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Relembranças

1. Nos últimos tempos, quantas vezes ouvimos professores referirem-se à desilusão em que Nuno Crato se transformou quando decidiu passar de fazedor de opinião publicada para o papel de ministro da Educação? Houve até gente insuspeita de manter vínculos políticos com a direita que, mal surgiram as primeiras advertências a propósito das medidas assumidas pelo ministro, nos aconselharam a esperar para ver, dando o benefício da dúvida a um homem que poderia enfrentar os desmandos do “eduquês”.
O tempo mostrou-nos quão infundadas eram as expectativas relativamente a um homem que, pelo que escrevia e defendia, não poderia ter feito coisa diferente daquilo que tem andado a fazer. Acusem-no do que quiserem, menos de incoerência ou de oportunismo. Neste caso, nem sequer é necessário recorrer à metáfora do ovo da serpente para explicar a perplexidade de tantos que há bem pouco o incensavam, porque, na verdade, a serpente já rastejava desde 2006, pelo menos.

2. Livros como «O ‘eduquês’ em discurso direto: uma crítica da pedagogia romântica e construtivista» ou «O desastre no ensino da Matemática: como recuperar o tempo perdido» poderão ser considerados, quanto ao conteúdo e à forma, como o preâmbulo de iniciativas através das quais o Crato agora ministro omite e depois desvaloriza os excelentes resultados obtidos por alunos portugueses em provas de avaliação internacionais, que, de algum modo, comprovavam o sucesso de ações educativas desenvolvidas em função de parâmetros curriculares e pedagógicos que o pensador e o responsável político têm vindo veementemente a recusar.
São obras que, de algum modo, já prenunciavam a matéria de que o seu autor é feito, quando promulga metas curriculares antes dos programas, anunciando que não há diferenças substanciais neste domínio, a não ser o facto de, agora, se conceder mais liberdade curricular e pedagógica aos professores, que estavam manietados pelos programas anteriores, excessivamente prescritivos.
Confrontem-se os documentos em causa e constate-se a honestidade desta proposição – já patente, aliás, no modo como Crato, o pensador pedagógico, definia o que entendia por construtivismo e por pedagogia romântica, em função das quais começou a construir a sua fama e glória.

3. Não é, contudo, a desilusão dos professores com Nuno Crato que nos preocupa.
Ela seria um acontecimento positivo se permitisse compreender que a valorização da instrução como modo de ação educativa nas escolas legitima o aumento do número de alunos por turma, a seleção académica e a hierarquização dos percursos escolares ou a própria desqualificação da atividade docente.
O que nos preocupa tem a ver, acima de tudo, com o facto de a recusa da política deste ministro poder não corresponder à recusa de um projeto de educação escolar que subalterniza os professores porque subalterniza os estudantes.
O que nos preocupa tem a ver, também, com o facto de a desilusão dos professores poder não corresponder à desilusão com um projeto de Escola onde se faz de conta que se pensa, que se aprende e que se avalia. Uma Escola que passou a ter como horizonte o sucesso de alguns alunos nos exames, aos quais tudo se sacrifica, nomeadamente a inteligência, o rigor ou as oportunidades de formação intelectual e cívica.
O que nos preocupa tem a ver, finalmente, com o facto de a desilusão instalada nas escolas não corresponder a uma desilusão com o simplismo das soluções que alguns teimam em continuar a propor para resolver problemas complexos e controversos. E não falamos, apenas, do projeto de privatização radical e fundamentalista em curso, mas também dos ‘cantos de sereia’ que por aí se fazem ouvir sobre, por exemplo, as formas fáceis e expeditas de acabar com a indisciplina na escola e de repor a autoridade perdida dos professores. Ao contrário de Ulisses, não podemos, nem devemos, tapar as orelhas, desde que não nos esqueçamos que um dos autores de tais missivas é o atual ministro da Educação.

Ariana Cosme
Rui Trindade


  
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Edição:

Edição N.º 202, série II
Inverno 2013

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