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'Na hora da Separação'

Há dois números atrás descrevi para este espaço uma experiência por mim vivida com uma turma do 10º ano ('recristalização') no âmbito da leccionação da disciplina de C.T.V. . Encontrava-me a leccionar esta turma em substituição da professora que lhe tinha sido destinada uma vez que esta se encontrava com uma redução temporária no horário. O meu serviço com esta turma terminou no final do segundo período.
No último dia de aulas do período, tinha ainda um teste para entregar o que fiz logo no início da aula, de seguida procedi a uma breve abordagem da correcção do mesmo e passei então a uma discussão que habitualmente gosto do fazer sobre a avaliação dos alunos. Terminada esta, dirigi-me aos alunos informando-os que tal como tinham sido avisados esta tinha sido a última aula que eu lhes dava, pelo menos neste ano lectivo. Referi então que tinha sido para mim um prazer trabalhar com esta turma e, quando me preparava para prosseguir com mais algumas referências aos bons momentos que constituíram o meu trabalho naquela turma, e também aos maus (as notas estão ainda longe de satisfazerem quem quer que seja), um dos alunos, muito timidamente, interrompeu-me:
- Professor, nós temos aqui uma pequena lembrança.
Em cima de uma das mesas de trabalho encontrava-se uma pequeno saco de papel, que um deles se apreçou em fazer chegar ao pé de mim, estavam todos muito silenciosos. Informei-os de que como nunca tinha aceite nada de qualquer aluno e não pretendia abrir precedentes. Muito rapidamente outro aluno indignou-se e marcou posição:
- Não nos faça essa desfeita.
Outro argumentou: - não é só a lembrança temos também uma coisa escrita.
Respondi: se têm uma coisa escrita podem lê-la. Ainda faltavam alguns minutos para tocar.
A delegada de turma, por sugestão minha levantou-se e leu o que me tinham escrito. Fiquei transtornadíssimo, tal o significado que aquelas palavras pretendiam representar. Não obstante, um dos parágrafos marcou-me de uma forma especial. Passo a citar:
(...) Por tudo isto um grande obrigado, porque sempre nos vamos lembrar que um dia tivemos um professor transformava a sala de aula num convívio entre amigos em que mesmo sem querer aprendíamos as coisas, mas não só matéria, aprendíamos também a viver. (...)
Não pretendendo ser piegas, e deixando falsas modéstias de lado, ao ouvir estas palavras, fiquei pleno de orgulho, não obstante e em termos racionais, a situação gerar em mim um crescente desconforto.
Uma incógnita estava a instalar-se no meu pensamento: o que foi que motivou estes alunos para a disciplina? As metodologias que fui utilizando ao longo dos dois períodos em que trabalhei? Ou simplesmente uma relação de afectividade que se foi estabelecendo ao verificar-se apenas esta causa uma vez com outro professor, poderia acontecer um descalabro.
Realmente em determinados momentos, encontrava-os totalmente desmotivados, com vontade de desistir e recomeçar no ano seguinte, mas numa outra área de estudos. Nesses momentos parava o trabalho e conversava com eles sobre a beleza? E desculpem-me se é com garbo que digo isto, o que constitui todo e qualquer estudo na área das ciências naturais, mais uma vez, sem falsa modéstia, quando digo algo neste âmbito, a paixão com que aplico nas palavras é real. Noutras situações procurei também aconselhá-los sobre as alternativas profissionais ao permanecerem nesta área, já que à partida, para estes alunos quem escolhia este agrupamento, só poderia ser médico.
Terminaram as aulas e ao desconforto inicial surgiu uma enorme preocupação, tal era a apreensão que o episódio gerou em mim. Uma relação professor aluno e como qualquer relação humana, e isto segundo a minha experiência, envolve sempre, e por muito que o tentemos evitar, aspectos emocionais. Um factor tão determinante como a motivação do aluno perante os assuntos trabalhados numa disciplina, dependem sempre da forma como esse aluno encara o professor que a está a leccionar.
Estes alunos, são agora pequenos rebentos que germinaram em condições físicas e químicas, por mim consideraras ideias. O meu receio prende-se com a possibilidade de as mesmas não terem sido alcançadas um tanto ou quanto artificialmente, desde há bastante tempo que evito comprar plantas de estufa; pois e embora nesse ambiente em que as criam estas apresentem um aspecto fabuloso, uma vez fora do mesmo, a maior parte não se consegue adaptar e perde muito da sua vitalidade, acabando mesmo por morrer. Isto, porque na estufa, onde germinaram e viveram os primeiros tempos de vida, as condições (temperatura, luminosidade, ausência de correntes de ar,...) foram demasiado perfeitas, e nas nossas casas ou jardins nada costuma ser tão perfeito.
Na estufa que eu terei constituído para estes alunos a perfeição não terá sido tão grande, pois de certeza que deixei entrar muitas correntes de ar e o seu termóstato avaria-se com facilidade. O meu receio, e grande erro está no suporte em que estes rebentos foram crescendo, ou seja condicionei-os (sem me aperceber) demasiado à relação afectiva que se foi estabelecendo. A questão que se me põe neste momento é sobre a que lhes acontecerá ao serem transplantadas para um solo com outras características, ou onde pelo menos o aspecto afectividade não seja tão marcante.
Procedi a uma revisão relativa ao trabalho efectuado com esta turma, analisei os conteúdos abordados, as estratégias adoptadas, os testes (que ao que parece eram bastante 'puxados'), conversei com a colega que ficou com eles e o meu receio de certa forma desvaneceu-se afinal de contas a nível lectivo o meu trabalho foi bastante positivo. O facto de os alunos se manifestarem desta forma pode não ser motivo da tal preocupação. Naquele momento, e embora sem sequer haver necessidade, passo a palavra, apenas me queriam dizer que assim como tinham germinado e desenvolvido, como verdadeiros alunos de Ciências, estavam prontos para prosseguir o seu desenvolvimento, por muitas tormentas e vendavais que fossem encontrar no próximo habitat em que forem colocados. Afinal de contas, todo e qualquer estudante vive destes momentos de crise, mas são eles que os fazem crescer quer ao nível dos estudos, quer em termos de personalidade, já que esta nunca se pode dissociar da outra.
Acabei por aceitar a lembrança, já que esta simbolizava para mim algo de muito importante. Aqueles alunos, a quem eu, sem me aperceber fiquei ligado para sempre. Não foram no entanto os primeiros, e, conhecendo-me bem não serão os últimos. Estes, no entanto tiveram o condão de me fazer reflectir no assunto.

Arlindo Antunes de Sousa


  
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Edição:

N.º 68
Ano 7, Maio 1998

Autoria:

Arlindo Antunes de Sousa

Arlindo Antunes de Sousa

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