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Formação e Trabalho

Tenho vindo a manter regularmente, creio que desde Janeiro de 97, este espaço de A Página, sob a rubrica geral 'Formação e Trabalho'. Nele tem cabido um conjunto de reflexões, fundamentalmente em torno da profissionalidade docente, que se foram objectivando nas questões emergentes do projecto educativo e da decisão em educação, aspectos que me esforcei por aproximar, considerando que eles se implicam mutuamente como a expressão maior da problemática da escola do nosso tempo, ou, talvez, com mais rigor, da escola como problema.
Se, neste momento do percurso, avoco o título da rubrica 'Formação e Trabalho' como entrada para a colaboração de hoje, queria sublinhar com isso uma preocupação talvez pouco evidente nos textos que têm vindo a lume. Corresponde ela à necessidade de explicitar a pertinência daquela expressão a propósito das temáticas que tenho proposto. De que modo (por exemplo), as questões do projecto educativo, enquanto orientação prática para a definição de uma nova profissionalidade docente, se prendem com a formação e com o trabalho, eis, no fundo, a questão.
Ora, se tivermos em conta as relações entre formação e trabalho, tal como elas eram conceptualizadas há umas décadas atrás, e as considerarmos à luz do seu desenvolvimento nas práticas actuais, havemos de reconhecer profundas transformações entre elas, a que o conceito de projecto e a prática social, que ele veicula, andam muito estreitamente associados.
Assim, a concepção tradicional que vigorou, fundamentalmente, até à emergência do movimento da Educação Permanente, que teve o seu auge, como expressão profética, ao longo dos anos sessenta, equacionava o problema da formação e do trabalho segundo uma relação de anterioridade temporal que era, simultaneamente, uma anterioridade epistemológica e axiológica. Nestes termos, era suposto que a formação determinava a natureza do trabalho, as suas regras técnicas, o conjunto de normas práticas que presidiam ao seu desenvolvimento, bem como o sistema cognitivo que regulava a percepção das relações sócio-morais e, obviamente, os padrões e modelos de profissionalidade. A profissão entendia-se como o exercício de aplicação de princípios consagrados num regime de formação determinada no essencial pela lógica da formação inicial. Em consequência, o trabalho achava-se reduzido a uma forma de actividade marcada, predominantemente, por uma visão execucionista, formalista, segmentar e linear, codificado em tarefas, a que o taylorismo emprestou o seu rigor científico e o seu carácter ritualizado e cronométrico. Não se estranha, assim, que o trabalho, sobretudo nas suas versões industrializadas, tenha sido submetido a critérios, cujo vector maior de definição passou a ser o tempo físico dos relógios. Os horários das escolas, a sua enorme importância na organização curricular e didáctica não tardaram a exprimir a mesma visão, corporizada sobretudo na ideia de disciplina como um valor formativo de alto significado para o mundo do trabalho. É neste sentido que o conceito de trabalho actualiza a sua origem etimológica, pela qual ficamos a saber que o termo deriva dum velho instrumento de tortura medieval que se chamava tripalium, a cujos rigores eram submetidos os vagabundos acusados de incorrigível inapetência para tarefas produtivas...
Esta relação de anterioridade da formação relativamente ao trabalho corresponde, naturalmente, a um tempo físico e social de estrutura matemática de raiz cartesiana e, mais especificamente, newtoniana para o qual a evolução da realidade é linearmente previsível, homogénea na sua natureza e, portanto, programável e, como tal, repetível no essencial. É mediante esta cosmovisão que se torna possível a concepção dum modelo de Escola, para a qual a formação por ela proporcionada se define como preparação para a vida. A continuidade entre um tempo anterior (de formação) e um tempo posterior (de trabalho) assegura a ideia de causalidade que lhe está suposta.
Ora, é justamente esta continuidade que a ideia de projecto nega e é nesse sentido que toda a relação entre formação e trabalho, sobre ela construída, está perturbada, obrigando tanto a uma reconceptualização da formação como do trabalho. É, por isso, uma questão que vale a pena aprofundar.

Manuel Matos


  
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Edição:

N.º 67
Ano 7, Abril 1998

Autoria:

Manuel Matos
FPCE, Univ. do Porto
Manuel Matos
FPCE, Univ. do Porto

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