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A (im)perfeição Humana neste final de século

Muitos dos actuais problemas de análise dos sistemas educativos são uma consequência da falta de compreensão sobre o modo como se encontra organizada a sociedade actual. Esta é uma das razões porque repetidamente aqui temos afirmado a necessidade de dar uma dimensão política forte, quer à formação inicial, quer à formação continuada dos professores e também aos debates que se organizam nas escolas e nas organizações sindicais em torno das questões da educação.
O sistema educativo passou a ser, por força das transformações económico-sociais, um factor, entre muitos, de uma organização social complexa. A principal característica desta nova ordem social é que especializa alguns sistemas para que estes resolvam problemas fundamentais da sociedade. A economia, o direito, a política, a ciência, são especializações funcionais que têm como objectivo fundamental resolver a problemática da organização social moderna.
Sendo assim, o sistema educativo desenvolve um campo próprio, com uma racionalidade específica e critérios exclusivos acerca das suas decisões.
Nas organizações sociais complexas as funções especializadas dos sistemas são insubstituíveis e isto leva a renunciar à multifuncionalidade, na procura de uma especialização mais decisiva. Isto significa que o sistema deve reinventar as normas e os valores próprios que sustentarão a sua função. E implica também, a meu ver, a necessidade de as organizações sociais, sindicais e os partidos políticos, repensarem o papel do sistema educativo - no contexto das mudanças de outros sistemas e organizações sociais - de modo a traçar-lhe objectivos adequados à realidade envolvente e a encontrar novas práticas sociais, sindicais e políticas.
Quando isto não acontece, surgem ideias conservadoras, por um lado, e românticas, por outro, sobre o sistema educativo, nas quais se enaltece o poder da educação como factor decisivo de resposta a problemas e de mudança das atitudes das pessoas e dos grupos, sem se terem em conta as derrotas que, repetidamente, estas ideias experimentaram na prática.
A especialização do sistema educativo no seu objectivo de possibilitar processos de transmissão de conhecimentos, significa, por um lado, uma restrição funcional e, por tanto, uma perda de função se o compararmos com formas organizacionais do passado menos diferenciadas - a educação no Renascimento estava orientada para a totalidade da perfeição humana -; mas, por outro lado, assume um aumento dos seus objectivos, tarefas e influência, o que não é uma contradição, porque uma sociedade organizada de forma mais complexa já não se pode regular com base num modelo de absolutos. Dito de outra maneira, numa organização social diferenciada, como é a sociedade actual, desenvolve-se uma quantidade excessiva de conhecimentos, de informação e um excedente de alternativas em todos os campos da vida, perante os quais o indivíduo deve desenvolver metodologias específicas que lhe permitam a escolha e a organização do conhecimento que mais lhe interessa. Esta constatação, só por si, mostra o muito que temos de mudar na atitude perante currículos, programas, metodologias.
É talvez possível entender porque se forma um sistema especializado de transmissão de conhecimentos, ao mesmo tempo que surgem outras instâncias de solução de problemas, se se conseguir ter uma visão mais geral sobre a diferenciação no interior da sociedade.
Toda a ordem social, para sobreviver, deve resolver uma inumerável quantidade de problemas. Quando estes problemas aumentam produz-se a 'lei da especialização', sob o pressuposto da cooperação social, do que resulta a formação de sistemas sociais, que se distinguem, entre si, pela função que devem desempenhar no contexto geral da sociedade.
Cada sistema constitui a sua própria racionalidade e esta é a razão pela qual os outros sistemas sociais o toleram, exigem e apoiam. Mas é importante que todos os sistemas saibam encontrar o seu limite, para que a resolução de problemas não se torne difusa e multifuncional.
O resultado destas transformações é que, de modo pouco perceptível, a sociedade muda, ao substituir uma ordem antiga - mais estratificada e centralizada - por uma de maior rendimento funcional, o que exige uma reconstrução da organização social na qual se intensificam as interdependências. Será, porventura, esta necessidade de instâncias de comunicação mais complexas que explicam também o aparecimento dos sistemas sociais, que se assumem formas de comunicação capazes de orientar a acção individual e colectiva.
O sistema educativo, como forma de comunicação, não pode actuar, não é um agente colectivo. Da falta de compreensão deste facto resulta uma série de confusões na praxis educativa. Para se atribuir ao sistema educativo acções colectivas é necessário estabelecer um sistema de instituições educativas e de formas de organização possibilitadas pelo sistema político.
Mas o sistema educativo é muito mais que actividade organizada institucionalmente; é toda a história evolutiva do sistema, todo o tipo de teorias pedagógico-didácticas, toda a informação que positivamente ou negativamente afecte o campo educativo são também as carreiras dos docentes e, naturalmente, as influências e o prestígio nas quais se sustenta o processo educativo.
As sociedades modernas, mais que outras, devem diferenciar o que pertence à organização e o que é exclusivo de um campo social mais amplo, dito de outro modo, devem distinguir entre os sistemas de organização e os sociais. Esta distinção, em geral não se faz. Pensa-se que o sistema educativo se esgota na sua forma organizacional e até se chega a pensar que é o Estado quem educa. Embora se reconheça que no decurso da evolução social o sistema educativo tenha encontrado no Estado a sua forma básica de organização, este nível de organização do educativo não esgota todas as suas possibilidades. O acto educativo é o verdadeiramente autónomo, e esta autonomia não é dissociável da acção governamental.
A diferenciação de funções, no campo educativo, desenvolveu-se ao lado de concepções como perfeição humana, formação ou aprendizagens úteis para a vida activa, mas já se compreendeu que valores codificados, tais como a verdade e a beleza, a riqueza ou o direito, não podem funcionar como fórmulas unitárias para a programação do sistema e reconhece-se que no sistema educativo estão por ter em conta os processos de diferenciação social.
Compreende-se que a pedagogia espere da educação e da escola mais qualquer coisa para além de nos proporcionar os sistemas que nos socializam para a compreensão. E este pedir mais será tanto maior quanto o sistema educativo não deixar de olhar para o que foi o seu ideal: a perfeição humana. Mas este pedir mais está fora do sistema social de educação; esta ambição só conta como meta desejada, esperança ou ideologia profissional, e deve ser tratada como informação a submeter-se à retroalimentação do sistema.
Valerá a pena reconhecer que a tentação permanente do sistema educativo consiste em assumir a sua função com excesso. Ao propor a perfeição do homem como finalidade específica da sua função, não faz mais que atribuir-se um ideal inalcançável. Não se perca pelo menos a noção do tempo, do lugar e da sociedade em que estamos. Ou doutro modo corremos o risco de não cumprir as funções específicas exigidas hoje ao sistema ao mesmo tempo que lhe vamos atribuindo objectivos, possivelmente românticos, mas condenados ao insucesso permanente.

José Paulo Serralheiro


  
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Edição:

N.º 67
Ano 7, Abril 1998

Autoria:

José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.
José Paulo Serralheiro
Professor e Jornalista. Director do Jornal a Página da Educação.

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