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Matemática, Ensino e Cultura

Cada nova geração que surge sobre a Terra apropria e reinterpreta os saberes que capta das gerações anteriores, isto é, redefine-os, e é sobre esta nova base de representação da realidade que operam as velhas práticas que se mantêm, bem como as novas instituições e as novas ideias que se criam. É este conjunto que vai sustentar a actividade societal até que uma nova geração venha recomeçar este processo.
Mas o procedimento para sobrevivência é muito mais complexo do que esta simples descrição. Uma geração não aparece isolada, não funciona sozinha; ela é guiada nas suas conjecturas pelos registos materiais (físicos, patrimoniais, infraestruturais) e escritos a que tem acesso. A sua actividade realiza-se no quadro de uma comunicação continuada com elementos quer da sua, quer de gerações anteriores, sentindo igualmente a necessidade de circular os saberes adquiridos pelas gerações que se lhe seguem.
É esta actividade comunicativa social que assegura a perenidade dos vários grupos que formam a espécie humana; às suas características globais, aos valores e percepções que promove e estimula em cada período histórico, corresponde o 'espírito da época'. Por aqui se vê quão difícil é fazer coisas novas, a não ser em casos de alteração substancial ou catastrófica do meio exterior, na medida em que novos significados, novas linguagens, tem não só que se adequar à realidade, isto é tem que ser eficazes na acção a que respeitam, como também precisam ser apropriadas socialmente, quer dizer aceites por uma comunidade. De outro modo, são consideradas uma excentridade.
Para sobreviver pois, é preciso conhecer; a capacidade de aprender está deste modo no centro da nossa possibilidade de existir. A aprendizagem é uma tarefa essencial da nossa sociedade .
Quanto mais elaborada, ou mais complexa, é a linguagem em que se exprime um determinado saber, tanto mais custosa se torna a sua aprendizagem, obrigando a uma maior afectação de recursos (tempo, por exemplo) a esta actividade. Por isso não admira que em sociedades altamente hierarquizadas, onde a acumulação material se dá apenas no topo, a compreensão dos saberes essenciais ao seu funcionamento distinga apenas um número muito restrito dos seus membros.
Porém, a modernidade que irrompe há quinhentos anos atrás faz do alargamento da circulação de conhecimentos o seu maior trunfo, apoiando-se sem sombra de dúvida num novo 'media': a imprensa.
O que acontece nessa época de essencial é a afirmação de uma nova cultura, que faz repousar a sua legitimidade na operação eficiente de uma cada vez mais vasta rede de trocas comerciais, reanimando alguns velhos circuitos, criando outros completamente novos, ajudada por uma demografia com saldos globais positivos.
A autoridade hegemónica na Europa de então, a Igreja Católica, bem lutou contra a arremetida dos príncipes apoiados por mercadores, negociantes e banqueiros. Mas a redescoberta de grande obras do pensamento clássico, bem como a rede de comunicação alargada que se estabeleceu com base na imprensa escrita, a que veio adicionar-se o poder económico das grandes cortes, desafiava as bases do poder do Vaticano sobre as nações católicas.
As novas descobertas - de novas gentes, de novos céus e novas estrelas - fizeram estremecer o edifício ideológico dominante. A sensação que se respirou nessa época é a de que os novos feitos ultrapassaram em grandeza os maiores dos antigos.
A nova visão do mundo favoreceu uma perspectiva quantitativa. Para isso muito ajudou o conhecimento transferido dos matemáticos árabes e a notável integração de conhecimentos realizada pela civilização islamita.
A revolução comercial e industrial que ocorre na Europa a partir do século XVIII, baseada em pressupostos no domínio económico, levando ao abaixamento do custo do transporte de mercadorias, permitindo e necessitando da utilização intensiva de máquinas e de fontes de energia diversificadas, tornou favorável o quadro de expansão e consolidação de uma nova área cognitiva, a área das ciências, ligada às necessidades de descoberta de novos recursos 'naturais' e à sua transformação em produtos 'úteis' em crescente quantidade.
A criação de diferentes disciplinas científicas, a tendência para a especialização dos seus domínios e a noção de aplicabilidade dos conhecimentos científicos, tornou a aprendizagem da ciência um assunto de importância básica para o funcionamento da sociedade em industrialização, que foi necessário profissionalizar, a par dos outros saberes que permitiam a sua administração.
Põe-se por vezes a questão de a matemática, por exemplo, ser englobável numa mesma área cognitiva juntamente com as outras ciências. Claro que a matemática possui problemas próprios, que derivam de conjecturas no âmbito das suas linguagens específicas e que não tem ligação imediata com a interacção dos humanos com a natureza. Mas, por outro lado, é óbvio que os fundamentos da matemática radicam, com os de qualquer outro domínio científico básico, nas preocupações que acompanham os principais desenvolvimentos técnicos das sociedades humanas. E quanto aos problemas próprios, aqueles que se manifestam como cruciais para o progresso da matemática, esses raramente são alheios às grandes questões científicas do seu tempo.
Vemos assim como o ensino da matemática é uma tarefa tão central do presente, afinal, de qualquer presente de uma sociedade que se queira moderna.
Ensinar é uma mágica. Porque ao ensinar não se trata essencialmente de transmitir conhecimentos, ou de desfiar um rosário de informações. O que está em causa no ensino é suscitar a curiosidade, é fomentar a imaginação, usando como ferramenta uma conjectura que se propõe ao aluno, que a ela adere, recriando-a, porque a 'descobre'. E é gerar a confiança nessa capacidade de conjectura que constitui a essência do processo de aprendizagem .
É claro que para que se crie o gosto de aprender será preciso fornecer bases que permitam ao aluno confiar na sua habilidade para conjecturar. Será preciso estimulá-lo ao princípio, encaminhá-lo nalgumas voltas do caminho mais tortuosas, adverti-lo dos riscos que poderão ser assumidos, reconhecer-lhe o esforço despendido.
Bento de Jesus Caraça possuía inegavelmente esse dom. A atestá-lo está todo o conjunto de testemunhos dos seus alunos e dos outros jovens e não-jovens que com ele aprenderam o gosto pela matemática, pela ciência e pela cultura. A atestá-lo está, também, toda a obra que deixou escrita e que, nos seus traços essenciais, tão actual permanece.
Hoje em dia, com o alargamento das condições de acesso ao ensino e com a introdução de novos e poderosos 'media', são-nos postas questões que implicam fortemente com a capacidade de aperfeiçoamento da democracia em que vivemos, bem como com o reforço da coesão da sociedade que construímos. A discussão sobre 'qual educação e que ensino' é inseparável do projecto de futuro por que ambicionamos.

João Caraça

Professor
Director dos Serviços da Ciência, Fundação Calouste Gulbenkian

 


  
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Edição:

N.º 69
Ano 7, Junho 1998

Autoria:

João Caraça
Professor. Director dos Serviços da Ciência, Fundação Calouste Gulbenkian
João Caraça
Professor. Director dos Serviços da Ciência, Fundação Calouste Gulbenkian

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