do Imaginário e a Memória pessoal, social e histórica, como fonte e balizamento da Cultura e do comportamento das gentes em sociedade, ainda contavam decisivamente.

16. - Em contraponto, todavia, na Idade Moderna, foram o experimentalismo demiúrgico e as sucessivas revoluções científico-tecnológicas que acabaram por predominar, em detrimento absoluto das revoluções sociais, de que tanto se foi falando, mas que sempre, sempre, resultaram goradas e traídas, como se, nos horizontes humanos, as primeiras tivessem eclipsado e colapsado, definitivamente, as segundas!... Assim, por conseguinte, as modernas Sociedades, nossas contemporâneas, em vez de se humanizarem progressivamente, ao longo da biosfera e da psicosfera, o que acontece é que estão cada vez mais a ser primatizadas (reconduzidas à condição dos primatas originais de que procedeu o Homo Sapiens-Faber) .

(continua)

Manuel Reis
Escola João Meira / Guimarães


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 76
Ano 8, Janeiro 1999

Autoria:

Manuel Reis
Professor e Presidente do Centro de Estudos do Humanismo Crítico. Guimarães
Manuel Reis
Professor e Presidente do Centro de Estudos do Humanismo Crítico. Guimarães

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