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Alvaro Campêlo em entrevista a Página

Uma entrevista sobre religiões,
exclusões e diferenças,
onde se fala do racismo
que há dentro de cada um

Alvaro Campêlo é professor de Antropologia Social e Antropologia do Desenvolvimento na Universidade Fernando Pessoa, no Porto, e de Antropologia Social no Instituto Superior de Ciências da Saúde, em Gandra. Doutorado em Antropologia das Religiões, na parisiense universidade da Sorbonne, com uma tese sobre o antropólogo francês Michel de Certeau, intitulada a 'Antropologia do Crer', prepara actualmente um trabalho de campo com a seita milenarista os Rebelados, em Cabo Verde. Nesta entrevista, explica de que forma os processos sociais e as práticas inerentes às religiões podem contribuir para a aceitação ou a exclusão da diferença, quais as implicações da radicalização e apropriação do discurso religioso, sem esquecer o papel que estas podem desempenhar na própria resolução dos conflitos.

P - Que processos sociais são estudados pelos antropólogos com vista a determinar as implicações dos conteúdos doutrinais das religiões nas relações de aceitação/exclusão das sociedades contemporâneas?

R - Os processos sociais relacionados com a religião que nos interessam analisar, enquanto antropólogos, são não só aqueles que se manifestam através de fundamentalismos ou de marginalização pela religião, mas também as próprias práticas religiosas e a maneira como as pessoas sentem o religioso e, através dele, a própria vida. Interpretamos a religião como um sistema social de organização e de interpretação da própria vida, e, desta forma, preocupamo-nos com o facto dessa integração e organização da vida social levar à exclusão, à marginalização e, por vezes, à incompreensão do 'outro' enquanto entidade religiosa diferente. É isso que nos preocupa particularmente.
No caso do racismo, os fenómenos religiosos ultrapassam a dimensão rácica e constituem-se mais como fenómenos ligados à xenofobia, ao medo de um grupo estranho, que podem ser entendidos enquanto fenómenos étnicos. Ou seja, sendo a etnia um grupo social construído e reflexo de uma história vivida, de alguém que partilha uma memória ou uma origem, identificando-se e comunicando com a diferença através dessa origem, através dessa identidade, o racismo, a xenofobia ou os problemas ligados à religião surgem como uma desconfiança em relação a outros grupos, a outras etnias, que possuem outra visão do mundo.

P - Isso deve-se ao facto de as religiões criarem uma entidade própria, sonegando, dessa forma, a identidade do 'outro'?

R - As religiões criam uma identidade própria porque fazem parte da identidade étnica do grupo e constroem-se dentro dele. Sendo assim, elas levam, por vezes, à incompreensão de outros grupos étnicos e a que cada grupo se sinta dono de uma verdade, de uma leitura exclusiva da verdade e, passível de confrontar-se violentamente com o 'outro', entendido como a diferença.

P - Mas de que forma se revelam essas incompreensões, nomeadamente no quotidiano?

R - Revelam-se no quotidiano quando alguém que, pertencendo a outro grupo étnico, a outra visão do mundo, transporta consigo uma maneira diferente de viver a religião, levando a que não seja aceite ou compreendido. Mesmo aquele que pertencendo ao mesmo grupo étnico não partilha da religião, mais ou menos aceite e vivida, pode ser incompreendido e, de alguma forma, tornar-se um elemento estranho e ser encarado como conflituoso. Isto, porque põe em questão uma organização estável, vivida, que faz com que as pessoas se insiram 'normalmente' na sociedade.
Repare que, muitas vezes, os fenómenos religiosos são conflituosos e implicam indivíduos que, apesar de aderirem a uma religião, não a praticam. Ou seja, a adesão é étnica: identificamo-nos com uma religião, mesmo não a praticando, e essa identificação é essencial para nos confrontarmos com a diferença. Quando o conflito surge, agarramos as realidades que, porventura, nem são conscientes nem são vividas. Mas como são as realidades últimas - numa sociedade sem instituições finais como a nossa - fazem com que me possa identificar com um elemento social de conjunto, com a minha etnia.

P - A que se refere quando utiliza o termo instituições finais?

R - No passado, existiam as grandes instituições de poder que forneciam uma autoridade e uma legitimidade ao agir social. O Estado, as igrejas e a própria família, funcionavam como instituições finais, ou seja, a sua normatividade, os seus fins e a sua realização era aceites, e os valores que propunham aos agentes sociais eram normalmente impostos sem contestação, apesar de surgir quem os pusesse em questão e tentasse modificar o próprio sentido do social.
Actualmente, estas sociedades, ou estas instituições, existem, mas a sua legitimidade e autoridade é posta em causa, manifestando-se, cada vez mais, por uma força que obriga a uma adesão por parte dos actores sociais. E essa força, numa sociedade dita democrática, livre e aberta como a nossa, é sempre difícil de ser aceite. Então, se o Estado não identifica o grupo social, ou uma religião oficial, com um credo comum oficial institucionalizado normativamente, não identifica o grupo social, se os valores da família não identificam o grupo social, então recorre-se aquilo que é mais abrangente: as crenças presentes no subconsciente, crenças partilháveis não vividas da mesma maneira pelos diferentes membros da sociedade mas que, num momento de crise, vão ser procuradas. É o caso do Islamismo...

P - Abordando o exemplo do Islamismo, como pensa ser possível uma crença radicalizar-se ao ponto de converter-se num movimento fundamentalista religioso?

R - Os fundamentalismos religiosos, os messianismos e os milenarismos, são movimentos religiosos que, normalmente, acontecem como processos de contra-aculturação. Quando uma determinada comunidade étnica é confrontada com a diferença, com outras culturas e vivências, por vezes não tem a capacidade de receber no seu seio essa diferença. Ou muitas vezes recebe-a, mas com o tempo vai criar uma certa dificuldade de integração no grupo porque aquela põe em causa certos elementos que eram estáveis. E perante a instabilidade e a diversidade, e ao 'não sentir' e não assumir dessa diversidade, vai-se à raiz e origem da identidade e inicia-se um processo de contra-aculturação, voltando aquilo que já antes era assumido e tido como indiscutível. E aquilo que antes tinha uma força moral, ética e prática, eram as normas religiosas.
Apesar disso, não podemos afirmar que o Islamismo é uma religião fundamentalista. Porque não o é. Os países islâmicos que receberam uma influência ocidental muito forte e que entraram num processo de independência, não tiveram capacidade de se modernizar ao mesmo nível do ocidente, culpando-o, assim, de ter destruído a sua cultura. Culpam o ocidente de ter fornecido elementos destrutivos da sua identidade. Então, como recuperar esta identidade? Voltando aos valores tradicionais, a uma contra-aculturação, àquilo que é fundamental. E exagerado, porque não deixa de ser, por vezes, uma fase da sua própria história e da sua cultura. Os fundamentalismos são sempre movimentos de defesa e a expressão mais perigosa e mais negativa da religião.
Os milenaristas, por outro lado, são grupos confrontados com a urgência temporal. Os Rebelados, em Cabo Verde, são disso um exemplo. Quando as instituições começam a ser questionadas, o medo começa a estar presente na vivência quotidiana pela possível destruição da sua organização. E é o tempo - neste caso o fim do milénio - que irá marcar o fim para esta aparente desorganização, caos e ambiente de dificuldade. Surge então o fim do mundo, em que se salvam os justos e se condenam os que vivem neste caos, nesta desorganização.
No caso particular dos milenaristas Rebelados, eles sempre tiveram um carácter anti colonialista, e defendiam a sua cultura e religiosidade tradicionais. Quando foram confrontados com um cristianismo muito mais moralizante, moderno, que exigia a observância do celibato e uma fidelidade à instituição, tornam-se sectários e criam um poder autónomo, fechando-se ao mundo, interpretando-o com base numa força interna e numa identidade de contestação.
A religião, sendo um sistema cultural e espiritual estruturada pela cultura onde é vivida, é um elemento sistematizante da organização social. Porque o homem não suporta a desorganização e o caos, tem que construir um discurso coerente, aceitável, que interprete o seu agir social. É este discurso que faz com que não se entendam outros discursos. Porque se o novo discurso organiza a vida social, e se eu aceito que o meu ritual e a minha vivência, aquilo em que acredito, é a leitura verdadeira do meu agir na terra, então, não existe outra via para a leitura da realidade. Todas as religiões defendem este conceito de via: o Budismo, o Islamismo ou o Cristianismo. Ora, se eu aceito que este é o caminho, é-me difícil aceitar que haja outros caminhos. A religião tem sempre inerente este gene de conflitualidade com a diferença.

P - E quanto ao sexismo, implícito nas normas e condutas das principais religiões? Não constituirá, também ele, um espaço de exclusão?

R - O sexismo na religião não é outra coisa senão um reflexo do que é vivido a outros níveis na sociedade. O sexismo nunca é, portanto, um exclusivo religioso e uma realidade nascida do fenómeno religioso, que se impõe à sociedade culturalmente. O sexismo religioso, é uma realidade que se vive porque ajuda a ver o mundo onde o sexo, neste caso o feminino, já é visto de uma posição muito particular.
É lógico que, quando hoje assistimos a movimentos feministas avançados, em que as liberdades, os direitos e os deveres são partilhados e vistos como iguais, choca, a quem defende isto, práticas religiosas onde essa igualdade, esses direitos e deveres não estão presentes. Mas nunca se deve interpretar isso como uma consequência do fenómeno religioso. O religioso viveu e assumiu uma realidade cultural e socializou o género dentro da sua prática, do seu ritual, e ainda não teve capacidade para, de alguma forma, chegar a movimentos mais avançados dos direitos e deveres femininos.
Já chegou em muitos aspectos, mas, no entanto perguntamo-nos o porquê do fenómeno religioso, sendo um elemento identitário, de forte coesão social, não estar nas fronteiras das inovações sociais. Os grandes sistemas religiosos, como estrutura, não podem viver totalmente e por si mesmos as grandes inovações. Vão recebendo e vão-se adaptando. Como alguns dizem: a igreja é sempre muito prudente. E porquê? Porque é um fenómeno que, partindo de uma leitura do social, não pode tomar hoje uma decisão e amanhã outra, porque senão deixava de ser um elemento estruturante. O sexismo nunca é uma consequência religiosa, mas, na prática, pode muitas vezes sê-lo pela força normativa. Porque qualquer religião vive uma cultura e desenvolve os valores de um grupo étnico.
Repare que os conflitos religiosos não são travados entre raças. Convém aqui salientar a não cientificidade do termo 'raça' quando ele pretende fundamentar a desigualdade entre grupos humanos através de caracteres fenótipos ou genótipos. Há cristãos brancos e cristãos negros. Muçulmanos brancos e muçulmanos negros. Mesmo em relação aos Judeus, habitualmente tão cientes da sua identidade, eles aceitam bem o seu sangue etíope, porque sabem que certos grupos etíopes são oriundos, na antiguidade, do povo de Israel. São travados entre grupos étnicos.

P - Existirá o perigo dos fenómenos religiosos serem manipulados por governos ou poderes instituídos?

R - Há, de facto, o perigo dos governos e dos poderes instituídos manipularem os fenómenos religiosos, para impôr uma visão do mundo e uma adesão incondicional e crítica à ideologia que defendem. Isto acontece pelo facto da religião ser um sistema simbólico de coesão e justificar, assim, uma autoridade sem legitimidade.
O primeiro perigo é a adulteração da crença religiosa. O poder instituido utiliza por vezes a força, motivação e disposição da crença religiosa em favor de um discurso político. Desta forma, pretende legitimar a autoridade do seu discurso e agregar à volta dele um grupo social. A crença religiosa passa a ser meramente um suporte explicativo da vida social, como defendia Durkheim, e garante da coesão do grupo. A crença perderia, então, o seu sentido religioso espiritual , que está na sua essência.
Um segundo perigo está na possibilidade de transferir para o âmbito religioso os problemas sociais não resolvidos pelos governos. A religião assume um discurso de resignação, apoiada pelo poder instituído, de forma a minimizar, ou esconder os problemas sociais. É aqui onde surge a crítica de Marx à religião como 'ópio do povo'. Não discutindo o poder instituído, o grupo social limita a sua capacidade de reflexão crítica. É certo que também pode suceder o contrário, ou seja, ser dentro da própria comunidade religiosa, e a partir da sua força que parta uma posição de contestação. Veja-se o caso da teologia da libertação na América Latina.
No entanto, há sempre uma procura, por parte do poder instituído, de se tornar isento à crítica. Justifica assim um poder indiscutível, situado dentro da ordem natural das coisas. Para isso, utiliza os rituais cívicos através de uma simbólica religiosa, e faz dos rituais religiosos uma acção cívica. O discurso político faz-se redentor, podendo o próprio chefe político apresentar-se como uma espécie de 'messias'.
Por último, e talvez a mais perigosa forma, seja a utilização da religião para fundamentar discursos nacionalistas. A identidade religiosa serve para identificar o grupo - veja-se o caso da Irlanda, da Croácia e de tantas regiões da Índia - de forma a motivá-lo, dispondo-o a uma acção. Sendo uma motivação muito especial, ao situar a reivindicação nacional no campo religioso, os líderes destes movimentos legitimam acções que, de outra forma, nunca seriam aceites. Daí nos serem apresentados fenómenos sociais totalmente 'irracionais', pois situamo-nos fora dessa motivação que justifica tais actos. E é aqui onde surgem os grandes fenómenos de conflito étnico, que chamamos de racismo e xenofobia.

P - Referiu durante as Jornadas sobre o Racismo, a Xenofobia e outras Formas de Exclusão que a religião é o espaço da conflitualidade, do etnocentrismo e da xenofobia, mas poderá também constituir o campo da superação desses três elementos. Ou seja, funcionar ao mesmo tempo como factor de destabilização e de diálogo. Como explica esta aparente antagonia?

R - O que quis dizer com isso é que, muitas vezes, pensamos o mundo tendo em conta a racionalidade ocidental, o nosso sistema de símbolos, de significados, e interpretamos a diferença na nossa perspectiva. Há certas práticas religiosas, nomeadamente noutras religiões ou povos primitivos, que se nos apresentam com absurdas e com dificuldade se podem relacionar com as nossas formas de viver. Mesmo dentro de uma religião, grupos étnicos existem que interpretam e vivem a religião cristã, islâmica ou budista de formas muito particulares. Se nós as aceitarmos e tivermos uma abertura para perceber que as práticas religiosas expressam o saber e o conhecimento de um grupo particular- não como no princípio os antropólogos, e algumas pessoas, interpretavam certas práticas mágicas: irracionais e demonstrativas de uma incapacidade de raciocínio -, se aceitarmos que pode haver diferentes formas de viver o religioso, então essa percepção irá fazer com que a diferença a outros níveis, políticas e mesmo fenótipas (de aparência ou cor da pele), são diferenças para as quais eu devo estar educado a aceitar.
Se posso aceitar dentro do meu grupo, seja ele cristão, islâmico ou budista, individuos de tantas etnias, então a religião pode ser um espaço de percepção e de educação para a diferença e para a pluralidade. Uma pluralidade não hierárquica, mas sim uma pluralidade onde a diferença não elimina a igualdade. E isso não quer dizer que tenha de pôr de parte a minha crença. Não. Quanto mais eu estou consciente da minha crença e a vivo como aberta a outras, mais eu sou capaz de superar o racismo.

P - Sem pretender fazer futurologia, crê que, num futuro próximo essas diferenças se atenuarão ou, pelo contrário, se tenderão a agravar?

R - Eu não vou dizer que, no futuro, essas diferenças tender-se-ão a atenuar irremediavelmente. Pelo contrário, é bom, no sentido proposto, que as diferenças se mantenham. Mas os fenómenos sociais têm sempre os seus progressos e os seus retrocessos. Haverá momentos em que um grupo social, estando em crise, terá mais dificuldade em dialogar com outros grupos. Mas a minha opinião é que, sendo a nossa sociedade cada vez mais aberta, pluralista, onde vivemos em multiculturalidade, onde a educação deve estar vocacionada para a diferença, a religião pode em muito contribuir para essa aceitação da diferença tal como antes contribuia, por vezes, para levar a uma desconfiança ou a uma guerra. Cada religião, e principalmente os educadores, os professores, as famílias, devem educar e orientar para uma experiência religiosa partilhável. Isso só fortalecerá a vivência religiosa em tolerância.
Por vezes, discutimos que certos grupos ou países são mais racistas do que outras. Não há grupos mais racistas do que outros, nem há sociedades mais racistas do que outras. Todos nós somos potencialmente racistas quando a nossa identidade ou o nosso grupo é posto em questão, porque naturalmente tenderá a defender-se. Não quer dizer que isto seja positivo, mas é um risco que corremos sempre. O fascismo, por exemplo, não acabou. Está um pouco dentro desta estrutura que, exaltando o seu nacionalismo e a sua identidade, se confronta com os outros, fechando-se à diferença, à liberdade e às identidades múltiplas.

Entrevista conduzida por Ricardo Jorge Costa


  
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Edição:

N.º 67
Ano 7, Abril 1998

Autoria:

Alvaro Campêlo
Professor. Antropologo. Univ. Fernando Pessoa, Porto
Alvaro Campêlo
Professor. Antropologo. Univ. Fernando Pessoa, Porto

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