Página  >  Edições  >  N.º 70  >  Entrevista com

Entrevista com

 

Ivo Ponces Domingues é licenciado em Ensino de História e Ciências Sociais pela Universidade do Minho, tendo leccionado no ensino secundário até 1988. É nessa altura admitido como assistente-estagiário no Instituto de Educação da Universidade do Minho, onde é responsável pela cadeira de Teoria Curricular, Sociologia da Educação e Administração Escolar. Investigando, na perspectiva sociológica e organizacional, o controlo disciplinar nas escolas do ensino secundário, publicou o livro 'Controlo Disciplinar - Processos e Práticas'. Há dois anos abandonou a investigação das organizações escolares para se dedicar ao mestrado em gestão da qualidade nas organizações industriais. Mantém, ao mesmo tempo, um estudo sociológico sobre formas de 'copianço' na universidade, praticamente no prelo.


P- Sob que perspectiva se deve entender o controlo disciplinar, tal como o descreve no seu livro?
R- Enquanto sociólogo, interessou-me analisar a perspectiva sociológica do controlo disciplinar. Podemos, eventualmente, analisá-lo em duas perspectivas. Uma delas é aquela que eu restrinjo mais ao nível da disciplinação. Nesse caso, o conceito pode conduzir-nos para um processo de interiorização de normas e de colocação normativa, por um lado, e à correcção de comportamentos, por outro.
No caso das escolas, as práticas disciplinares ocorrem num contexto social e organizacional que concede às práticas da disciplinação variáveis distintas. Neste campo, seria talvez preferível abranger o conselho de controlo escolar para além da disciplinação propriamente dita, e alargá-la a todo o tipo de práticas formais e informais, singulares e colectivas, e procurar analisá-las sobretudo enquanto comportamentos situados, no espaço, no tempo, na relação.
P -Em que limites se inscreve o 'padrão de comportamento aceitável' a que também se refere?
R - É complicado. Essa é, porventura, uma das principais características da realidade pedagógica e disciplinar das escolas. Se partirmos do pressuposto que todo o comportamento é situado, e que as práticas são simultaneamente determinadas pelas estruturas, constituindo simultaneamente um constrangimento e uma oportunidade para a criatividade social, pedagógica e disciplinar, todas as práticas escolares podem ser situadas e contextualizadas.
A esse nível, elas dependem de factores tão simples como a organização do espaço da sala, a hora da aula, a maneira como correu a aula anterior, as práticas pedagógicas, etc... Nós não fazemos apenas a transferência das representações sociais, fazemos também transferências de carácter emocional, de espaço para espaço, de tempo para tempo. Dependem também do período do ano lectivo em que ocorre, da relação que se estabelece entre alunos e professores, e entre os professores que leccionam a mesma turma.
P - Não existe, portanto, um conceito linear de comportamento aceitável...
R - Não. E essa é uma das características curiosas das práticas disciplinares. Parece não haver uma definição consensual daquilo que é um comportamento disciplinado e indisciplinado. Os professores têm, naturalmente, representações daquilo que é um bom aluno e um mau aluno, têm representações também do que é correcto e do que não é correcto. Poderemos aí encontrar alguma uniformidade, mas parece-me que a heterogeneidade se lhe sobrepõe. E estamos apenas ao nível das representações, do cognitivo.
Quando se passa ao nível da acção, a diversidade de práticas é ainda maior. A nossa actividade prática alarga as fronteiras das representações sociais em torno de alguns objectos, nomeadamente porque todos os actores têm deveres e as situações são específicas. Eu diria que não há representações uniformes, entre os professores, daquilo que é a disciplina e o controlo disciplinar. Também as não há entre os alunos, embora admita, do ponto de vista teórico, que elas sejam mais uniformes entre alunos do que entre professores. As práticas serão eventualmente mais heterogéneas do que as representações sociais.
P -De que factores dependem, em grande medida, as atitudes de disciplina e de indisciplina?
R - De um sem número de factores. Os professores alegam que o principal factor da indisciplina é a origem familiar e social dos alunos. Isto desloca para fora da escola alguma responsabilidade pelos fenómenos de indisciplina gerados no seu interior. Nessa medida, será preferível falar não em causas mas em razões. Se calhar existem mais racionalidades sobre a indisciplina do que causalidades conhecidas e diagnosticadas.
Não ignorando que a organização escolar vive dum contexto demográfico, social, económico e cultural, o ambiente em que uma organização está instalada naturalmente que influencia o seus processos, e isso acontece com qualquer organização, da mais coerciva à mais normativa.
Se quisermos recensear causas com as limitações teóricas que se devem conceder a essa relação de causalidade, diria que os principais factores da indisciplina podem ser muito mais organizacionais e situacianistas.
P - Implicando, então, a organização interna da própria escola?
R - A escola acaba por ser uma organização algo coerciva, utilitarista e normativa, convivendo os alunos, de forma variável, com estes três tipos de participação. À escola, de forma igualmente variável, correspondem também estes três tipos de poderes.
Mas voltando à questão das práticas disciplinares, considero que os professores procuram, no âmbito da sua actividade disciplinar, criar condições para a actividade pedagógica, mais do que produzir ou orientar-se por um conjunto de valores ao abrigo dos quais gostariam de 'moldar' a personalidade dos alunos.
Os professores organizam mais as suas práticas em torno da socialização comportamental, necessária à realização da sua prática pedagógica, do que da socialização normativa. Nessa medida, o controlo disciplinar pode não funcionar como um meio para a formação dos alunos, mas como um fim em si mesmo necessário às realizações profissionais do ensino.
Afinal, todas as organizações, exceptualizando algumas de carácter mais voluntarista, possuem, em graus diferentes, esses três níveis de poderes. E a escola não é excepção: teve-os, tem-nos e te-los-à.
P - São inerentes à própria organização escolar...
R - Eles são estruturantes. Não são propriedade da organização escolar. Conviria, de um ponto de vista mais ideológico e em função de um padrão ideal de alunos, que a escola tivesse um carácter mais normativo, do que coercivo e utilitário. Mas provavelmente teremos de alargar a visão da escola - e quando falo de escola refiro-me ao três ciclos do ensino básico e ao ensino secundário -, a todas as instituições de educação formal.
Refiro-me mais concretamente às universidades onde, olhando de relance para as praxes académicas, encontramos situações de ausência da função normativa da escola. Se calhar a justificar alguma acção coerciva, que raramente ocorre.
P - Porquê que um dos domínios onde os professores sentem mais dificuldade é exactamente no controlo disciplinar?
R - São eles quem o dizem ou o revelam, em diferentes situações e de diversas formas, no estudo que realizei.
A relação pedagógica é essencialmente uma relação social. Ela põe em contacto professores e alunos de uma forma organizada, mais ou menos permanente e periódica, e organizadora da interacção que se materializa num determinado espaço e tempo.
O aumento das taxas de escolarização, introduzido pelas políticas sociais de escolarização de massas, implicaram o aumento da população escolar e do número de alunos por professor, e acentuaram essa relação. Pretendo com isto dizer que quanto maior é o grupo com o qual um professor se relaciona, maior é a dificuldade que ele encontra em controlar a turma.
E essa necessidade de controlo é tanto maior quanto maior é a divergência entre os interesses do aluno e os do professor. Eles nem sempre são convergentes, e quando isso acontece não o são de igual forma para todos os alunos. Essa divergência de interesses, situados no espaço e no tempo, leva a que os alunos manifestem comportamentos desruptivos, que os professores tentam controlar como podem.
A indisciplina pode emergir enquanto fenómeno natural da participação e organização escolares, mas, por também poderá derivar da falar da falta de organização para o controlo disciplinar, numa perspectiva colectiva, organizada, estratégica, da escola e dos professores.
Os órgãos escolares não encaram a disciplina de forma coerente, ou pelo menos não o fazem sempre, e os professores também não têm uma linearidade padronizada que reduza a incerteza da sua acção disciplinar. Por vezes, e porque não comungam das mesmas opiniões, crenças e práticas, criam mais problemas do que resolvem.

Os pais, que podiam ser agentes igualmente interessados, e admito que úteis, no controlo preventivo da indisciplina, também são vistos pelos professores de um modo muito instrumental. Funcionam mais enquanto canais de comunicação das preocupações e indicações dos professores, do que propriamente como parceiros na educação, actividade que os professores reclamam em exclusivo.
P - Que pistas aponta no sentido de reforçar a relação entre os encarregados de educação e a escola?
R - É difícil. Ainda que se façam todas as estruturações, possíveis e imaginárias, conducentes à melhoria dos processos de controlo disciplinar, isso só reforçaria a função coerciva da escola. É verdade que poderia funcionar como componente preventiva, mas com facilidade se avolumaria a componente coerciva. Se calhar permaneceriam as causas sociais e organizacionais dessa indisciplina, ou as condições que, se não a geram directamente, pelos menos a permite.
P - Que tipos de mecanismos é que pensa poderem estar por trás da correcção da indisciplina na escola?
R - Seria demasiado fácil responder a essa pergunta recorrendo a soluções do senso comum, mas receio ter uma visão pessimista da questão. Se me pede uma visão mais pragmática e orientada para a acção da escola no que toca ao controlo disciplinar, acho difícil resolvê-la. Por causa de problemas que são estruturais, sociais e organizacionais...
P - Como por exemplo...
R - Como por exemplo a tecnologia pedagógica. Não tenhamos dúvidas que a forma de ensinar, os meios convocados para a comunicação dos conteúdos programáticos, gerarão eles mesmo indisciplina. E não quero com isto dizer que os professores estão equivocados quanto aos meios e às técnicas de ensino que utilizam, ou que exista nesta afirmação, pelo menos implicitamente, alguma indelével acusação às suas práticas profissionais. Não é isso, até porque dentro das circunstâncias em que eles trabalham não será fácil exigir-lhes mais.
E é aqui que receio ter uma visão algo fatalista da questão. Se calhar não há condições, por muitas razões, para os professores alterarem substancialmente a sua tecnologia de ensino, e para os alunos, por sua vez, terem expectativas no domínio da aprendizagem, dificilmente estimuladas por essas tecnologias de ensino.
Aqui reside uma divergência básica. Se analisarmos os valores das sub-culturas juvenis, vemos que os jovens gostam de situações em que podem manifestar alguma expressão do seu carácter, em torno da sua poesia ou da forma de estar na vida. Gostam de situações ligadas ao movimento, ao dinamismo, à actividade quase permanente. É uma questão de observarmos, em termos sociais, e em termos mais latos e externamente à escola, o espaço que eles buscam, as relações que estruturam nesse espaço, porque o fazem e com quem o fazem.
E naturalmente que essas motivações, mais ligadas à convivialidade e ao prazer, e a algum edonismo também, não encontram na escola grandes espaços de realização. Não é raro encontrar alunos que classificam as aulas como uma 'seca'.
Boa parte da competência dos professores devia ser avaliada não só em função da sua capacidade de ensinar, mas também de recriar. Não basta um professor ser cientificamente bem apetrechado, ele tem de ter um extraordinário poder de comunicação. Comunicar é pôr em comum. E as técnicas usadas para produzir essa comunhão de saberes cognitivos, nem sempre são estimulantes. Isto é uma realidade estrutural que se calhar ultrapassa a vontade dos agentes.
Penso que caminharemos ao longo dos tempos em busca de uma escola ideal, que se calhar não tem muitas possibilidades de se concretizar na forma ideal. Mas no actual sistema não deixa de haver professores e alunos bem sucedidos.
E se calhar devíamos juntar a prevenção à correcção.
Um acto indisciplinado, por ser imputado como um desvio e ser sujeito ao tratamento colectivo da organização, através de um processo disciplinar, devia ser encarado como uma oportunidade para socializar os jovens para os mecanismos judiciais que regem a sociedade. O controlo disciplinar podia ser visto como um jogo, onde a representação de papéis poderia permitir diagnosticar mais facilmente o problema, através de uma maior responsabilização de todos os agentes.
Essa visão de processo disciplinar como um processo de socialização e participação dos jovens na colectividade, porém, não é vista assim pelos educadores. Diria que nesse contexto os órgãos jurídicos seguem uma racionalidade muito pragmática, nalguns casos instrumental e calculista. A escola pratica uma desvalorização dos processos disciplinares.
P - Diz a certa altura do seu estudo que o controlo disciplinar não se apresenta como uma tecnologia uniforme e disciplinada, antes se revelando uma arte subjectiva, desconexa e descontínua. Diz, também, possuir um carácter tão dessolidário e insensato, que chega a dar da escola a imagem de um mundo absurdo. Pode explicar melhor?
R - Na investigação que produzi segui um modelo de análise organizacional designada por 'anarquia organizada'. Segundo esse modelo, as organizações ou têm objectivos insípidos e indefinidos, ou escolhem os objectivos pela análise dos efeitos da acção, mais do que pelos seus objectivos antes de agir, ou não têm, sequer, qualquer objectivo.
Por outro lado, e de acordo com o mesmo modelo, a participação das pessoas nas organizações é irregular na forma, na intensidade, no tempo e no espaço. No caso da escola, as tecnologias pedagógica e disciplinares são incertas e erráticas.
P - Mas é nesse contexto que se refere à escola como mundo absurdo?
R - No que toca ao controlo disciplinar, e provavelmente noutros domínios que agora não interessa abordar, a organização escolar e os agentes educativos não têm objectivos claros daquilo que pretendem.
As práticas de controlo disciplinar são muitas vezes anuladas pela própria acção dos professores, que nem sempre têm estratégias convergentes. De resto, há situações em que alguns docentes tiram partido dos problemas disciplinares de alunos e colegas. Alunos, professores e órgãos da escola nem sempre têm o mesmo tipo de empenhamento e de preocupações no controlo disciplinar.
P- Funcionam de forma antagónica?
R - Eu não diria antagónica, embora admita que possa parecer. Mas é seguramente um mundo paradoxal. A prática disciplinar na organização escolar está cheio de paradoxos. E esses paradoxos fazem parte das estruturas de acção educativa e disciplinar, sendo ao mesmo tempo um mundo de oportunidade e criatividade de novas acções e práticas disciplinares. São simultaneamente um constrangimento e uma oportunidade.
A quê que todos nós damos importância no espaço-tempo da nossa existência quotidiana? Damos importância aquilo que nos afecta ou que, de alguma forma, se revela importante. Diariamente seguimos e construímos racionalidades. Essas racionalidades podem ser pré-activas ou rectroactivas em relação ao nosso comportamento.
O controlo disciplinar é realizado em situações pedagógicas nas quais os professores têm de gerir um conjunto diverso de constrangimentos. Muitas vezes são constrangimentos de natureza pedagógica, curricular, espacial, mas constrangem de facto a sua acção.
Às vezes é preciso tomar decisões fulcrais num curto espaço de tempo, em fracções de segundo. Decisões disciplinares profundamente importantes para o professor, para o aluno e para a relação entre ambos, que podem ter efeitos de curta duração no primeiro, mas que para o segundo podem revelar-se decisivos e marcantes. Especialmente quando os alunos não têm uma estratégia académica orientada para o sucesso, nem têm a mesma forma de participação ou visão da escola e do futuro.
Por isso, uma boa parte do carácter paradoxal do controlo disciplinar advém das condições sócio-organizacionais em que ele é feito. Perante um problema disciplinar, tomar decisões rápidas, eficazes, coerentes e justas, exigem do professor uma sensatez da qual, mesmo tendo-a, pode nem sempre fazer bom uso.
O educador sabe que na relação pedagógica professor-aluno ele nunca pode perder o poder. No momento em que ele perde o controlo sobre um aluno indisciplinado ou sobre o conjunto dos alunos, ele deixa de ser professor. Pelo menos, avaliando-o à luz da sua representação social.
Tenho algum receio que alguns professores possam ver neste livro algum corpo de ideias e de conceitos que penalizam as sua práticas profissionais. No entanto, ele procura ser apenas um instrumento de descrição e de compreensão das práticas disciplinares que foram observadas, sem juízos de valor relativamente aos comportamentos quer de alunos quer de professores.

Entrevista conduzida por Ricardo Jorge Costa


  
Ficha do Artigo
Imprimir Abrir como PDF

Edição:

N.º 70
Ano 7, Julho 1998

Autoria:

Ivo Ponces Domingues
Instituto de Educação da Universidade do Minho
Ivo Ponces Domingues
Instituto de Educação da Universidade do Minho

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo