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Editorial - Culpados qb
(quanto baste)

A culpa tem sido, desde sempre, um instrumento político de grande utilidade. A manipulação das consciências e a submissão às políticas da classe dominante, são mais fáceis de atingir, quando a consciência dos que tomam iniciativas autónomas ou pensam de forma discordante e dissidente em relação às orientações dominantes, é amaciada pelo sentimento de culpa.
Nas conversas que vou mantendo e o que vou recolhendo do estado de espírito actual de alguns professores, pelo menos na aparência, parece-me que alguns estão a ser tomados, cada vez mais, pelo sentimento de culpa, o que é, pelo menos, "meio caminho andado" para aceitarem as políticas e o pensar "correcto" de forma menos critica.
Este uso da culpa, como forma de "domesticar" segmentos da população que trabalha, não é exclusivo dos professores. Vejam-se as campanhas que têm vindo a ser feitas sobre a magistratura ou sobre os médicos e outros grupos profissionais. No fundo o que se procura é retirar-lhes a autonomia no pensar e agir, é domesticá-los e colocá-los ao serviço dos interesses da classe dominante. Não estando sós, são os professores que aqui nos preocupam.

A escola não cumpre os seus "verdadeiros" objectivos - diz o discurso dominante. A escola está desligada do mercado de trabalho. A escola não ensina "o necessário". A escola não corresponde às necessidades das famílias...
Como um fantasma, estas e outras acusações públicas, pairam e reflectem-se na consciência dos professores. E são cada vez mais numerosos os que se sentem culpados por não ensinarem "como deve ser", de não ajudarem o país como é necessário, de não facilitarem a vida às famílias como é desejável, de não contribuírem para uma maior produtividade da indústria e comércio nacional, por não fazerem progredir a ciência, a investigação, a cultura. Por não ajudarem a resolver os problemas da marginalidade, da pobreza, do desemprego, do abandono escolar, da toxicodependência. Por não serem capazes de formar cidadãos responsáveis. Por não proporcionarem a aprendizagem dos valores "correctos". Por não ajudarem a defender o património nacional...
E alguns interiorizam a culpa. Culpados pela sua ineficiência, incompetência, irresponsabilidade, corporativismo. Culpados e desgostosos com a escola e a profissão. Tão culpados que já nem se atrevem a pedir um salário justo ou condições de trabalho de primeiro mundo.

Eis como a leitura do pensamento dos outros nos faz regressar ao passado e nos ajuda a escapar da culpa. A leitura da quarta das "Cartas Londrinas" de Regina Leite Garcia (Relume-Dumará, 1995), fez-me, mais uma vez, recordar uma explicação frequentemente repetida pelo meu professor da 1ª e 2ª classe da escola primária, um professor que ensinava "como deve ser". Depois de distribuir "bolos" e bordoada a torto e a direito, dava-nos sempre uma explicação:
- "as crianças têm de ser tratadas como as videiras"... "o bom tratador da vinha sabe a altura própria em que deve fazer a poda"..."sabe quais os rebentos a cortar e quais as vides que deve deixar crescer"... "sabe como amarrar as vides aos arames para crescerem como deve ser e poderem vir a dar bons frutos".
Com as mãos quentes e/ou as orelhas a arder eu imaginava-me videira, esparramado nos arames, braços e pernas atadas, a crescer achatado e desmesuradamente, não se sabia para onde. E não gostava da ideia. Ainda não gosto.
Esta imagem de me ver amarrado aos arames da vida, e podado, segundo o critério do professor, persiste na minha memória e faz-me pensar se alguma coisa de fundamental mudou na escola.
A quarta carta da Regina (e as outras doze) e as conversas com os colegas de profissão, levam-me a concluir que no essencial pouca coisa mudou. Mudaram os métodos, a violência já não se materializa pela régua ou pela vara de marmeleiro, mas o sistema persiste em escolher "os comportamentos" e "o caminho correcto" que as crianças devem percorrer. E este modo de impor a cultura dominante (e os interesses dominantes) é facilitado pelo nosso sentimento de culpa que o poder não se esquece de reforçar.
E começa tudo logo no principio da escolaridade. Como diz Regina, "a língua é uma questão política". As crianças quando chegam à escola sabem exprimir-se. Sabem falar. E falam com a voz e o movimento. Podem não saber a língua oficial. Mas conhecem o essencial da "língua materna", a que usam para comunicar com os seus, seja a família, seja o grupo de pertença. Se a criança vem de uma família da classe dominante tem a vida escolar facilitada, usa a língua oficial. Se vem de outras famílias, de outros grupos sociais, a escola considera que a criança "não fala correcto", não se comporta "correctamente", não "pensa correctamente"... tudo nela está errado. Não é só a criança que está errada, é a sua família, o seu grupo social de pertença, a sua classe social que estão errados.
Quanto à criança entende depressa que está no meio errado, num meio que não é o seu, cala-se e procura outros caminhos na tentativa de preservar a sua integridade. Caminhos que a escola considera, naturalmente, "caminhos errados".

José Paulo Serralheiro


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 75
Ano 7, Dezembro 1998

Autoria:

José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.
José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.

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