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A não sociedade

“20 euros por uma avaliação até é muito barato”, rematava o ministro da Educação, desta forma simplista e calculista, em resposta à jornalista que o questionava a propósito do preço da avaliação dos professores. “Duas provas são duas provas”, é efetivamente barato. Tudo leva a crer, aliás, que em próximas edições este preço vá subindo até atingir um patamar de razoabilidade; respeitando o mais elementar princípio do utilizador-pagador, já praticado nas SCUT e outros quejandos, o/a professor/a pagará, bem entendido, um serviço que é do seu (estrito) interesse; e, para já, a preço de saldo. Não é sequer a concorrência mercantil que está aqui em jogo, é uma reconfiguração impositiva do Novo Estado, já não característico de uma sociedade com economia de mercado, mas de uma sociedade de mercado, como sugere Michael Sandel.
Confundir ingerência e autoritarismo com o regular funcionamento do mercado é típico de uma política fraca e arrogante; quanto mais o custeamento de tudo o que mexe se refletir no indivíduo singular, mais se esvazia o social e tudo o que ele pressupõe de equilíbrio de tensões e interesses. Até Adam Smith se revolve, certamente, no seu túmulo, que a invisibilidade da mão do mercado era tudo menos o princípio do decreto.
É sobre este mesmo indivíduo, aliás, que se apregoa o direito da livre escolha do estabelecimento educativo, regressando aqui às liberdades individuais e aos direitos legítimos que ao indivíduo assistem; serão livres, efetivamente, aqueles que têm a capacidade financeira para comprar essa liberdade.
Sem a mesma impetuosidade (mas com mais arrogância rota), vemo-nos aqui regressados ao chavão thatcheriano da “não existência da sociedade”. Por analogia aos não-lugares de Michel de Certeau e Marc Augé, esta não sociedade é a ausência da sua definição identitária, relacional e histórica; é a bandeira na lapela dos governantes (o simbólico sobrepõe-se ao real), é o exercício do governo sobre os indivíduos (e não com os cidadãos), é o horror do passado, só invocado para desculpabilizar o presente.
Estado e Educação. O lugar do Estado e do seu tentáculo que aqui nos interessa, o que se ocupa da Educação, não significa o fim da Escola Pública, mas anda perto do fim do interesse social da Educação; as profundas transformações dos significados do trabalho poderiam alimentar um aprofundamento da interrogação sobre o lugar da Escola, mas, ao invés, tendem a acentuar a subordinação desta, tendem a acentuar o seu lugar como não-lugar.
As escolas independentes que o ideológico “guião da reforma” apregoa são, afinal, independentes de quê, de quem? Supostamente, de um Estado que coartava as liberdades dos indivíduos professores, mas sobretudo o seu sentido de propriedade; oportunidade que “significa uma verdadeira devolução da escola aos seus professores”, cujo exercício profissional será muito mais transparente, nesta modalidade, garantindo à sociedade “poder escolher projetos de escola mais nítidos e diferenciados”, diz-se ainda.
A amálgama do privado e do cooperativo num suposto mesmo ideário organizacional permite, aliás, que se invoque a organização das pessoas em torno de projetos societários comuns como se tudo fosse indiferenciado, importa é que não seja estatal; o estatal corrompe o interesse individual, e sem isso não há eficácia.
A desvinculação do Estado a estes professores é a condição necessária, pois claro, e a Escola que agora lhes é devolvida converte-se num barómetro gestionário; os fins sempre justificarão os meios e o Estado reserva-se a ponderação dos fins, “reserva para si as decisões mais relevantes do sistema”, designadamente o aumento dos níveis de exigência que os exames nacionais supõem. Diane Ravitch traçou, há uns anos, a morte e vida do sistema escolar americano e a história das charter schools, escolas de escolha (que acham mais fácil evitar, eliminar ou desaconselhar alunos disruptivos e de baixa performance), mas cujos resultados nunca evidenciaram as suas proclamadas vantagens face à Escola Pública.
De facto, o interesse do trabalho escolar deixa de ser a prioridade.
Concluindo com a analogia de Augé, do mesmo modo que os lugares antropológicos criam social orgânico, os não-lugares criam contratualidade solitária; o carácter simpático de uma dialética que reforça o interesse individual esgota qualquer expressão, nos termos de Richard Sennett, da empatia de uma dialógica que privilegia o lugar da diversidade como o lugar dos possíveis sociais.

Henrique Vaz


  
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Edição:

Edição N.º 202, série II
Inverno 2013

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