Página  >  Edições  >  N.º 66  >  A questão do género

A questão do género

Lígia Amâncio (da Comissão para a Igualdade) fala à Página dos mesmos costumes, das práticas continuadas e dos eternos preconceitos

Lígia Amâncio, presidente da Comissão para a Igualdade e Direitos das Mulheres, aborda nesta entrevista a exclusão vista pelo lado feminino. Analisando de uma forma retrospectiva as últimas duas décadas da democracia portuguesa, chega-se à conclusão de que nem só de oportunidades de emprego e de acesso à educação se faz a igualdade.

Como caracterizaria a evolução da condição social da mulher
nos últimos vinte anos?

Os factos mais marcantes dos últimos vinte anos relacionam-se com dois grandes aspectos onde houve mudanças muito significativas. A primeira, porque em termos cronológicos é a mais antiga, é a entrada das mulheres no mercado?de emprego, alterando profundamente o panorama da sociedade portuguesa até ao 25 de Abril. Embora essa mudança seja quantitativamente significativa nos últimos anos, ela tinha vindo a acentuar-se desde a década de 60, nomeadamente com a questão da guerra colonial, com a colocação de mulheres em áreas que exigiam algumas qualificações, como o ensino e a saúde. É preciso não esquecer que Portugal manteve um quadro de economia tradicional até muito tarde, dado sobretudo o peso da população activa na agricultura, onde as mulheres desde sempre trabalharam. Tanto é verdade para o nosso país, como para todos os outros nesta fase de desenvolvimento pré-industrial. Portugal não passou por uma fase de desenvolvimento industrial no verdadeiro sentido - o predomínio da agricultura convivia apenas com algumas indústrias -, passando rapidamente para a explosão dos serviços, área que irá absorver, em maior número, a população activa feminina nestas últimas duas décadas. Mas é preciso não esquecer que existe essa forte contribuição das mulheres portuguesas no domínio da agricultura, um dado histórico e sociológico importante.
Quanto à segunda mudança, ela verifica-se ao nível da educação e não deve ser entendida como uma mudança meramente estatística ou quantitativa. É uma mudança estrutural com muitas mais implicações porque o acesso ao mercado do emprego não é, como muitas vezes se diz, um sinal da resolução da igualdade, nem sequer um indicador da autonomia económica da mulher.
Na verdade, basta olharmos para o panorama do emprego em Portugal para verificar que o mercado mantém uma fortíssima segregação sexual, tanto no plano horizontal, por actividades, como no plano vertical, por hierarquia, ou seja, dentro das mesmas actividades as mulheres estão concentradas em lugares subalternos e não têm acesso aos lugares de decisão. O mercado é, portanto, bastante segregado, subsistindo ainda as chamadas profissões masculinas e profissões femininas. Nos outros países também existem, mas tendem a diluir-se. Em Portugal verifica-se com mais frequência e a chegada das mulheres ao mercado de emprego não é, necessariamente, uma forma de resolução da igualdade nem da realização da cidadania para as mulheres, na medida em que a percaridade do emprego. Isto, porque o baixo estatuto das actividades que elas desempenham e os baixos salários a elas associadas não lhes confere a autonomia que elas deveriam ter para aceder à cidadania.

A diferença percentual entre as taxas de actividade feminina
e masculina - cerca de 13 por cento -
é também um reflexo dessa atitude?

Essa diferença mostra que, mesmo quantitativamente, não há igualdade. Embora pessoalmente não goste de discutir a igualdade em números - a igualdade é um valor, é um princípio que deve enformar as relações sociais -, ela não é mensurável em termos estatísticos. Mas existe muitas vezes a tendência para esse tipo de discurso. Se considerarmos, com todos os limites que isso implica, a igualdade em termos estritamente quantitativos, mesmo nesse plano ela não se encontra realizada, tal como esses números, aliás, mostram. Há de facto uma diferença entre a representação quantitativa, mas o mais importante é o aspecto qualitativo: as mulheres estão representadas no mercado de trabalho, mas em zonas reservadas para as mulheres, com tudo o que isso traz por arrastamento em termos de contratos, de formação profissional, da insegurança de emprego e até de desqualificação.
Actualmente, embora não haja ainda números muito claros, alguns indicadores apontam para que o mercado de emprego não esteja a absorver as mulheres diplomadas na proporção em que devia. Acontece que em certos grupos etários mais jovens as mulheres entram com salários e com tarefas abaixo das suas qualificações, muitas vezes ditada pela ansiedade na procura de emprego, levando-as quase a aceitar a primeira coisa que lhes aparece.Ee isso irá determinar toda uma trajectória que está sempre uns níveis abaixo na escala da trajectória masculina.
Um trabalho efectuado pela economista professora Margarida Chagas Lopes sobre a situação do emprego e das diferenças das média salarial entre homens e mulheres, de 1988 a 1993, apresentado o ano passado, mostra que a diferença aumentou, não diminuiu! Ou seja, apesar das mulheres estarem a aumentar o seu grau de qualificações, tal não é correspondido a nível das condições de trabalho.

O facto da taxa de frequência no ensino superior
ser claramente dominado pelas mulheres não determinará
o inverter dessse processo?

Pessoalmente, penso que existe a tendência de pensar que a questão da igualdade fica resolvida pelo facto da mulher estar integrada no mercado de trabalho ou por frequentar a universidade. Não fica, porque esconde precisamente os aspectos qualitativos do problema. Tanto num plano como no outro, o problema não está resolvido. Antes pelo contrário, verifica-se que as formas tradicionais da sociedade portuguesa e o peso da tradição em termos da divisão sexual do trabalho contornam e minimizam os efeitos de mudança que determinadas situações podiam reflectir, como o acesso das mulheres ao ensino superior.

Admite, então, uma forma de descriminação encapotada...

A mulher continua a ser descriminada, repito, por este simples facto: a segregação no mercado de trabalho, tanto no plano horizontal como vertical, dentro de uma mesma organização pela via hierárquica, mostra claramente que há uma descriminação. E nesta questão será talvez importante esclarecer o conceito: existe uma descriminação não necessariamente sentida ou vivida na experiência de cada pessoa, individualmente, mas há uma descriminação enquanto fenómeno social. Ou seja, pelo simples facto de verificarmos que há profissões e níveis hierárquicos onde as mulheres se concentram e a mesma situação no caso dos homens. Porque a igualdade de oportunidades pressupõe que as pessoas devem estar colocadas em toda a parte.
E mesmo pegando nesse discurso triunfalista acerca dos cinco por cento de mulheres que estão na universidade, ou eventualmente mais algumas décimas que entretanto tenham acrescentado, nós teríamos que analisar o mercado de emprego e ter em conta a distribuição delas pelas várias profissões que exigem qualificação na mesma percentagem. Na maior parte dos níveis de topo e de decisão das empresas, a percentagem é zero. Inclusivamente na administração pública, onde são maioritárias...

Isso quer dizer que se mantêem os mesmos costumes,
práticas e preconceitos?

Exactamente. A sociedade portuguesa demonstra que há convergência de significativos factores de mudança, mas cuja repercussão é limitada por formas de organização social, divisão do trabalho e de relações entre os sexos que são profundamente tradicionais e que entravam os efeitos desta mudança num sentido lato.

Há quem encare as dispensas pré-natal e pós-parto
cada vez mais como um luxo. Qual é o seu comentário?

Discordo, antes pelo contrário. Mas existem dois problemas associados a essa ideia que será necessário abordar. O primeiro passa por assumir a maternidade como uma experiência única para a mulher, que dá à luz, mas também um fenónemo para com o qual toda a sociedade tem responsabilidade, porque é a sua sobrevivência que se encontra em causa. Não compreendo, por isso, como é que as mulheres, como acontece ainda no mercado de trabalho em Portugal, sejam agredidas em termos de atentados aos seus direitos, pelo facto de engravidarem ou terem filhos.
O mais preocupante é que muitas pessoas não tenham sequer conhecimento da existência de legislação de protecção da maternidade e da paternidade em Portugal, que é de boa qualidade e garante todos esses direitos, reafirmados mais uma vez, aliás, na revisão da constituição. Esta lei prevê a licença de parto e as licenças para cuidados pós-natais, nos primeiros meses de vida, sob a forma de prazos perfeitamente exequíveis, inferiores mesmo a muitos europeus como a França e a Alemanha, pelo que não se compreende muito como é que os homens não usufruem, na prática, daquilo que a lei prevê.
Essas licenças são para ser usadas tanto pelo pai como pela mãe - essa é, também, uma forma que a sociedade encontra para empurrar mais uma vez esse ónus sobre as mulheres, encontrando, simultaneamente, uma justificação para retaliar as faltas com contratos de seis meses ou com perguntas sobre se estão grávidas ou tencionam ficar, etc... -, porque do ponto de vista da legislação a paternidade e a maternidade assumem-se como um projecto conjunto, que é suposto funcionar a dois.
Não se compreende, assim, porquê que dos 98 dias previstos para esse efeito, exceptuando o primeiro mês para restabelecimento da mãe, nenhum deles seja gozado por ambos. Nem tão pouco as licenças para cuidar do filho em caso de doença ou de assistência à família. Nenhum destas situações chega a ser partilhada pelo casal, pelo menos em número significativo. Isso indica que existe uma forte pressão social para que se mantenha uma grande assimetria neste tipo de cuidados, que serve, simultaneamente, como argumento para combater a presença das mulheres no mercado de trabalho.
O que é de facto um processo absurdo, porque tendo em conta a esperança de vida activa de homens e mulheres, cerca de quarenta anos, será assim tão grave os três meses de licença de parto ou de uma semana em cada cinco anos e quando se sabe que, em média, as mulheres têm menos de dois filhos? Isto não cabe na cabeça de ninguém.

Concorda com a atribuição de quotas para a vida política?

Concordo com o sistema de quotas, entre outros possíveis. Ou seja, concordo com o princípio de que são necessárias acções positivas para equilibrar a participação dos dois sexos em determinadas áreas. E isso é válido tanto para as áreas predominantemente masculinas como femininas. Para atingir esses objectivos são necessárias acções positivas, que compensem o sexo sub-representado...

Uma descriminação positiva, portanto...

Exactamente. Concordo então que isso seja tão verdade para que as mulheres estejam mais representadas na vida política como para que mais homens sejam educadores de infância. Penso que do ponto de vista das sociedades democráticas existem várias formas de contornar os sistemas informais que impedem a igualdade de oportunidades, assumindo justamente que a igualdade de oportunidades é um princípio básico e que se há situações que impedem a aplicação de uma determinada lei e a generalização de um princípio, se torne necessário tomar medidas compensatórias para contornar esse obstáculo. Por isso mesmo existem medidas de acção positiva, como é o exemplo da atribuição de bolsas a estudantes de agregados familiares desfavorecidos, para eles acederem ao ensino superior.
Infelizmente, quando se fala de igualdade entre os sexos em Portugal toda a gente deita as mãos à cabeça. Vê-se a questão das quotas de uma maneira limitada, como um beneficio para as mulheres que retira legitimidade ao discurso de combate à descriminação, 'porque elas querem lá chegar por uma via fácil', diz-se. Muitas das pessoas que eventualmente utilizam esses argumentos usufruiram de acções positivas na sua trajectória de vida para atingir uma determinada oportunidade. E é isso que também se pretende no caso das quotas, ou de outra qualquer medida, que vise, justamente, compensar o desequilíbrio que existe na representação dos dois sexos na vida pública.

Tendo em conta todos estes factores,
pode falar-se numa exclusão no feminino?

A questão da exclusão é mais profunda e deve ser compreendida de uma forma mais abrangente do que um período de vinte anos. A questão da exclusão das mulheres é uma questão histórica e deriva do facto de todo o processo da modernidade assentar, desde o início, na recusa da cidadania às mulheres.
O próprio conceito de cidadania é um conceito que, à partida, desde o tempo da revolução francesa, exclui a mulhere. Esse é o problema de fundo. O conhecimento deste processo histórico é que permite esclarecer porquê que, ao longo destes duzentos e tal anos, a questão feminina está sempre presente e tem protagonizado movimentos sociais muito activos ou tensões sociais que têm sido mais ou menos resolvidas.
Primeiro foi o acesso à educação, depois foi o acesso ao direito de voto, ao emprego e, neste momento, continua a ser o acesso a certos níveis de emprego, o acesso à decisão. Há portanto, um círculo que não tem ficado resolvido porque há sempre uma pressão contra ele. Nós temos esse exemplo em Portugal: as mulheres podem entrar no mundo activo, mas em empregos só para elas.
Aqui é que reside o processo de exclusão, porque assenta num princípio fundamental da democracia que nunca foi assumido universalmente para os dois sexos. Esta questão da desigualdade entre os sexos está inerente aos próprios sistemas democráticos e, de alguma maneira, a resolução do problema é uma refundação e um aperfeiçoamento dela própria.
Portanto, com base no que referi inicialmente sobre o emprego e a educação, julgo que as mulheres portuguesas têm pago um preço extraordinariamente elevado para os ganhos que têm adquirido em termos de cidadania. No fundo, aconteceu que, mantendo o acesso das mulheres ao mercado do emprego, numa ilusão de abertura, não traduzido em níveis salariais elevados e de autonomia, ela tenha servido como que um tampão para tensões sociais: os salários em Portugal mantiveram-se extraordinariamente baixos, mas os rendimentos das famílias subiram graças ao complemento do salário da mulher. Poupou-se em dinheiro, mas também em repercussões sociais.
Foi esta solução profundamente desfavorável para as mulheres portuguesas que não foi adoptada noutros países, onde o acesso ao mercado de emprego é feito na sequência de um processo de mudança social, fazendo com que lá chegassem por uma questão de ganho de cidadania. As mulheres portuguesas foram trabalhar por uma questão financeira. E essa é uma grande diferença. Foi uma má solução para elas, para as famílias e para o desenvolvimento da sociedade portuguesa, e que serve ainda para bloquear uma melhoria substancial da qualidade de vida associada ao aumento das qualificações da população.

Dir-se-ia uma forma latente de exclusão?

Sim. Digamos que a razão estrutural para esse tipo de situação era a inquestionável baixa qualificação dos portugueses. Se olharmos para as estatísticas, ainda hoje verificamos que em cinco por cento de mulheres diplomadas há vinte por cento de analfabetas. Normalmente, não se fala desse grupo quando se refere que as mulheres chegaram lá porque já acederam à universidade.
Havia uma população mal qualificada e não houve preocupação nenhuma no sentido de a inverter, fosse por iniciativa privada fosse por parte do estado. Quando se assistiu a um esforço extraordinário em termos educacionais, como até à década de 80, os efeitos fizeram-se sentir, mas o mercado de trabalho não está a responder da mesma maneira a esse aumento de qualificação.

Entrevista conduzida por Ricardo Jorge Costa

 


  
Ficha do Artigo
Imprimir Abrir como PDF

Edição:

N.º 66
Ano 7, Março 1998

Autoria:

Lígia Amâncio
Presidente da Comissão para a Igualdade e Direitos das Mulheres
Lígia Amâncio
Presidente da Comissão para a Igualdade e Direitos das Mulheres

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo