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A reveladora memória dos ‘passos perdidos’: intermitências do tempo-existência

O passo próximo e o passo distante fazem o caminhante ‘deslizar’ pelo tempo em passos incertos, mas insistentes, na busca de rumos. A cansada existência.

O caminhante constitui, em relação à sua distância, um passo próximo e um distante, um cá e outro lá. Como assinalou Michel de Certeau (L’invention du quotidien), pelo facto de os advérbios “cá” e “lá” serem precisamente, na comunicação verbal, os indicadores da instância locutora, deve-se acrescentar que essa localização, necessariamente implicada pelo ato de andar e indicativa de uma apropriação presente do espaço por um ‘eu’, tem igualmente por função implantar o outro relativo a esse ‘eu’ e instalar assim uma articulação conjuntiva e disjuntiva de lugares.
A caminhada afiança, respeita, lança suspeita, arrisca, transgride, etc., os percursos que ‘fala’.
Passos dados, mas não apenas no sentido estrito de lançamento no espaço físico. Trata-se da existência e do transcurso num contexto, num determinado cotidiano, englobado pelo permanente devir da esfera social. O mundo não existe somente como forma de um receptáculo físico no qual nos encontramos, ele é estruturado por padrões de sociabilidade, na medida em que a repetição da ação configura a estrutura, quer dizer, ele é mundo social.
Mas, à Heidegger, pode dizer-se que a vida social é o império do impessoal, é o âmbito onde o ‘todos nós’ e o ‘ninguém’ são confundidos, visto que o parâmetro que norteia o comportamento é o que se pensa ‘no geral’.
A vida em sociedade é marcada por uma noção obscura de convivência, em que não predomina a singularidade do sujeito, mas, sim, prevalece a padronização de comportamentos, um ‘impessoal sem rosto’, algo como um ‘ninguém’ que não se identifica com esta ou aquela pessoa. Os comportamentos planejados e esperados, frases de circunstâncias, palavras ditas (por vezes, falsas) tão-somente para que não predomine o incômodo silêncio, etc., são marcas características do que, não raramente, o teatro da vida social requer.
Daí não se tem outra coisa que não a inautenticidade do vivido no espaço público do quotidiano. O ‘encobrimento’ do ser. Assim, uma analítica da existência não prosperará caso se limite a repisar a positividade do vivido. Terá de adotar uma perspectiva inversa. A dimensão positiva emergirá, mas através do exame negativo e inquieto dos constituintes da existência. E assim põe-se a questão da angústia, e põe-se porque ela não é somente um fenômeno psicológico, que diz respeito apenas a um ente, mas a sua extensão é ontológica, na medida em que nos remete à totalidade da existência como ser-no-mundo.
Novamente com Heidegger, podemos dizer que a angústia começa a se apresentar quando, em meio a nossas ocupações quotidianas, somos tomados por um certo tédio. Começamos a ficar fartos de entes que nos rodeiam e não encontramos em qualquer outro ente suporte para nos livrar desse tédio. Até chegamos a acreditar que precisamos buscar mais contacto com as coisas do mundo, para assim nos ocupar – ao invés de preocupar – e então sairmos da estranha indiferença na qual nos atira o mundo. Contudo, com isso, ao desse modo procedermos, caímos mais ainda nos abismos da angústia.
Quando somos indagados sobre o motivo da nossa angústia, geralmente segue-se a resposta: “não é nada”. Ou seja, sente-se a angústia, mas não se identifica o objeto dela. Todavia, com a angústia nos remetendo à totalidade como ser-no-mundo, ela é um fenômeno que coloca a existência humana diante de si mesma, abrindo a possibilidade de retirar o ser da sua decadência e revelando a autenticidade e inautenticidade como possibilidades no modo de estar no mundo.
Um exemplo ilustrativo pode ser buscado no romance «O Muro», de Sartre, que tem como cenário uma prisão espanhola na altura da guerra civil. Pablo Ibbieta, personagem principal, na noite que antecede a sua execução (que não chega a acontecer), na angústia do perecer, faz uma retrospectiva da sua vida e, ao cabo da mesma, chega a uma clareza tal sobre a sua existência que o leva a dizer: “no estado em que me achava, se viessem me avisar que eu poderia voltar tranqüilamente para casa, que a minha vida estava salva, ficaria indiferente; algumas horas ou alguns anos de espera dá na mesma, quando se perdeu a ilusão de ser eterno”. Reveladora memória do tempo passado. Dos passos dados. Consciência dos ‘passos perdidos’. Intermitências do tempo-existência.
O passo próximo e o passo distante fazem o caminhante ‘deslizar’ pelo tempo em passos incertos, mas insistentes, na busca de rumos. A cansada existência. De modo semelhante à perspectiva surrealista, a memória dos passos perdidos transmuta-se numa operação alquímica que perpassa as enigmáticas sombras refletidas no espelho do pensamento.

Ivonaldo Leite


  
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Edição:

Edição N.º 201, série II
Outono 2013

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