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Diálogos para a cidadania

No cotidiano social vivenciamos hoje a violência, a fome, a corrupção, a tragédia, o desemprego e vários outros fatores que estão sendo como que banalizados por sua contínua repetição que perpassa em nossa rotina diária.
Pensando nessa evidência, a reflexão sobre a cidadania no âmbito de sua formação se impõe como urgência.
Sabemos não ser este um processo fácil, já que situamos aqui a cidadania como processo contínuo de formação, processo este que se constitui em etapas de construção elaboradas pelo próprio sujeito. O desenvolvimento da autonomia é fator determinante na constituição deste processo, já que requer um constante "exercitar" (do latim exercitare) , praticando, exercendo o autoconhecimento que é um instrumento importante para uma ação que possibilite a inversão de posições. Ou seja, eu só posso saber a importância do acesso aos meus direitos de indivíduo enquanto cidadão, se, conhecendo a mim mesmo, sabendo que tenho minhas necessidades, vontades e limitações eu me coloco no papel de sujeito coletivo, aquele que pensa o papel do outro sujeito como também importante na constituição de uma sociedade possível de respeito, solidariedade, justiça e democracia, considerando que todos nós podemos ter desejos e vontades que são ímpares em sua concepção porém coletivos na sua concretização.
E é pensando nessa formação que o fio condutor deste artigo pretende ser o questionamento da possibilidade de formação de uma cidadania responsável, tendo como pressuposto básico o diálogo.
A citação abaixo reflete a preocupação suscitada por Georges Gusdorf na obra entitulada Professores Para Quê? e que é lugar comum entre os educadores que elaboram uma reflexão acerca dos caminhos já trilhados na busca de uma educação que corresponda aos anseios do homem contemporâneo: o mundo está vazio de diálogo.

"Cada tempo tem a cultura que merece. O nosso, que é o tempo dos meios de comunicação, e que parece, graças ao automóvel, ao avião, ao telefone, ao rádio e à televisão, ter suprimido a distância entre o homem e o homem, nada fez para lidar com a única e verdadeira aproximação do diálogo autêntico".

Esta constatação remete-nos a uma questão crucial: como o diálogo ocorre e quais as implicações de sua efetivação?
A busca de uma resposta nos apresenta a necessidade de elaborar algumas considerações. Na tentativa de incitar uma reflexão sobre o diálogo, explicitaremos aqui, de forma bastante sucinta, a posição de três pensadores sobre este assunto: Martin Buber, Paulo Freire e Matthew Lipman.
Em primeiro lugar, a posição de Buber que enaltece o diálogo como aspecto intrínseco ao ser humano. Segundo ele, "os limites de possibilidades do dialógico são os limites de possibilidade de uma tomada de conhecimentos íntimo (...) mesmo que possa prescindir da fala, da comunicação, há contudo um elemento que pertence indissoluvelmente à constituição mínima do dialógico, de acordo com seu próprio sentido: a reciprocidade da ação interior". Para Buber é preciso, para que o diálogo aconteça, uma ação essencial do homem, em torno do qual se constrói uma atitude essencial, a isso ele chama de movimento básico e o distingue em duas formas: o movimento básico dialógico, que consiste em "voltar-se para o outro" ou seja, considerar a presença do outro, dirigindo nossa atenção e exteriorizando em gestos o que a alma quer mostrar; e o movimento básico monológico que consiste em "dobrar-se-em-si-mesmo". Este último, longe de ser um ato egoísta significa "o retrair-se do homem diante da aceitação, da essência do seu ser, de uma outra pessoa na sua singularidade, singularidade que não pode absolutamente ser inscrita no círculo do próprio ser e que contudo toca e emociona substancialmente a nossa alma, mas que de forma alguma se lhe torna imanente". Considerando a existência destes dois movimentos básicos, acontece o que Buber chama de diálogo autêntico ou genuíno.
Para Paulo Freire, o diálogo vai além dos movimentos básicos que fundamentam a relação EU-TU estabelecidos por Buber. No livro Pedagogia do Oprimido, Freire pontua algumas características do diálogo enquanto fator de construção do homem que se faz "na palavra, no trabalho, na ação-reflexão". Esta palavra , segundo ele, não é privilégio de alguns homens, mas direito de todos os homens. Precisamente por isso, ninguém pode dizer a palavra verdadeira sozinho, ou dizê-la para os outros, num ato de prescrição, com o qual rouba a palavra aos demais (...) Se é dizendo a palavra com que, "pronunciando" o mundo, os homens o transformam , o diálogo se impõe como um caminho pelo qual os homens ganham significação enquanto homens. Por isto, o diálogo é uma exigência existencial". Assim, Freire acrescenta um terceiro elemento na evolução da relação dialogal: o mundo.
Este tripé o leva a considerar que, para que a inter-relação seja fértil, há que se acreditar na existência de um profundo amor ao mundo e aos homens, na humildade e na fé intensa nos homens, atitudes que terão como esteio, a confiança.
O diálogo enquanto fator primordial na construção do pensar complexo e no estabelecimento das chamadas comunidades de investigação está presente na obra de Matthew Lipman, que considera relevante os estudos de Buber e Freire na constituição de uma comunidade de investigação, porém faz algumas ressalvas. No livro O Pensar na Educação ele estabelece um confronto entre a conversa e o diálogo. Segundo Lipman, a conversa almeja o equilíbrio, havendo o predomínio de uma pessoa e depois da outra, balizado pela reciprocidade, mas sem avanços. Acontece ainda uma troca de sentimentos, pensamento e interpretações. Já no diálogo, o alvo seria o desequilíbrio constante que forçaria um movimento progressivo e que se utiliza do questionamento oriundo de um exame e/ou de uma investigação para se afirmar enquanto tal. Conclui então que o diálogo deve ser disciplinado pela lógica, não desconsiderando porém, que a lógica do diálogo tenha suas raízes na lógica da conversa.
Uma consideração importante é a da possibilidade de um verdadeiro diálogo entre posturas e visões de mundo diferentes e conflitantes, levando em conta a desigualdade apenas no ponto de partida para que o diálogo ocorra. Se ele faz parte de um contexto dinâmico que visa caminhar para a busca de uma cidadania responsável, irá incidir na igualdade como ponto de chegada. Outra consideração a fazer é a de que isto é um aprendizado que envolve elementos como uma argumentação sólida, respeito mútuo, autocorreção, autocrítica e vários outros. Assim, torna-se viável o diálogo entre aqueles que são "inicialmente" desiguais, pois não supõe , necessariamente, uma conversa consensual (pois visto apenas sob esse prisma, haveria a imposição de idéias por parte daquele que melhor fundamenta seus argumentos e o consenso, ou apenas o silêncio seria a conseqüência óbvia desse movimento de via única, limitado pela suposta argumentação superior do outro), ele pressupõe desejo mútuo de buscá-lo e atingi-lo, mesmo que seja no dissenso, ou seja, no desequilíbrio causado pela pluralidade de pontos de vista.
Portanto, a resposta à questão elucidada no início deste texto não é única, ela consiste na solidez dos argumentos suscitados por inúmeros pensadores, e na constante alimentação dessa interrogação, que não só coloca o diálogo enquanto possibilidade como também o coloca como pressuposto básico na formação de uma cidadania responsável, conduzindo-nos a uma reflexão rigorosa acerca de suas implicações nas relações interpessoais do homem contemporâneo para que assim, diminua significativamente 'a distância entre o homem e o homem".

Rita Márcia Magalhães Furtado
Goiania-Goias, Brasil
rfurtado@cultura.com.br

Referências bibliográficas
BUBER, Martin. Do diálogo e do dialógico. São Paulo: Perspectiva, 1982; pp.153-156.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987; pp.77-83.
LIPMAN, Matthew. O pensar na educação. Petrópolis: Vozes,1995; pp.335.


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 75
Ano 7, Dezembro 1998

Autoria:

Rita Márcia Magalhães Furtado
Goiania-Goias, Brasil
Rita Márcia Magalhães Furtado
Goiania-Goias, Brasil

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