Página  >  Edições  >  N.º 74  >  E para os adultos, crescem as crianças?...

E para os adultos, crescem as crianças?...

(de novo em quatro elementos, sendo que o último é o da utopia)

1. Uma contradição

É o que a minha questão pode parecer. Porque parece ser evidente que as crianças crescem. No entanto, já Alice Miller colocava a questão e em muito livro, quis dar resposta. Até ser expulsa do Colégio de psicanálise. E agora, retirada na Suíça, escreve e alimenta as nossas questões. Já Goya (1812), o tinha previsto na sua pintura, ao desenhar El Gigante, esse super-adulto que come adultos. Entre nós, Ana Benavente trata do assunto, quando pensa na escola e desenha a educação infantil (1990). Dessa educação que Luiza Cortesão (1981), Helena Araújo e Steven Stoer (1993) e outros, tinham já estudado. Como os membros da equipa a qual fiz referência no mês anterior. Porque o assunto passa pelo adulto que recebe uma criança e a pode manter pequena sempre. É o que tenho observado na maior parte dos casos, quando os pais assumem um papel director da vida dos seus descendentes. Para que a criança cresça, têm que crescer nos pais, dentro dos pais, nos sentimentos e pensamentos dos pais. E dos adultos ao pé da pequenada. Mas, principalmente, nos sentimentos dos pais. Se quis mencionar Goya no assunto, é a causa de que o genial pintor ficou a sentir de que os adultos se matam entre eles, até que um adulto mais forte os come a todos. Eis que a minha questão não é simples. A criança cresce, se crescem os pais. Se os pais aceitam o ciclo de desenvolvimento que os mais novos têm perante eles, e que traz o desenvolvimento do adulto também. Embora, entre dois mundos diferentes: o mundo dos pais fica metido na história social do tempo da sua infância, o mundo dos descendentes emerge da época histórica que está a viver. E lutam por se defenderem. Porém, Jesus e Maria, David e Goliath. Dois mitos que orientam o comportamento do que deve ser a relação entre grandes e pequenos. A questão que queria pôr ao leitor, é muito simples: pensou já que é só na medida de que não substitua à pequenada e apoie as suas iniciativas, com carinho e orientação para a liberdade, que as crianças crescem?.

2. Jesus e Maria

Um mito, que serve de paradigma para o comportamento entre gerações. Especialmente, num povo cristão, católico ou não. É referido que o menino que a mulher está a criar, é a sabedoria. Ensinar não ajuda, é esse pequeno que ensina aos doutores da lei. É esse pequeno que fala em público e luta pela mudança da interacção. É esse pequeno que pode mudar a água em vinho. Pequeno que está sempre acompanhado pela sua mãe e, à distância, pelo pai. Que nem papel parece ter importância nenhuma na vida do enteado, Jesus filho dum espírito e duma mulher. Filho do mistério. Ideia que está sempre a bater sobre nós, na catequeses, nas conversas, nas práticas dos cristãos ortodoxos, essa grande maioria dos povos latinos, entre os quais Portugal. Esse povo que, ainda bom republicano, é cristão: disciplina heterogénea que com pecado se perdoa; deixar de fazer porque o milagre salva; não ouvir porque os ascendentes, com tudo, perdoam; gastar, porque os adultos pagam, como pagam tanta tralha que consomem. Jesus e Maria. Donde Jesus fala contra a ordem social - historicamente injusta nesse tempo -, e a mãe ouve, vê e apoia. Comportamento de centos de anos, que faz ao rebento arrogante, rebelde, submisso. Ao lar, não à sua própria auto estima, não ao seu narciso, não ao seu individualismo. Sim, ao do grupo que os pais nem conhecem. Sim, à concorrência que nestes dias é usada. Submisso ao correr dos pais à procura do, sempre, pequeno ser. Como Maria fez durante os trinta e três anos de luta de Jesus. História que todo educador deve conhecer, se quer entender porque é que os adultos não deixam crescer as crianças. Esses rebeldes sujeitos ao lar, que vivem e gastam nos seus divertimentos, do dinheiro que os seus adultos lhe dão. Para a sua causa pessoal. Eis que a educação actual devia emprestar os dinheiro aos estudantes, dinheiro que devia ser devolvido ou em trabalho social, ou em prestações após o primeiro emprego. E assim ajudar a libertar os mais novos do carinho patriarcal, grego-judaico, do lar. Que guarda o ser que cresce, como se ainda for menino ou menina. O que a catequeses diz. O que a opinião pública controla. Ai da criança que, crescida, trabalhe durante o seu tempo de férias grandes! Ai da criança que, se leva aos amigos a casa, não tenha o espaço todo do lar, para os atender. Ai da criança, cujos pais fogem para o quarto se os amigos aparecerem. Ai da criança que não interage com a geração com a qual convive. É essa a criança que os pais não deixam crescer. E que a educação pública actual, pretende libertar. Ajudando a entender o seu ciclo de vida, aos adultos, seus pais.

3. David e Goliath

Será que todos os ascendentes impedem o crescimento?
Não será que a interacção muda conforme o estrato social? Porque há adultos que precisam contar com os mais novos nas tarefas comuns do lar. Como sempre foi entre o operariado, ou na antiga vida rural que hoje morre. Ou entre os povos pastores. Uma divisão do trabalho, adequada ao entendimento do mais novo, acontece. Quem não tem meios para ajudar a viver aos seres que faz, precisa do acompanhamento da entidade humana, bem dotada como ela é, mas com parâmetros do real que ele não entende. Embora imite se a divisão do trabalho é amável e explicitada antes. Como acontece com esse outro mito que a poderosa catequese ensina. Um povo atacado por um gigante, perde muitos indivíduos. Até que um pequeno, com um brinquedo que sabe usar, o abate. Brinquedo que é uma fisga útil para tirar os frutos das árvores, útil para se defender dos animais, útil para lutar com os seus pares. Esse David do mito, entende que os seus estão em perigo e que morrem. Porque com eles anda todos os dias como outro igual. Porque os seus adultos não ocultam as suas preocupações. E, calado, porque foi ensinado a amar, atira uma pedrada e acaba com o problema. Ninguém estava à espera desta façanha. E o povo premeia ao rapaz imprevisível. Imprevisível para nós, que mal sabemos dos mitos que libertem do poder político, ou das ameaças externas ao grupo. A cultura cristã destas terras, se tem desenvolvido na ideia do mal e da autoridade de quem faz o bem. E quem faz o bem, não é o pastor de ovelhas David, é que faz o lucro. Lucro que a filharada vê os seus pais tentarem organizar. Até com o facto dessa filharada exibir a riqueza ou o poder do lar. Sem reparar que essa mesma filharada o que quer, é exibir a sua própria capacidade de lidar com outros seres humanos. Como David fez e foi feito rei. Do grupo, porque já era ouvido no lar.

4. A utopia

Não a de Tomas Moro (1516), nem a que me apresenta Haydn no seu quarteto com vozes humana (1808) que me acompanha nesta escrita. A utopia pela qual temos que lutar e que eu gostava dizer aos pais. Os filhos não são parte da nossa riqueza, têm vida própria. Os filhos não são para serem levados ao café de carro. Os filhos não são para pedir contas do que andam a fazer. Os filhos, se não são ensinados a serem autónomos e carinhosamente apoiados, vão contar discretamente o que andam a fazer na vida. Os filhos que partilham as problemáticas do lar. Esses lares de hoje, que vivem o neo-liberalismo do século XVII trazido até nos pelo poder político que decidiu entrar na CEE. Essa hoje União Europeia que, em poucos anos, empurrou à nova geração a ser concorrencial, autónoma e independente, enquanto os ainda jovens pais, são resultado do Portugal católico, autoritário, centrado na palavra do republicano poder que não consulta. Filhos autónomos de filhos solidários com a família. Porém, para onde é que se faz crescer aos filhos? Não será necessário que os ascendentes vão contando os seus assuntos com os seus iguais, para resolverem? Ou será que, por contar, vão revelar possibilidades de emprego, de desenvolvimento, de possibilidades que desejam guardar só para os seus? E, esse só guardar para os seus, não será a maneira triste de jogar o jogo do poder que visa dividir as famílias em indivíduos empresas? Será que os ascendentes entendem de que a ideologia de hoje, é fazer de todos, singularidades concorrenciais? Aí onde eles eram singularidades solidárias?. Queira o leitor entender que toda a questão das crianças, passa pela reformulação sistemática da emotividade: menos apaparicar, mais empreender. Para não ouvirmos as palavras usadas por Haydn no seu quarteto: Eli, Eli, lama asabathani, mas sim ouvirmos as também usadas palavras do Haydn: Pai, nas tuas mãos encomendo o meu espírito. É dizer, ancestrais, de vós é que depende o meu comportamento, vocês estão também a crescer, a crescer comigo para eu poder entender, não me deixem só em casa, não corram tanto atrás dos meios. Um carro é suficiente, o telefone de casa chega, temos sido pobres, não queiras ser rico à custa de mim. Pais, se chumbam no vosso objectivo, chumbam vocês. Se chumbam como pais, chumbam-nos.

Raul Iturra
Guarda, Beira Alta, 9 de Outubro.

 

Bibliografia

Araújo, HC e Stoer, S., 1993: Genealogias nas escolas: a capacidade de nos surpreender,
Afrontamento, Porto.

Benavente, Ana, 1990: Escola, Professoras e Processos de Mudança.
Livros Horizonte, Lisboa

Cortesão, Luiza et al.1981: Avaliação pedagógica I. Insucesso Escolar,
Porto Editora, Porto.

Goya, Francisco de, 1812: Gigante , óleo de 116x105 cm,
Museu de El Prado, Madrid.

Haydn, Joseph, 1801: As sete ultimas palavras de Cristo na Cruz,
quarteto opus 51, Viena de Áustria.

Miller, Alice, 1983 a): For your own good. The roots of violence In child rearing,
Faber and Faber, Londres.

Miller, Alice, 1983 b): The drama of being a child, Basic Books, Londres.

More, Sir Thomas, 1516, Utopy,
varias versões em vários Idiomas.


  
Ficha do Artigo
Imprimir Abrir como PDF

Edição:

N.º 74
Ano 7, Novembro 1998

Autoria:

Raúl Iturra
Instituto Superior das Ciências do Trabalho e da Empresa, Lisboa
Raúl Iturra
Instituto Superior das Ciências do Trabalho e da Empresa, Lisboa

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo