Página  >  Edições  >  Edição N.º 194, série II  >  Empurrados para os ecrãs

Empurrados para os ecrãs

Telemóvel, televisão, computador… Os meios digitais vieram promover novas formas de sociabilidade, novos modos de estar e de comunicar. Hoje, a esplanada é muitas vezes trocada pelo encontro nas redes sociais.

Diz-nos Tony Judt [«Um Tratado sobre os Nossos Actuais Descontentamentos», Edições Setenta, 2011] que “vemos a toda a volta um nível de riqueza individual sem paralelo desde os primeiros anos do século XX”. Mas nem essa riqueza nos permitiu mais e maior segurança; pelo contrário, “entramos numa era de insegurança económica, insegurança física, insegurança política”. E não se fica apenas por estas esferas, porque vivemos ainda insegurança pessoal e familiar, fruto também das anteriormente referidas. Esta questão tem fortes implicações na vida quotidiana, em particular na vida que proporcionamos, ou podemos proporcionar, aos mais novos. Em tempo de férias escolares, com os pais ainda ocupados nos seus afazeres profissionais, o que fazer das e com as crianças? Para muitas famílias, este é um problema grande e uma dificuldade nem sempre fácil de ultrapassar. É preciso encontrar espaços com actividades de qualidade, que não levem o orçamento familiar todo e que proporcionem segurança aos pais e às crianças. Claro que as situações e os contextos físicos, sociais e culturais são diversos. No entanto, as estatísticas mostram que os avós trabalham cada vez até mais tarde e que alguns estão geograficamente longe dos netos, ficando em causa este apoio familiar, que para as crianças era, de algum modo, o prolongamento natural da sua casa. A rua, sobretudo nos centros urbanos, há muito deixou de ser um local de brincadeira; é hoje um sítio que acena com várias inseguranças, sendo difícil, por isso, confiar-lhe as crianças. Teremos de atender, também, às idades, porquanto isso significa diferentes níveis de autonomia. Em todo o caso, embora não parta da evidência da investigação, verifico, através das evidências da experiência quotidiana, que esta questão atravessa vários grupos etários, dos mais pequenos aos adolescentes, embora sejam diferentes as preocupações manifestadas pelos pais. Ora, não havendo grandes alternativas, a solução mais eficaz parece passar por empurrá-las para os ecrãs, o que não as deixa propriamente infelizes – não sendo sequer, em alguns casos, um empurrão. E se não empurramos, permitimos, deixa-mo-nos levar, consentimos, não apresentamos alternativas, muito menos tão ou mais interessantes. Ecrãs de telemóvel, através dos quais se pode comunicar por voz, SMS ou chat, jogar e ouvir música. Ecrãs de televisão, a partir dos quais se podem ver os programas preferidos, ou até os que não interessam muito, mas que se vêem na falta de algo mais interessante para fazer; onde se pode ligar uma consola e jogar, ligados por fios ou sem eles, num mundo virtual que pode até ser a três dimensões e que permite ser o melhor jogador de ténis por um momento, o campeão de tiro ao alvo ou fazer as mesmas proezas de Cristiano Ronaldo num jogo da selecção. Ecrãs de computador, que ligados à internet também permitem jogar, comunicar, informar e ser informado, partilhar, cochichar, namorar, estar com os amigos e por aí fora. Sem dúvida que os meios digitais vieram promover novas formas de sociabilidade, novos modos de estar e de comunicar. Hoje, a esplanada do café – local por excelência de ‘estar’ – é muitas vezes trocada pelo encontro nas redes sociais, horas a fio de conversa, de ‘LoL’, de ‘likes’ e de ‘smiles’. Empurrados para os ecrãs, ou puxados por eles, com a ilusão da segurança, sabe-se pouco sobre com quem falam, quem são alguns dos seus amigos, por que mundos navegam e com que bússola. Em tempo de férias, devíamos empurrar estes adolescentes pela porta fora, mandá-los comer um gelado, apanhar sol e ar e ler um livro. Sem que nos pese o receio da insegurança e volte tudo ao princípio, como no poema de Luísa Ducla Soares. Afinal, os ecrãs estão sempre lá, no bolso ou na mochila, para onde podemos ligar, apenas a querer saber…

Sara Pereira

Televisão ou não

Desliga a televisão – disse o pai.
Vai lá para fora e vive a vida.
Fui e à noite vim
com uma abelha na orelha
um rato no sapato
cola na camisola
giz no nariz
gafanhotos nos bolsos rotos
um escaravelho no joelho
uma formiga na barriga
um leão pela mão
e atrás um camelo a puxar-me o cabelo.
Não vás mais lá para fora – disse o pai.
Liga a televisão.

Luísa Ducla Soares


  
Ficha do Artigo
Imprimir Abrir como PDF

Edição:

Edição N.º 194, série II
Outono 2011

Autoria:

Partilhar nas redes sociais:

|


Publicidade


Voltar ao Topo