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A lógica de casino

Esprememo-nos, contorcemo-nos, sonhamos, aviltamo-nos, bajulamos, e o resultado de todo este bailado é a miséria de quem se sente com direito a ter, mas padece despojado de pão para o corpo e de justiça para o espírito.

Não é de estranhar. Num tempo em que tudo se compra e quase tudo se vende, desde a soberania dos Estados até essa honestidade que uma geração se habituou a enraizar dos preceitos de família, desde os haveres de felicidade aos mais que podem representar a melhor memória das dádivas mais autênticas ou a herança de uma vida de labuta, num tempo da blasfémia de propalar que tudo na vida tem um preço, não espanta que o povo seja aliciado a ter mais do que o seu tributo à sociedade pode justificar.
Não se trata de colocar na balança do deve e do haver princípios morais, nem tão pouco as debilidades humanas que podem manietar aquele tributo; trata-se de, com alguma lucidez, constatar que, afinal e ao contrário desses credos paupérrimos, o dinheiro traz consigo alguma felicidade, porque a liberdade é condição para que nos sintamos mais felizes. Mas o destino quer-nos merecedores da sorte, insiste em que nos iludamos por dois chavos, faz-nos actores do jogo, sentados à mesa onde a batota é a regra do jogo, cegos por necessidade e deslumbrados por condição.
Não é de estranhar. No palco de um mundo sem rédea, os fios sob cujas leis representamos conduz-nos a dizer quanto não queremos e a fazer tudo o que abominamos aos-sete-ventos.
O seu cartão dá pontos, este investimento promete, ligue-nos e tem um prémio garantido, jogue que a fortuna pode ser sua, assine este contrato para que possamos ajudá-lo, os nossos juros são os mais baixos, pague um e damos dois, a sua fidelização traz melhores vantagens, somos o melhor intermediário para o seu negócio.
Esprememo-nos, contorcemo-nos, sonhamos, aviltamo-nos, bajulamos, e o resultado de todo este bailado, sempre no fio de marionetas, é a miséria de quem se sente com direito a ter, mas padece despojado de pão para o corpo e de justiça para o espírito.

Somos quase todos homens feios, sem rosto, anquilosados nas palavras, sem voz, portadores de identidades onde explodem números e se inscrevem histórias tão fantásticas como invisíveis, ratos de bibliotecas que não podem roer até ao fim, mercenários numa guerra paga a papel-moeda, senhores de uma gravata, operários suados no catre onde nos reproduzimos. A bem das famílias, subjugados e capazes dos maiores actos de verdadeiro amor.
Neste tempo, em que tudo podia ser bem mais fácil e justo, damos a pessoa que somos no tabuleiro que não basta para este tempo de casino que não fecha portas, nem poupa ingressos, indiferente a essas coisas menores que são as angústias e os devaneios dos jogadores. É assim com o Estado e com as Finanças públicas, pelas decisões dos seus responsáveis e pela sua atitude pessoal. Vai sendo assim com a cultura que preside em muitos fóruns da Educação. Parece continuar a ser assim adentro das portas onde habitam a indignação e a impotência.
E, a ser assim, manda a experiência que a razão tome nas mãos a desordem para dela fazer argumento. É perigosa a lógica de casino, leva ao suicídio social, conduz à falência dos costumes, faz-nos recuar no muito que a humanidade construiu com o seu saber e pode dar como adquirida uma não alternativa a essa lógica. Todos sabemos que o jogador joga em desespero de causa, sem regra nem tino. Essa esperança que é a última a morrer já não é só questão de fé, é uma obstinação em colocar na mesa a sorte que pertence a todos, mesmo àqueles que são alheios ao ambiente bafiento da política, mas que não suspeitam dos crimes contra a honestidade que ali se escondem.
Se é pecado um povo deixar-se enclausurar durante quarenta anos, será pecado maior permitir que os seus filhos sejam enclausurados, sobretudo quando julga ter-se enfim libertado.

Luís Vendeirinho


  
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Edição:

Edição N.º 202, série II
Inverno 2013

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