Página  >  Edições  >  Edição N.º 200, série II  >  A propósito de Ravi Shankar (1920/2012)

A propósito de Ravi Shankar (1920/2012)

O recente falecimento do músico indiano Ravi Shankar deixa-nos um legado intemporal. Graças à sua imensa obra, temos acessível um valioso manancial de música, mas também uma filosofia de vida.

Em 1978, ouvi o LP do concerto de Ravi Shankar no festival pop de Monterrey (1967); mal sabia que três anos depois faria uma longa estadia na Índia, que incluiu aulas de sitar, e que essa seria a razão para viajar outras vezes e tocar em Portugal, como ainda faço. Nessa altura, vi Ravi Shankar no festival anual de música clássica, em Poona, alguns meses depois de ter iniciado as minhas aulas.
Enquanto adolescente, Shankar participou na companhia de dança e música do seu irmão Uday, em várias tournées por cidades da Europa. Depois de abandonar este projeto, dedicou-se por completo ao estudo da sitar, com o guru Allahudin Khan, estabelecendo o seu nome na Índia. Ravi Shankar começou a divulgar a sitar desde os anos 1950 na Europa e América. A sua ação foi verdadeiramente diversificada: música para filmes indianos e ocidentais, música de sitar com orquestras ocidentais, música para ballet, sitar com eletrónica, sitar com música contemporânea... e um número incalculável de gravações em estúdio e ao vivo. Na longa vida deste músico genial, destaca-se a aproximação de George Harrison – que se tornou seu aluno – e a participação nos míticos festivais de Monterrey e Woodstock (1969). Mas como embaixador da milenar cultura indiana atingiu outros orientes, como foi o caso de um recital no Kremlin e das participações com músicos japoneses de koto e shakuhashi.
Como se tudo isto não bastasse, criou uma legião de alunos-discípulos – com destaque para a filha Anoushka – dentro e fora da Índia e estabeleceu centros de estudo da música indiana.
Em 1997, criou a Ravi Shankar Foundation, em Los Angeles, e um centro em Nova Deli, ambos financiados pelos seus recitais e pela edição de discos. Do muitíssimo que se encontra disponível na Internet, recorto apenas algumas frases de uma entrevista sua de há alguns anos. “I started my own career in Bombay and I will never forget some of my memorable concerts, which would often last five to seven hours” – para nós, ocidentais, seria impensável que um recital durasse tantas horas; estamos condicionados pelo tempo e não temos a experiência musical tornada realização atemporal socializante. “Then comes the question of money to live and learn. I myself have never taken a penny from any of my students, nor do I teach by the hour. Sometimes my classes can go on for a whole day with just a break for lunch” – também estamos habituados a pagar o que recebemos, em que o professor mede a matéria pela hora. A antiga tradição indiana pode contribuir para um outro ensino e acrescentar pontos à nossa profissão de professor. O respeito por aquele que tem algum conhecimento a transmitir leva ao uso do termo guru, que para nós se limita àqueles que se inscrevem declaradamente numa transmissão espiritual. O sistema de passagem de conhecimento – guru-shyshia parampara – torna o estudante um discípulo, um aprendiz para várias tarefas, incluindo as domésticas, na casa do seu professor.
Muitas vezes, as escolas são centros de atividades de ensino, cultura e mesmo agricultura, numa organização interna semelhante a um colégio, autossuficiente e independente de determinações do governo; não há propinas e tal colégio interno (gurukul) vive do que produz e vende, recebendo muitas vezes apoio económico voluntário.
Este tipo de ensino inscrevia-se no arcaico e rígido sistema de castas, eliminando quem, por nascimento, não estivesse entre os “dignos” de receber uma educação e, mais tarde, transmiti-la – eis a sua fragilidade e limite. As mudanças na Índia pós-independência e o crescimento urbano e científico vieram colocar outras questões ao sistema de ensino, abrindo-o às massas, tornando-o uma mais-valia familiar e uma esperança para o futuro.
Enquanto aluno de música, tive vários professores e a todos paguei algo, seja porque havia uma quantia de antemão, mesmo que irrisória, seja porque o pagamento era voluntário e determinado por mim. Tive aulas longas, em que a minha capacidade de absorver era diretamente proporcional ao que o professor me iria dispensar; isso implicava um TpC e enquanto vivi em Benares (seis meses, 1982 e 1983), dedicava-me basicamente à música: aulas diárias e muitas horas a praticar.
Mas sobrava tempo para passear e ir a recitais, geralmente gratuitos. Dos muitos festivais que vi, muitas vezes do pôr ao nascer do sol, raros foram o que implicavam comprar bilhete. Os músicos convidados pela organização – que nós chamaríamos confraria – recebiam apenas para o transporte e estadia, não havendo que considerar diferenças religiosas.
Muitos festivais são verdadeiras celebrações de deuses, de datas importantes, seja pela mudança de estações, seja pelo falecimento de algum músico que, pela sua qualidade e capacidades de ensinar, marcou a música clássica. Ter um verdadeiro S. João nas ruas e um local aberto – templo ou mesquita – com música clássica (e ouvintes atentos e reverentes), durante horas e horas (sem programa nem aplausos), é algo que está longe da nossa experiência.
A Índia é um país extremamente musical, em várias frentes, com celebrações religiosas frequentes, que dispensam o nosso calendário com domingos e feriados para todos.
A expansão da televisão e o fenómeno de Bollywood são dados recentes que colocam sérias questões ao sistema de ensino: estamos perante uma globalização de um país/continente que apaga, qual eucalipto, culturas regionais e tradições coletivas. Contudo, a criação permanece, com uma indianidade vincada e um apreço pelo que é nacional, seja folk, seja clássico. A cultura indiana sempre foi recetora e absorvente: recebe, mas não imita; antes recria e acrescenta. No caso especifico da música, a própria sitar é um caso paradigmático: inicialmente derivou de instrumentos levados pelos muçulmanos em expansão territorial na época medieval, e só um século atrás, por influência de instrumentos da cultura arcaica (como a milenar veena), teve o braço aumentado, a caixa de ressonância (meia cabaça) maior e o acrescento de cordas-baixo. Instrumentos ocidentais como o violino e a viola-slide foram absorvidos e adaptados à performance clássica, a par de outros criados na Índia em tempos relativamente recentes (vichitra veena, surbahar, hansa veena, mohan veena). Esta capacidade que a cultura indiana ancestral revela deve fazer-nos refletir sobre o sistema de ensino e a nossa participação enquanto professores.

Franklin Pereira
EB2/3 de Tadim, Braga


  
Ficha do Artigo
Imprimir Abrir como PDF

Edição:

Edição N.º 200, série II
Primavera 2013

Autoria:

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo