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A Questão do Social

A conversa surgiu a propósito da chamada emergência do social, que teria novas dimensões e formas de expressão, com a dignidade, entre aspas, de um tratamento mediático. As televisões abordam, por exemplo, o problema da droga em programas que têm, regra geral, altos níveis de audiência. Conclui-se, então, que o social interessa.,embora se passe ao largo de uma análise mais profunda sobre o conteúdo de tais abordagens mediatizadas. E adianta-se, muito convenientemente, que o social já não é o que era. E isto porque, dizem alguns, os políticos e os dirigentes sindicais teriam perdido o pé e estarão, há anos, afastados das coisas, só preocupados com as camadas médias da sociedade.
Para cruzar argumentos contra estas teses sentaram-se à mesma mesa Carvalho da Silva, coordenador da CGTP, Mário David Soares, coordenador do Sindicato dos Professores do Norte e dirigente da FENPROF e José Paulo Serralheiro, director do jornal "a Página" e também dirigente sindical dos professores, num encontro onde João Rita, convidado a moderar o debate, se limitou ao papel de observador atento, como um aluno numa turma onde não está matriculado.

A sociedade da caridade

Carvalho da Silva - Infelizmente a sociedade tem realidades que são muito mais profundas do que a que transparece da ideia da falência dos políticos e dos sindicatos. Se o problema da sociedade actual fosse o suposto distanciamento dos dirigentes partidários e sindicais, o problema já não existia. A sociedade, saudavelmente, já teria encontrado outros dirigentes políticos e outros dirigentes sindicais.
E a questão das camadas médias? É uma teoria que pretende impor a ideia de que o problema das sociedades de hoje é o problema dos excluidos e dos marginalizados. Quem tem trabalho será um privilegiado. Estes estão na tal camada média da sociedade e não gerariam preocupações. As preocupações devem virar-se para os marginalizados e para os excluídos, sem nenhuma relação com o trabalho, isto é, sem relação com o centro da sociedade, com aquilo que produz os equilíbrios e a dinâmica da sociedade. O estatuto social do indivíduo é obtido, na esmagadora maioria dos casos, do trabalho.
Não é inocente que tenha aparecido uma tese a defender a ideia de que a segurança social deve existir diluída num sistema de protecção social. Abandonando a essência da segurança social que é um sistema feito quando se tem trabalho para quando não se tem trabalho e que, como tal, tem na valorização do trabalho o seu eixo.
Não é inocente que certos sectores respondam aos anseios das populações dizendo que o que é preciso é subir as pensões de reformas de todos. As pensões mínimas, numa defesa da sociedade da caridade, porque o que é preciso é que os pobrezinhos existam mas sobrevivam...
(...) É curioso que, sendo o PP contra o salário mínimo nacional, venha, agora, pendurar as sua reivindicações sociais no salário mínimo nacional que deixará cair quando possa(...) Há nisto uma subversão da focagem do social

Mario David Soares - Há também a montagem da realidade como um espectáculo, nomeadamente na televisão. Quando, há dias, alguém me falou da questão da violência nas escolas, para um programa que também procurava o tal impacto mediático, o que queria era filmar um aluno a bater num professor . Mas esta não é a realidade das escolas. A realidade das escolas não é os alunos andarem a bater nos professores, mas se conseguisse filmar uma situação dessas, encenada para a televisão, transformava o espectáculo numa realidade que daria os tais índices de audiência.
O médio, o que é a realidade não importa. O que importa são as margens. E é daí que dizem que os sindicatos não se interessam pelos excluidos, pelos desempregados (o que é falso) tentando, por esta via, fazer com que deixem de interessar pelos que trabalham.

José Paulo Serralheiro - Infelizmente essa subversão tem também reflexos na escola. A tendência dos últimos anos no que respeito ao que é pedido à escola é também uma descentração daquilo que é a função principal da escola que é a de proporcionar informação e conhecimento.
A escola é cada vez mais solicitada a resolver os problemas sociais dos grupos marginais.
Quando se fala, por exemplo, de área-escola não se pensa em nada de organizado ou sistematizado que possa responder às diferenças culturais dos alunos, mas o que se quer é que a escola dê cada vez mais uma resposta aos problemas de natureza social dos grupos marginais, dos alunos que vêm dos bairros degradados, etc.
Não quero dizer que a escola não o deva dar. Mas é a escola que deve ser o pólo a partir do qual se responde aos problemas socias? Ou é a Comunidade que deve organizar-se para resolver esses problemas sendo a escola apenas mais um recurso? (...) Ou aceitamos que as comunidades hoje são comunidades desorganizadas, isto é, sem organizações sociais, sem resposta para o convívio dos jovens, para a aprendizagem de coisas que a escola não oferece?

Carvalho da Silva - O que o José Paulo diz leva-nos a fazer uma reflexão sobre qual o papel do trabalho na sociedade do presente e do futuro....

Trabalho, que papel?

Carvalho da Silva - A sociedade do presente e a sociedade do futuro terá o trabalho no centro. Não se perspectiva nenhuma organização da sociedade que diminua o número de membros que vão ter a sua inserção na sociedade pela via do trabalho .Todas as estatísticas mostram o contrário.
Às vezes diz-se diminui o emprego, centrando esta apreciação nos Estados unidos, na Europa , no Canadá e no Japão e pouco mais. Mas isto não é assim. Tem havido centenas e centenas de milhões de postos de trabalho criados nos últimos anos em todos os cantos do Mundo.
Mas depois diz-se, a população está a aumentar muito e os postos de trabalho que se criam não são suficientes para tal aumento. É uma questão que até hoje não está medida, mas não altera o que eu disse antes, que o número de empregos (no entendimento clássico do que é o emprego) , ou se quisermos usar outra linguagem, que o número de postos de trabalho está a aumentar. Mesmo na Europa. Não há nenhum país europeu onde o número de postos de trabalho, nos últimos anos, tenha diminuido
Diz-se que este século foi o da Liberdade, na linha do século XIX, e que o seguinte será o da Equidade. Há dias ouvi uma argumentação neste sentido, dizendo que talvez sim porque vai aumentar muito, em termos universais, o número de mulheres no trabalho. E está a aumentar, desde logo pelo anseio natural da igualdade
Por outro lado, há hoje desafios que impõem, obrigatoriamente, a criação de milhões e milhões de empregos, por exemplo nas áreas do ambiente e ecologia e nas novas tecnologias. Imaginemos quantos milhões de postos trabalhos vão ser necessários criar para recolher todos os plásticos e lixos que andam nos regatos, rios e ribeiros A utilização simples das tecnologias (...) A sua utilização simples implica o surgimento de um conjuno de actividades e isto impõe disponibilizar uma parte da riqueza para a sua criação. E neste campo não há sintonia.
A detenção do capital continua concentrada. Mas não vai haver saida. Vai obrigar a haver disponibilização de dinheiro para dar resposta a uma série destes problemas. Como vai ser feito para mim é uma interrogação muito grande, mas a questão da formação e distribuição da riqueza vai estar na ordem do dia.
E o papel do Estado, na reconsideração ampla do que deve ser o Estado hoje vai voltar. E com ele voltam a ter de ser equacionados os problemas do papel da escola ... Se isto não fosse assim, estavamos numa outra vertente que nos levava à destruição rápida do trabalho. Vide o "Horror Económico".
Se o trabalho não estiver no centro, isto desvirtua-se e dentro de pouco tempo os excluidos não são os excluidos de hoje, serão os trabalhadores. Se o problema da sociedade é o facto das margens estarem a aumentar e a tornarem-se dominantes, então os trabalhadores dentro de pouco tempo seriam os excluidos, isto é, aqueles a quem não era dado mais nada do que aos outros e ainda tinham o sacrifício do trabalho.
Daí que essas teorias que apontam o falso caminho da protecção social, desfocalizado do trabalho, negavam a própria organização da sociedade a um prazo muito curto. Ora isto não é visível . Que se preparam para, no meio de tudo isto, manter uma margem enorme , onde estão os excluidos, a quem não é permitido sequer o acesso ao trabalho. Mas que o trabalho vai lá estar no centro, vai.

A questão da escola.

A questão que o José Paulo coloca. A escola formação e conhecimento. Eu acho que essa é que é a batalha. Ouvimos desafios à escola como esse já referido, de ter de responder aos problemas sociais. Tem de os ter presentes, mas a escola tem um espaço próprio. Os problemas sociais que hoje querem empurrar para a escola devem, muitos deles, regressar à origem. Muitos são de organização e de intervenção na sociedade dos indivíduos. Essa ideia de que a escola deve tratar dos problemas da droga, dos tempos livres, é um absurdo. A sociedade tem de ser obrigada a intervir. Este é um caminho, mas há outro, o do trabalho.
Se há uma pulverização de profissões, a escola deve ter em atenção uma formação base, suficientemente ampla para que, depois, as pessoas possam escolher no trabalho. Há décadas atrás havia empresas que eram espaços de formação do trabalhador. Agora, as empresas dizem que a escola e o Estado é que os devem preparar, nas especialidades e nas quantidades que pretendem a cada momento. Como se isso fosse possível.
Tem de haver formações virados para o trabalho (...)

José Paulo Serralheiro - A propósito lembro-me de um professor que me disse, quando acabei o curso, que eu passaria à categoria de licenciado, isto é, passava a ter licença para aprender por mim mesmo, sem necessidade de uma instituição para aprender...
Nós hoje estamos a assistir, no Ensino Superior, a que a uma licenciatura se siga logo o mestrado... Mesmo nas licenciaturas viradas para a docência, as componentes de formação estruturada que permitam ao indivíduo inserir-se noutras estruturas sociais e continuar a aprender, estão a baixar...

José Paulo Serralheiro - A organização das sociedades fez-se sempre em torno do trabalho. Até nas sociedades primitivas as pessoas organizavam-se para ir à caça ou à pesca. É aquilo que permite que a sociedade sobreviva... Épocas houve em que um indivíduo se tornava adulto quando era capaz de produzir alguma coisa para a sociedade.

Carvalho da Silva - A organização da sociedade nunca foi para o não fazer. Foi sempre para o fazer.

João Rita - Não fazer era a organização no paraíso...

O paraíso perdido

Mário David Soares - Todo esse discurso tem uma base ideológica muito profunda. Assenta na ideia fundamental de que é preciso desvalorizar quem trabalha. Se desvalorizar quem trabalha posso pagar menos, distribuir a riqueza de outra maneira. Até posso gastar milhões com os excluidos, mas não com quem trabalha.
Caso escandaloso são os rendimentos da bolsa, sem impostos, em contraste com os rendimentos do trabalho.que pagam os impostos todos... Há aqui um fio condutor que vai sempre dar à desvalorização do trabalho. Há quem pretenda que o trabalho não tenha valor social

Carvalho da Silva - (...) - Esta desvalorização social do trabalho verifica-se com maior acuidade no nosso país, por força das opções estratégicas de desenvolvimento dos últimos anos. Veja-se o caso da Agricultura. As opções políticas dos últimos anos e a Política Agrícola Comum Europeia, que se conduz pelas estratégias das multinacionais e não pela capacidade da terra, fez com que, em Portugal, se assista a reivindicações de sectores agrícolas que não tem nada a ver com qualquer estratégia de desenvolvimento agrícola.
As recentes reclamações da CAP, com honras de directos na SIC e noutras meios de comunicação, visam a obtenção de subsídos. A CAP não fez tais movimentações para afirnar qualquer estratégia de desenvolvimento , mas apenas para tentar sacar mais uns milhões de subsídios
Neste sentido também está a desvalorizar o trabalho.
Eu conheço um agricultor, do Norte, cuja exploração é do tipo familiar, que dedica um dia por semana para ir à sede do concelho saber qual a legislação que saiu nessa semana e como pode ou não candidatar-se a este ou àquele subsídio.
Ciclicamente muda de produção, em função dos apoios e reconhece que o dia em que vai à sede do concelho é o mais produtivo. Isto também é uma desvirtuação do trabalho. O que se passa na Agricultura é um dos expoentes, do ponto de vista estratégico, é a questão que nós estavamos a abordar na desvalorização do trabalho agora colacada numa dimensão estratégica.
Podíamos também pegar no caso das pescas. É um crime, menos exposto do que o da Agricultura mas talvez muito mais grave. É um caso menos visível por que o núcleo daqueles que se aproveitam deste processo de destruição é mais centrado.

Desafios

De tudo isto , como é que passamos para a questão sindical e alguns desafios na relação trabalho / educação. Do meu ponto de vista, as saídas na sociedade, à esquerda, no sentido do progresso, passam por uma reflexão e um retomar de propostas que tenham relação com esta questão de revalorizar o trabalhar.
Com a consciência que há camadas, nesta sociedade de consumo e de lucro sobre lucro, camadas inclusivamente de explorados, que, em função desta dinâmica, que parece que lhes oferece tudo e mais alguma coisa, já não estão mentalmente disponíveis para simplisticamente receber esta mensagem da revalorização do trabalho.
Neste contexto, os sindicatos devem salvaguardar os direitos que foram consolidados mas, simultaneamente, antecipar os problemas e, por ultimo, a reafirmação dos valores. Se queremos uma alternativa a esta sociedade e se pensamos, à esquerda, que tal passa mesmo pela valorização do trabalho, temos que reafirmar valores.
Como é que na escola se faz a valorização do trabalho? Em termos de valores? Que discussão se faz sobre o que é produtivo na sociedade de hoje? Há quem use um a definição do produtivo do tempo do Marx para negar uma reflexão sobre o que é hoje analisar o produtivo.

José Paulo Serralheiro - O próprio professor tem de saber o que privilegiar. A formação do aluno enquanto consumidor ? O aluno enquanto trabalhador ? (...) Perder a perspectiva de que estamos a formar alunos que vão ser trabalhadores, é correr o risco de transformar a escola num santuário para o consumo, agravado pela formação contínua, nesse campo, desenvolvido pela televisão...

(...)

Uma conversa inacabada,
recolhida num dia em que as manchetes dos jornais portugueses
coincidiam na ideia
de que as bolsas de valores
viviam momentos de pânico.

 


  
Ficha do Artigo
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Edição:

N.º 74
Ano 7, Novembro 1998

Autoria:

José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.
José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.

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